O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXVII: Aquarius e a atualidade do ontem

Eu não queria escrever sobre Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, porque ainda não conheço Recife, infelizmente. No entanto, algumas pessoas me sugeriram escrever alguma coisa e me fizeram ler algumas resenhas cinematográficas.
Curiosamente, muitas não reconheciam a marca do cineasta de O som ao redor: não só os ângulos e os zooms que parecem fazer de cada olhar uma ameaça, a câmera adotando uma poética do conflito ou da insegurança, e o tratamento do som: há muito som ao redor, muito ruído passageiro cuja origem não consegui identificar. Essas estratégias incorporam o aleatório e o acaso, dados imprescindíveis para que tenhamos a ilusão de que a própria vida está nas telas, e não aqueles joguinhos de armar onde tudo se encaixa, artifícios baratos de certo cinema comercial.
Não farei, no entanto, uma resenha cinematográfica, muito menos analisar a excelência das atuações, especialmente o tour de force da grande atriz Sônia Braga. Escrevo esta pequena nota para pensar nos pressupostos arbitrários, mas tão significativos, de certas críticas que li.

  • Criticar o uso da "trilha sonora" como típico de telenovelas sem nem mesmo mencionar nenhuma das peças musicais do filme, muito menos o seu compositor predominante, Villa-Lobos, é de uma superficialidade que talvez encontre correlato nos piores comentaristas de tevê. Note-se que, na festa de aniversário da tia Lúcia, toca-se a música de parabéns de Villa-lobos e Manuel Bandeira (ela volta depois), o que já é um dado político e estético essencial, em vez daquela bobagem estadunidense que é onipresente no Brasil (Adriano Brandão me chamou a atenção deste vídeo com o maestro Iván Fischer corrigindo a musiquinha: https://www.facebook.com/medicitv/videos/10153607377142352/). É chocante a ignorância musical dos críticos que dizem que é tocada uma "musiquinha de parabéns". A protagonista, por sinal, é autora de livro sobre o compositor, com título, de que não me recordo, que alude às músicas que não ouvimos. Fazer ouvir o que mal escutamos talvez seja um traço essencial da poética de Kleber Mendonça Filho.
  • Achar que um filme é ruim porque, no final, não ocorreu o fim da sociedade de classes é de um esquerdismo que não chega a ser juvenil; ele parou na idade dos contos de fadas. Revoluções precisam de uma mentalidade mais adulta.
  • Decretar que o filme é fraco por não ser de esquerda, ou não ser de esquerda o suficiente, é outro caso de esquerdismo, porém senil, de gente de um sectarismo velho, que não ouve Stravinsky porque ele era de direita e não lê Fernando Pessoa porque o poeta era contrário à democracia. A senilidade sectária também existe no lado oposto: gente de direita que não lê García-Lorca...
  • Considerar que a qualidade de uma obra depende de o personagem principal chegar a uma consciência mais completa de si mesmo significa confundir cinema com psicanálise para personagens. Grandes obras sobre a alienação não resolvida foram feitas, inclusive no cinema. Trata-se, aliás, de personagens pungentes.
  • Acreditar que as declarações do autor trazem a verdade sobre a obra é de uma inocência tão assustadora quanto a do segundo item. Se o cineasta diz que retratou uma presidenta impedida em sua personagem principal, espero que a declaração seja fruto de alguma militância, e não de uma convicção profunda, que seria muito equivocada. A presidenta afastada estava do lado das grandes empreiteiras e dos projetos desenvolvimentistas, ecocidas (Belo Monte é só um dos exemplos). Se ela estivesse retratada no filme, seria o personagem que não aparece e mandou licenciar o empreendimento contra o qual luta a personagem principal de Aquarius.
  • Comentar que o filme é fraco porque leva a uma identificação da plateia com a personagem principal pressupõe que o público é homogêneo. Pelo contrário, creio que as questões de gênero (cuidadosamente escamoteadas por boa parte das resenhas que li) podem levar muitas pessoas a terem até repulsa da personagem. A vida sexual da mulher de terceira idade, ou da mulher mastectomizada, ou da mulher tout court continua sendo tabu para muita gente. Pareceu-me belo que o filme não fingisse, na propaganda, ser "para toda família". A divulgação destacou uma conclamação de boicote do filme feita por aquele "lúcido" crítico que escreveu certa vez que Drummond não sabia escrever sonetos...
  • É interessante notar como o filme é diferente do cinema político dos anos 1960 (ainda bem, para que cópias requentadas do cinema novo?), mas ignorar que as questões de gênero fazem parte dessa diferença significa não só ignorar a história do cinema, mas a própria história tout court.

Além da tenuidade pensante dessa crítica cinematográfica, a falta de honestidade intelectual de parte dela é manifesta: falam mal do filme sem realmente analisá-lo para atingir a "esquerda", que seria de "vitrine", com declarações vulgarmente machistas como "Não será espanto se qualquer dia desses Sônia Braga vir a ser tombada pelo IPHAN" (e um dos autores é mulher, o que torna a crítica ainda mais absurda; notem o erro no uso do subjuntivo).
É típica de hoje a histeria reacionária dessa crítica a respeito de uma personagem que é proprietária de cinco apartamentos, não participa de nenhum movimento social e não atua na política institucional. Não se trata de um enredo sobre militância socialista, e sim da história de uma aposentada que não quer se separar da casa de suas memórias, onde viveu com o falecido esposo, criou os filhos e ainda os recebe. Por que, de um lado, há sessões onde pessoas gritam "Fora, Temer!" diante desse filme (continuando a manifestação do elenco e do diretor em Cannes, denunciando golpe no Brasil), e, de outro, a direita dos "homens de bem" ficou tão incomodada?
Neste sentido, a recepção do filme tem que ver com questões recalcadas na sociedade brasileira que, naturalmente, retornam. Como a ditadura não foi resolvida politicamente, juridicamente, simbolicamente, não só suas práticas permanecem (a tortura como política de Estado, por exemplo), como seus fantasmas assombram, especialmente o fantasma do comunismo, mesmo décadas após o fim da Guerra Fria, o fim da União Soviética, a substituição do comunista pelo islâmico na figura do inimigo do Ocidente. Logicamente, não faz sentido nenhum temos hoje o exército de reserva do fascismo a bradar contra a imaginária ditadura comunista que esses alucinados viram no governo passado e continuarão a ver em qualquer regime, Comprovam-no as declarações alucinadas que se veem nas redes sociais sobre o presidente dos EUA, a grande imprensa brasileira, o Estado Islâmico etc. Cito texto de Diego Viana, "Golpes e desejos", escrito antes de cosumar-se o impeachment, sobre esse fantasma que faz com que as pessoas vejam o que, no fundo, desejam:
A ditadura, no Brasil, pode estar desencarnada, se por “encarnar” entendemos o controle sobre o aparato do governo central. Mas morta, não está. A rigor, como fantasma, a ditadura pode até ser mais eficaz, por conseguir se imiscuir na mente de todos e, em grande medida, orientar o funcionamento das instituições e das relações cotidianas mesmo em democracia.
Assim sendo, o cerne do nosso problema não está em identificar o golpe aqui ou acolá, mas em entender que estamos agindo constantemente sob o signo do golpe. Não o que poderá vir, mas o que já aconteceu. Estamos revivendo essa experiência porque não a digerimos até hoje e estamos condenados a novas encenações de instabilidades institucionais, com lacerdismos, golpismos e tudo o mais a que temos direito. Não precisa ter golpe, porque no Brasil o golpe é ubíquo.
Dito isso, Aquarius lida fundamental e sutilmente com o passado recente com a ditadura e, muito além da inconsistência política de sua personagem principal, o olhar do filme é de esquerda. Luisa Tieppo me chamou a atenção para o fato de que o cineasta retirou o monstrengo urbanístico das torres na paisagem da cidade. Essa intervenção crítica na paisagem condiz com o filme, que é obviamente partidário da reforma urbana - o filme parece estar ao lado, ideologicamente, de importantes movimentos como Ocupa Estelita.
Daí se explica a primeira parte, dos anos 1980, em que se celebra o aniversário de uma tia que teve militância política e foi presa pela ditadura militar - e que participou da revolução sexual, ela mesma faz lembrar. E o fato de Taiguara, cantor e compositor que teve a carreira quase destruída pela censura (foi ameaçado de morte, exilou-se, mas jamais voltou ao mesmo sucesso depois que pôde retornar ao Brasil; e o câncer logo o levou - vejam este vídeo em que ele fala da censura), abrir e fechar o filme com "Hoje", canção de 1969, sobre o "fim do mundo", as "imagens distorcidas" da época. O retrato continuava atual nos anos 1980.
O filme trata, pois, da ditadura e suas continuidades. No caso, o poder das grandes construtoras (amadas pelos homens de bem, naturalmente, e também pela esquerda que ocupou recentemente o governo federal), acima de outros poderes, como o do judiciário. Se, no filme, o bem imóvel objeto da sanha do capital fosse da empregada doméstica da protagonista, ele seria talvez um curta: ela não conseguiria resistir daquela maneira, as ameaças de morte logo encontrariam mãos e instrumento (no caso de Aquarius, a morte viria de uma forma bem disfarçada; mais não digo para não estragar a surpresa), como é a regra no país com as populações discriminadas. Não é à toa que a empregada doméstica vive do outro lado da mancha de esgoto da praia, como a protagonista bem explica à namorada carioca de seu sobrinho, curiosa de conhecer a geografia da segregação social em Recife.
Esta empregada doméstica é outra presença forte no filme porque ela aponta para outro dos dados essenciais da história: não existe justiça. Ela comemora o aniversário do filho assassinado, e mostra a foto dele para a família da patroa em uma cena crucial. E repete que ninguém foi responsabilizado pela morte.
Como a protagonista é uma escritora reconhecida, fez carreira de jornalista e conta com um capital social considerável, ela busca fazer uso de suas redes. Sobre isso, lembro de uma crítica bastante ingênua que reclama de ela tentar usar a chantagem contra a empresa, por ser algo pouco ético... No meio do filme, ela descobre que há documentos contra a construtora e tenta utilizá-los depois de sofrer várias intimidações (e ainda ouvir uma fala racista do arquiteto da construtora sobre "pele mais morena", que ela não responde, mas a empregada, que também deve se sentir atingida, sim).
Sobre que são esses documentos? Não é preciso dizer: a espoliação é a regra, a grilagem com os seus capangas, o homicídio, a tortura e quejandos, assinam os registros públicos no país.
Nesse sentido também Aquarius está no mesmo campo de O som ao redor, que, com base no histórico das ligas Camponesas (surpreendentemente recuperado no fim do filme), trata das desigualdades no espaço urbano de Recife.
Como O som ao redor, Aquarius trata de conflitos de caráter social, que não são ou não podem ser resolvidos pelas vias institucionais do judiciário, sendo este poder, ele mesmo, parte do problema. O filme anterior termina com a vingança prestes a ser feita pelas próprias mãos dos espoliados. Afinal, trata-se de um país que nega a justiça de transição. No filme novo, apesar da presença da advogada, fica bem claro que outros mecanismos (entre eles, a chantagem) é que podem ser realmente efetivos. E o final, que não revelo, enfatiza que estamos em uma terra sem lei. Evidentemente, há uma relação profunda disso com a ditadura, regime em que o direito só pode existir se pervertido.
Em seu último disco, Brasil Afri (infelizmente, não está mais em catálogo) que prova que ele não havia declinado como compositor, Taiguara regravou uma canção antiga, justamente "Hoje", em novo arranjo. Era 1994, ele morreria dois anos depois.
Estamos em 2016, e o ontem governa. Precisamos ouvir.

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