O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXVIII: Seminário Vala de Perus promovido pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos




Recebi este convite com o pedido de divulgação:
A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, preocupada com o andamento e perspectivas da investigação das ossadas de Perus, convidou a equipe de Arqueologia e Antropologia Forense responsável por este trabalho, para apresentar em um Seminário a situação atual para os familiares e militantes envolvidos com o tema.
O Seminário será realizado na próxima terça-feira, dia 18/10, das 10h às 13h, na Câmara Municipal (viaduto Jacareí, nº 100, sala Oscar Pedroso Horta, 1º subsolo).
Convidamos todos e todas a participarem conosco desta atividade.
O tema é importantíssimo. Trata-se de uma série de escândalos que acusam diversas debilidades do processo de justiça de transição no Brasil. Em primeiro lugar, o escândalo da própria vala, aberta durante a primeira prefeitura de Paulo Maluf, como prefeito nomeado durante a ditadura militar (a eleição para prefeitos de capitais havia sido eliminada pelo AI-3, de 1966), que acabou servindo para ocultar cadáveres de opositores políticos, de vítimas do Esquadrão da Morte e mortos pela epidemia de meningite, que estourou em São Paulo e foi censurada na imprensa, já que notícias tão negativas para o governo não poderiam ser divulgadas, o que teve o efeito de não realizar campanhas de saúde pública para a população. A ditadura também matou por meio da censura.
Cito Luiza Erundina, a prefeita que abriu a vala em 4 de setembro de 1990:

Há mais de duas décadas, descobriu-se que naquele cemitério municipal, construído em 1971 pelo então prefeito de São Paulo Paulo Maluf, havia uma vala clandestina com 1.049 ossadas acondicionadas em sacos plásticos sem nenhuma identificação. Informações do então administrador do cemitério, o funcionário Antonio Pires Eustáquio, davam conta de que para lá eram levados os corpos de indigentes, vítimas anônimas do Esquadrão da Morte, da miséria social e da repressão política, para serem enterrados em covas individuais ou jogados numa vala comum.
Até o final do nosso governo, 30/12/1992, a equipe de pesquisadores da Unicamp identificou, nas ossadas do cemitério Dom Bosco, sete corpos de desaparecidos políticos no período da ditadura militar, sendo que três deles estavam na vala comum e quatro em sepulturas individuais. São eles: Frederico Eduardo Mayr; Dênis Casemiro; Flávio Carvalho Molina; Sônia Moraes Angel Jones; Antonio Carlos Bicalho Lana; Luiz José da Cunha; e Miguel Sabat Nuet.
Trata-se de trecho de Vala clandestina de Perus: Desaparecidos políticos, um capítulo não encerrado da história brasileira, publicado em edição do autor em 2012, que pode ser lido na ligação indicada. O projeto da obra havia sido aprovado pelo programa Marcas da Memória da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. O livro inclui, entre outros textos, o relatório da histórica CPI que investigou "a origem e responsabilidade sobre as ossadas encontradas no Cemitério Dom Bosco, em Perus e a situação dos demais cemitérios em São Paulo", apresentado em 15 de maio de 1991 pela vereadora Tereza Lajolo.
Em segundo lugar, temos o escândalo da omissão pelo Estado brasileiro, que seguidamente falhou na tarefa da identificação dos mortos. No livro, pode-se ver como o trabalho com as ossadas foi abandonado pela Unicamp (obviamente, não há nenhuma palavra a respeito disso no relatório da Comissão da Verdade dessa universidade), pela UFMG, pela USP, pela Polícia Científica do Estado de São Paulo etc.
Os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, que chamam para o Seminário do dia 18 de outubro, é que buscaram insistir no trabalho de antropologia forense.
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", presidida por Adriano Diogo, em 20 de maio de 2013 realizou audiência pública sobre a não identificação das ossadas que haviam sido descobertas em 1990. Em 4 de setembro de 2014, e. outra audiência da Comissão, foi criada uma parceria que envolve a Unifesp, a Prefeitura de São Paulo e Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Cito matéria de Raquel Brito, que foi assessora da Comissão "Rubens Paiva":
Na audiência ficou claro a desídia com que as autoridades trataram o tema até hoje. Isso porque as ossadas foram diversas vezes transportadas e acomodadas de forma totalmente indevida, o que as deixou em péssimas condições. Passaram pela UNICAMP e pela USP, sem que as investigações fossem concluídas, e em tais locais foram armazenadas de forma totalmente indevida, em sacos plásticos ou de tecido, sem temperatura adequada, sofrendo inclusive enchentes, cuja umidade era mantida devido ao armazenamento em sacos, enfim, não houve nenhum cuidado para que se as ossadas não se deteriorassem ainda mais, e assim a identificação pudesse de fato ocorrer.
Até esse momento o processo de busca da identificação das ossadas estava paralisado. Porém a constante luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos e dos movimentos sociais impulsionou a retomada dos trabalhos e a união de esforços da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.As denúncias com relação à ausência de iniciativas de resolução da questão da vala de Perus já vinham sendo feitas pelos familiares há anos e, depois de muita luta, juntamente com a Comissão da Verdade, foi possível uma parceria com a UNIFESP, e a criação de um Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, o primeiro do Brasil com características de multidisciplinaridade, e com a colaboração de sete peritos de institutos de antropologia forense da Argentina e do Peru.
Apesar da evidente relevância do tema, a Comissão Nacional da Verdade não investigou a Vala de Perus, o que gerou reclamações dos movimentos de ex-presos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos. Amelinha Teles, que era coordenadora da Comissão "Rubens Paiva", declarou para a a EBC em 2015, sobre a CNV, que “O relatório está ótimo, mas não enfrenta os crimes da ditadura. A vala de Perus significa crimes da ditadura, seja contra os desaparecidos políticos, seja contra o povo que foi morto pelo esquadrão da morte, seja contra quem foi morto pela meningite, censurada pelo Estado”.
Esse descaso não impediu a então ministra de direitos humanos de fazer, em dezembro de 2014, a fantástica declaração de que 141 corpos já teriam sido identificados, das ossadas de Perus, e que tudo estaria pronto em 2015!
Estamos no fim de 2016 e o trabalho está longe de terminar.
A evidente inverdade dessa afirmação foi apontada por Amelinha Teles em matéria muito bem escrita por Marcelo Pellegrini para a Carta Capital, "O crime perfeito da ditadura", de 11 de fevereiro de 2015:
“As caixas estão mofando, porque só o andar de baixo da casa foi reformado e adaptado”, denuncia Maria Amélia Teles, fundadora da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos e fundadora da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo. “Além disso, o número de profissionais é pequeno e temos pressa na identificação dos ossos. Faz muito tempo e os familiares estão morrendo, tornando mais difícil a identificação dos desaparecidos.” Amelinha, como é conhecida, teme ainda o corte orçamentário anunciado pelo governo.
Passamos daí para o terceiro escândalo, que é o papel da imprensa no tocante aos mortos da Vala de Perus: meios de comunicação, tanto à direita quanto à esquerda, pretendem que está tudo bem e que o trabalho está praticamente acabado, prestando enorme desserviço à justiça de transição. À esquerda, pode-se mencionar matéria de Luis Nassif, "Os mortos de Perus não conseguem descansar em paz", que critica a de Pellegrini, e cujo título já evoca o clamor dos nostálgicos da ditadura para "virar a página" e enterrar de vez a memória e a verdade". Entre afirmações fantasiosas de que Adriano Diogo e Amelinha Teles estariam inventando um problema porque não teriam outra causa a se dedicar, a matéria apontava o termo de setembro de 2015 para a limpeza dos ossos, "tentando identificar" não só os desaparecidos políticos, como outras vítimas. Esta informação está errada também: a equipe está trabalhando só com o universo dos desaparecidos políticos, porque é impossível tecnicamente identificar os mais de mil mortos, como os antropólogos bem explicaram no trabalho elaborado para o relatório da Comissão "Rubens Paiva": http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/parte-i-cap4.html
Ainda em 2015, ademais, ocorreu uma interrupção de quase seis meses no trabalho, porque os contratos da equipe de antropologia forense não foram renovados a tempo, em mais um exemplo do descaso político com as vítimas da ditadura. E eles terão seu fim no começo de 2017. Renovar-se-ão novamente, nesta nova conjuntura política?
No tocante à imprensa de direita, o programa Fantástico, fazendo jus ao nome, em 26 de junho de 2016 veiculou uma idílica reportagem sobre a identificação das ossadas, que tratava a questão como se o trabalho não tivesse enfrentado problema algum, como se a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos não tivesse ficado meses sem quórum porque a então Presidenta da República não nomeava os membros para os novos mandatos, a Unicamp houvesse realizado com muito zelo a identificação, e a atual equipe de antropólogos forenses não tivesse tido que trabalhar sem todo o material necessário e até sem ser paga.
O programa também trata como revelações exclusivas afirmações que foram feitas antes e alhures, inclusive em audiência da Comissão da Verdade da Prefeitura de São Paulo, que essa tevê tem escolhido ignorar, bem como a outras comissões da verdade que continuam funcionando. Em audiência pública realizada em 2 de maio de 2016 dessa Comissão, a procuradora da república Eugênia Gonzaga, presidenta da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, tratou de várias dificuldades políticas do processo:
Bom, é muita coisa, e eu estou falando agora nessa qualidade de comissão de mortos e desaparecidos políticos. É a comissão criada por lei, fruto da luta dos familiares desde 95 para se perseguir esse tema. Só que, infelizmente, esta comissão nunca teve estrutura compatível com as suas finalidades, nunca. O pedido na ação, em 2010-2011, era que fosse dada estrutura para a comissão, e segue assim. Eu fui nomeada presidente desta comissão em 2014, e, até então, ficamos com três membros. De sete membros, a comissão ficou com três membros esse período inteiro. A presidência não nomeou outros membros até outubro de 2015. Só no final do ano passado praticamente é que passou a ter os sete membros para poder ter deliberações, aprovar propostas, aprovar o regimento, aprovar pedido de orçamento. Finalmente, esta comissão tem orçamento para esse ano, como todo orçamento federal contingenciado, que tem no papel, mas não tem depositado pelo Ministério do Planejamento, toda aquela realidade de órgãos públicos federais que vocês conhecem. Agora, estamos procurando fazer tudo que está ao alcance.
E ainda não se tratava do governo Temer!
Esperamos que o seminário na Câmara dos Vereadores sirva não só para divulgação dos resultados parciais da excelente equipe de antropologia forense que está realizando esses esforços com tantas dificuldades, e da denúncia do descaso político e da desinformação promovida pela imprensa, falhando com a memória, a verdade e, tema também não resolvido, a justiça: quem será responsabilizado por essas mortes e sua ocultação?

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