O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O banquete como forma de governo


I - Devorados com gosto

Vamos dirigir o país
Gritamos enquanto os que apoiamos
nos pisam
com nossos próprios pés;

(outros
brincam de governo
usando os nossos brinquedos)

Vamos expulsar do país
aqueles que não querem
que dirijamos o país

Gritamos com a voz
dos que nos calam
com nossos próprios tiros;

(a gente brincava de governo,
mas outros
governavam o brinquedo)

Ultimato ao país:
Terras vastas mostrem-se à altura
de serem dirigidas por nós

Bradamos do subterrâneo
onde fomos trancafiados
por aqueles a quem demos a chave do país;

(se o governo é um brinquedo,
onde é que ele quebra?)

Olhem que paralisamos o país
Anunciamos decididos
enquanto corremos da chibata
que fabricamos freneticamente,
o produto mais abundante desta terra;

(parece que o brinquedo veio com defeito,
mas que é assim mesmo
que se torna governo)

O produto mais abundante,
todos já têm
e todos o querem comprar.


II - O banquete, forma de governo



Nosso lifestyle? O caviar!
Como o governo quer apoio,
começa pagando o jantar;

muitos pratos, mas estou de olho
nos valores deste cardápio:
menos de milhão, não tem gosto,

cargos ou contratos, é sábio
verificar o percentual
antes de combinar nosso ágio,

que é o prato principal
dos que se alimentam do Estado,
o apetite do liberal,

um ministério devorado,
no entanto com talheres finos;
o orçamento serve de prato

e os códigos, de aperitivo;
comemos por causa do preço
e não do sabor purgativo

pois vomitando sem sossego
o banquete permanente
se torna forma de governo

apesar de eleições, somente
mantidas porque as campanhas
geram contratos e excedentes,

migalhas que o povo apanha
do chão e chama de direitos,
mas eram da mesa, e ele apanha

por roubar do jantar alheio,
por deixar a fome em apuros;
um brinde à fome, nosso feito,

e outro à ponte do futuro;
com cem por cento de propina,
nunca se ergueu, embora o muro

isolando a carnificina
lá fora do nosso banquete
ainda esteja sangue acima.


III - A autodevoração como lei universal

Reunião de literatos.
O que planejam?
Comemorar outro centenário.

– Literatos?
– Eles ganharam novo lugar no mundo escrevendo petições.

Reunião de literatos.
Mais um copo se quebra.
Estamos chegando a cem.

– Com mais uma petição virtual a favor das petições virtuais, viveremos em um mundo melhor. Ou mais eficaz, não lembro bem o que foi pedido.

Literatos discutem.
O que bebe mais acha-se superior
ao que bebe em demasia,
que retruca que prefere bebida barata
a vinhos de cem anos.

– Escrevi uma petição pelo fim das petições em razão da crise histórica desta forma, que substituiu os livros de colorir e as cartilhas para adultos, mas decaiu rapidamente. Hoje temos a nova salvação da literatura, o envio de nus.

O abstêmio descobre
que aquele manifesto fará cem anos
mas não agora
e sugere uma petição
para que o centenário seja emancipado
e salve a literatura contemporânea.

1. Temos a solução para o país. Os centenários.
2. Centenários levam a festas e comemorações, à alegria, que pode levar à dispensa de licitações, dependendo do valor ou da notória especialização.
3. Somos notoriamente especializados em nós mesmos, podemos ser contratados já, basta antecipar o centenário.
4. A alegria é o contrato dos nove milhões.
5. O centenário é uma forma estética e política muito usada nos grandes centros da literatura nobelizada e da política mundial.
6. Povos primitivos não comemoram centenários, é uma prova inconteste do atraso deles.
7. A antecipação dos centenários é uma medida que rejuvenescerá o país.

– O que eles estão fazendo? Estão escrevendo poemas em chibatas, paus-de-arara e em outros objetos seculares do país!
– Aproveitando a conjuntura política atual.
– Todos assinaram? Mas daqui a pouco voltam a brigar. Poetas só fazem manifestos de si mesmos.


IV – Dieta de justiça

Ligue o computador e leia:
se você é contra o corte
é contra o país


– Para onde iremos, se houver tantos cortes?
– Ame-o ou deixe-o, diziam os antigos. Não se preocupe. Com um só pé você ainda poderá andar.

Abra o jornal e leia:
se você é contra o corte
é contra o país


– Só os empregados perderam o emprego, explica o governo.
– Em compensação, o aluguel de aviões de paraísos fiscais mantém isenção fiscal.
– Mais um socioambientalista assassinado. Outras reservas precisam ser cortadas para evitar esse crime.

Bala perdida na rua.
Ela escreve nos corpos:
se você é contra o corte
é contra o país


– Descobriram estas ossadas anônimas, porém não tema, já são os cortes funcionando.

Bilhões encontrados em contas no exterior.
Os extratos secretos dizem:
se você é contra o corte
é contra o país


– O juiz almoçou com o governo e depois deu a liminar em favor do corte?
– Saudável sinal de que a Justiça entrou em dieta.

Prêmio literário para obras intituladas
se você é contra o corte
é contra o país

o primeiro lugar cortou tudo, menos o título

– Mas há alguma diferença entre o corte e o país?
– Poderíamos ter pesquisado a questão, antes de as melhores universidades terem sido cortadas. Agora o relator dos cortes da educação, o deputado representante da Educational Systems, está propondo um programa inédito no mundo de alfabetização de doutores. Quem sabe eles poderão, depois disso, empreender pesquisas.

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(os cortes refundaram seu império:
turbinas sangram seca em nossos rios,
devoram nossas terras com desterro;
mas chamam progresso ao prejuízo,
e nas buzinas ouve-se o lamento
de quantos pássaros jamais nascidos)


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