O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 28 de outubro de 2018

Nota de solidariedade a Amelinha Teles, ameaçada na democracia por denunciar os crimes da ditadura


Grupo de Trabalho Direito, Memória e Justiça de Transição - Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais


Amelinha Teles, uma das autoras da ação judicial que declarou oficialmente o Coronel Brilhante Ustra como torturador, voltou a gravar um depoimento, desta vez para o programa eleitoral de Fernando Haddad, sobre a violência que sofreu com o marido, César Augusto Teles. Seus filhos, Janaina e Édson, então com 5 e 4 anos respectivamente, foram levados por Ustra à sala de tortura para que vissem os pais desfigurados.
Por causa desse depoimento, confirmado pela Justiça brasileira, ela tem sofrido ameaças de morte por pessoas que se declaram apoiadoras do candidato do PSL, Jair Bolsonaro, bem como de notícias falsas atribuindo-lhe crimes inexistentes. É significativo que uma militante pelo direito à verdade tenha sido alvo dessa tática, a mesma que tem sido empregada, nesta campanha eleitoral, contra a esfera pública e a possibilidade do debate democrático.
O histórico desse político tem suscitado esse tipo de ação antidemocrática de seus admiradores. Bolsonaro cometeu a ignomínia de dedicar seu voto pelo impeachment a esse conhecido torturador. Além de já feito declarações favoráveis ao crime de tortura e a milícias, ele reiterou sua admiração a Ustra em entrevistas recentes.
A tortura continua a ser uma das práticas criminosas do Estado brasileiro empregadas para repressão de militantes políticos, bem como a ser empregada no genocídio da juventude negra e periférica.
Este Grupo de Trabalho do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais solidariza-se com Amelinha Teles e sua família, bem como com todos os militantes por memória, verdade e justiça, que sabem que estão lidando com uma questão central para a sobrevivência da democracia no Brasil.

27 de outubro de 2018.

Coordenadores do GT:
Diogo Justino (Doutor em Direito pela UERJ)
Pádua Fernandes (Doutor em Direito pela USP; pós-dourando - IEL/Unicamp)

A chibata demanda o seu voto

Não é machista
só empurra mulheres de esquerda
ou jornalistas
e outras
que não temos tempo de listar agora

Não mata ninguém
seria um desperdício
deixa que os admiradores
votem nele
com a faca na garganta alheia

Ama as liberdades
dos coturnos
das transferências bancárias não contabilizadas
da censura
e basta
pois liberdade só para os livres

Grande educador
ensina às mulheres a anatomia do útero
sob pés masculinos
explica à bolsa o tempo certo dos valores
entre o disparo e a putrefação
nas valas clandestinas
e mais não diz
poderia ser mal interpretado
e toda interpretação foi interditada

Traz notícias ao mundo
não como o intestino produz as fezes
pois elas se libertam do corpo
tornam-se rebentos
e gritam
não como o câncer informa a carne
mas como ele substitui o corpo
toma sua forma e anda pelas ruas
integralmente compartilhável

Orador que adestrou a língua
a reproduzir o estalo da chibata
embora todas as peles possam entendê-la
agora ela não tem muito mais a dizer


... dinheiro lavado em sangue
de corpos insubmissos...

... preces a treinar a mira
em peles escuras...

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Sarau Poemas pela Democracia: São Paulo, 25 de outubro

Reproduzo a divulgação do evento, de que participarei:




Data: quinta-feira, 25 de outubro
Local: Casa Plana (Rua Fradique Coutinho, 1139)
Horário: 21h

Sobre:
Elogio à tortura, ameaça aos direitos sociais e as minorias, incremento do racismo, da homofobia, da violência, escola sem partido e sem pensamento, congelamento dos investimentos em saúde e educação, intolerância religiosa, destruição ambiental. Como seguir considerando democráticos os tempos em que vivemos? As instituições seguem funcionando, as eleições continuam diretas, mas a mentira se alastra, nas redes e nas ruas, e o medo, a desesperança...
Às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, a poesia vem dar as caras, chamar para a luta, conclamar à liberdade. Ao longo de duas horas, mais de três dezenas de poetas, professores, leitores de poesia vêm a público defender os valores democráticos.

Regra única: alternância de vozes, um minuto para cada fala. Escolha as palavras, prepare a voz, junte-se a nós.

Participantes (lista provisória): Ademir Assunção, Adrienne Myrtes, Airton Paschoa, Alexandre Barbosa de Souza, Alice Sant'anna, André Nogueira, Andrea Catropa, Antônio Vicente Seraphim Pietroforte, Arthur Lungov, Bruno Brum, Cadu Ortolan, Carlos Machado, Celso Alencar, Cide Piquet, Chris Ritchie, Cláudia Abeling, Danilo Gusmão, Diana Junkes, Dirceu Villa, Djami Sezostre, Fabiano Fernandes Garcez, Fabio Cesar Alves, Fabio Weintraub, Fabiano Calixto, Fabrício Corsaletti, Francesca Cricelli, Frederico Barbosa, Gabriel Rath Kolyniak, Geruza Zelnys, Ivan Hegen, João Bandeira, Josep Domènech Ponsatí, Júlia Bac, Leandro Esteves, Leonel Delalana Jr., Leusa Araújo, Lilian Aquino, Luís Perdiz, Maria Luíza Furia, Maria Luiza Corrêa, Micheliny Verunschk, Milena Migrans, Mônica Rodrigues da Costa, Natália Agra, Noemi Jaffe, Pádua Fernandes, Patrícia Chmi, Paulo Ferraz, Pedro Tostes, Pepê Mata Machado, Priscila Figueiredo, Rafael Tahan, Ricardo Domeneck, Ricardo Escudeiro, Roberta Ferraz, Roberta Villa, Roger Tieri, Roger Willian, Ruy Proença, Simone Rossinetti Rufinoni, Sofia Mariutti, Tarso de Melo, Wilson Alves Bezerra.

Crédito da imagem: Andrés Sandoval

Evento no Facebook:
https://www.facebook.com/events/310986383053151/

domingo, 21 de outubro de 2018

Desarquivando o Brasil CXLVII: Merlino, Ustra e o TJ-SP: uma jurisprudência bolsonarista



Eu assisti em pé, no último 17 de outubro, ao julgamento do recurso que Brilhante Ustra, falecido em 2015, e que já havia sido declarado torturador pela Justiça brasileira no processo da Família Teles, impetrou em processo que havia sido movido pela Família Merlino, em razão da tortura e morte do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino em 1971.
Ele havia sido condenado pela juíza Claudia de Lima Menge a indenizar em cem mil reais as autoras, a viúva e a irmã de Merlino. O jornalista morreu de gangrena nas pernas após 24 horas de tortura no pau-de-arara. A 13ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), no dia 17, reformou a sentença.
A matéria do Uol, "TJ vê prescrição e barra indenização de Ustra a família de jornalista morto na ditadura", escrita por Janaina Garcia, destaca bem as declarações da viúva, a professora Ângela Mendes de Almeida, no sentido de que "o TJ tolera a tortura", e da testemunha, ex-ministra da secretaria das mulheres no governo de Dilma Rousseff e ex-presa política, Eleonora Menicucci, de que o julgamento "legitima ainda um autoritarismo e um pré-fascismo em que estamos entrando", referindo-se a Jair Bolsonaro. Adriano Diogo, ex-preso político e ex-presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", que tratou do caso de Merlino, destacou que o jornalista foi assassinado mais uma vez hoje, e isso afeta toda sua geração.
Assusta, porém a matéria está correta nesta afirmação: "Os desembargadores se referiram a Ustra como "suposto torturador". No entendimento deles, não houve "nexo causal" que relacionasse o coronel à tortura e posterior morte de Merlino."
A jornalista e sobrinha do morto político, Tatiana Merlino, escreveu para The Intercept a matéria "Meu tio foi assassinado pelo ídolo de Bolsonaro".
A matéria do El Pais, "Magistrados ignoram testemunhas e citam laudo forjado da ditadura para isentar Ustra", de Felipe Betim, também está correta, embora seja chocante o que diz:
O relator do caso, desembargador Salles Rossi, foi além. Primeiro a votar, defendeu que não havia provas nem testemunhas presenciais que indiquem que Ustra participou da tortura a Merlino durante a "chamada ditadura militar". Além de não levar em conta o fato de que o coronel era o responsável pelo DOI-CODI, o desembargador desconsiderou o relato das pessoas que presenciaram a tortura do jornalista, sendo a principal delas a socióloga Eleonora Menicucci, ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres no Governo Dilma Rousseff (PT). [...] O magistrado também desconsiderou documentos como o da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instaurada pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a Comissão Nacional da Verdade, instaurada pelo Governo Rousseff, e a Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo. Todas reconhecem a responsabilidade do Estado brasileiro e de Ustra pela morte de Merlino.
Com efeito, os magistrados decidiram prover o recurso de Ustra com base unicamente no argumento da prescrição, que era suficiente. Com isso, decidiram de forma diferente do Superior Tribunal de Justiça; o advogado Aníbal Castro de Souza, falando aos Jornalistas Livres ("Tribunal de SP tortura e mata novamente o jornalista Luiz Eduardo Merlino"; Ângela Mendes de Almeida Eleonora Menicucci e Adriano Diogo também falam no vídeo, para o qual fiz uma declaração; eles também aparecem na matéria da TVT, "Maior torturador da ditadura, Ustra é absolvido em segunda instância").
Sobre esse debate, quero apenas aduzir alguns pontos.

Primeiro, tendo em vista a pergunta logo no início do vídeo dos Jornalistas Livres, lembro que, em termos de direito internacional, não há nenhum obstáculo em relação à responsabilidade individual dos torturadores no tocante à reparação das vítimas. Lembro, por exemplo, da Resolução A/RES/60/147 da Assembleia Geral da ONU, aprovada em 16 de dezembro de 2005. Cito em espanhol:
IX. Reparación de los daños sufridos
15. Una reparación adecuada, efectiva y rápida tiene por finalidad promover la justicia, remediando las violaciones manifiestas de las normas internacionales de derechos humanos o las violaciones graves del derecho internacional humanitario. La reparación ha de ser proporcional a la gravedad de las violaciones y al daño sufrido. Conforme a su derecho interno y a sus obligaciones jurídicas internacionales, los Estados concederán reparación a las víctimas por las acciones u omisiones que puedan atribuirse al Estado y constituyan violaciones manifiestas de las normas internacionales de derechos humanos o violaciones graves del derecho internacional humanitario. Cuando se determine que una persona física o jurídica u otra entidad está obligada a dar reparación a una víctima, la parte responsable deberá conceder reparación a la víctima o indemnizar al Estado si éste hubiera ya dado reparación a la víctima. 
A pessoa física autora de graves violações de direitos humanos pode ser obrigada a indenizar uma vítima. Ademais, a decisão sobre a prescrição fere a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o que deve ensejar um recurso especial.
A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil, referente à Guerrilha do Araguaia, embora tenha enfatizado a responsabilidade criminal, não deixou de mencionar esse tipo de responsabilidade, no sentido de que devam indenizar as vítimas e familiares;
155. Adicionalmente, o mesmo Grupo de Trabalho manifestou sua preocupação quanto a que, em situações pós-conflito, se promulguem leis de anistia ou se adotem outras medidas que tenham como efeito a impunidade, e lembrou aos Estados que:
é fundamental adotar medidas efetivas de prevenção, para que não haja desaparecimentos. Entre elas, destacam-se […] a instauração de processo contra todas as pessoas acusadas de cometer atos de desaparecimento forçado, a garantia de que sejam processadas em tribunais civis competentes e que não se dê acolhida a nenhuma lei especial de anistia ou a medidas análogas, que possam eximi-las de ações ou sanções penais, e da concessão de reparação e indenização adequada às vítimas e seus familiares.
A citação, a Corte retirou-a, cito a nota correspondente, do "Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, das Nações Unidas. Relatório, supra nota 211, par. 599. No mesmo sentido, cf. Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários das Nações Unidas. Relatório ao Conselho de Direitos Humanos, 4° período de sessões. U.N. Doc. A/HRC/4/41, de 25 de janeiro de 2007, par. 500 (tradução da Secretaria da Corte Interamericana)."

Em segundo lugar, é importante tratar de outra questão técnica que as reportagens não abordaram: o da natureza da ação proposta no caso de Merlino. As autoras não queriam indenização pela morte, e sim um caminho judicial semelhante ao que foi tomado no caso da Família Teles, isto é, de uma ação meramente declaratória: Ustra seria declarado torturador, mas não seria preso por isso, nem teria de indenizar os familiares.
No caso de Merlino, no entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou improcedente uma ação meramente declaratória: somente caberia, segundo o TJ, uma ação indenizatória. Neste julgamento de outubro de 2018, no entanto, os magistrados decidiram que, se a ação fosse declaratória, não teria havido prescrição...
O professor Fábio Konder Comparato explicou a situação que gerou este nonsense judicial na audiência pública da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, "Carlos Alberto Brilhante Ustra: torturas e assassinatos de militantes políticos na ditadura", que ocorreu em 3 de junho de 2016. A audiência tinha como objeto as graves violações de direitos humanos praticadas pelo militar mencionado, e a fala do jurista teve como finalidade "acusar o Judiciário de cumplicidade com crimes contra a humanidade".
No caso de Merlino, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou improcedente a ação declaratória; Comparato comenta a respeito do saber jurídico dos magistrados envolvidos, que "devem ter aprendido isso em não sei que faculdade". Quando ocorreu a audiência na Comissão, a ação estava parada. O jurista explicou que o Judiciário paulista atrasou a causa por motivos políticos; cito suas palavras na audiência:
Em 26 de novembro de 2012, guardem bem esse nome, por favor, o Relator Desembargador Luiz Antônio Costa, declarou-se suspeito para relatar o feito, pois ele, abre aspas, “exige análise de contexto político partidário, o que não posso fazer com a necessária isenção”.
Eu me esqueci de perguntar, nos autos, se o Desembargador Luiz Antonio Costa fazia parte do Partido do assassino ou do partido da vítima.
A ação foi, então, redistribuída a outro Desembargador que, durante três anos, disse que não tinha tido tempo de julgar, de por em votação, pois ele tinha muito trabalho.
Continuou tendo muito trabalho até, com a graça de Deus, ser aposentado.
Então, houve redistribuição, e o feito foi para o Desembargador Salles Rossi, guardem também esse nome, que, em 30 de abril de 2015, proferiu o seguinte despacho: “Considerando a notícia de suspensão da ação penal, dirigida em face do ora apelante, ou seja, Ustra, por decisão da Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, até que aquela Corte volte a julgar a validade da Lei de Anistia, sem prejuízo das demais questões deduzidas do recurso interposto, entendo que, se um dos fundamentos do apelo que ataca a sentença é, exatamente, a possibilidade de discussão da reparação pretendida, ao depois da promulgação de três leis especiais, de consequência, de princípios da especialidade etc., reputo justificada a suspensão do presente feito, até que a ação penal em questão seja julgada ou que o Supremo Tribunal Federal decida sobre a validade da Lei de Anistia”.
Ou seja, o Desembargador Salles Rossi não concluiu o curso de Direito ou, então, fraudou a entrada na Magistratura ou, simplesmente, S.Exa. ignora o fato de que a responsabilidade cível é independente da criminal.
E até hoje isso permanece, de modo que eu volto ao ponto inicial dessa minha exposição. Nós temos que levantar uma espécie de juízo popular sobre a irresponsabilidade de vários dos nossos magistrados, a começar pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
As palavra de Comparato foram duras, porém justas. A postura judicial de se manter aparentemente neutro entre a dignidade humana e o pau-de-arara não corresponde, realmente, a uma neutralidade, e sim a uma opção jurídico-política pela garantia dos crimes contra a humanidade.
Salles Rossi, que havia cometido esses erros jurídicos que Comparato julgou primários (ele volta a essa questão a 2 horas e 41 minutos da decisão), era o relator da ação, enfim julgada com o mesmo estilo e saber antes demonstrados.

Um terceiro ponto é a negação do processo de justiça de transição e o negacionismo do Judiciário brasileiro. De fato, o relator do caso de Merlino citou as testemunhas do processo, porém duvidando de sua veracidade, e ignorou também o conjunto probatório do relatório da CNV, que incluiu o material levantado pelo Ministério Público Federal neste caso para propor a ação criminal contra Ustra e os outros agentes:

Para ampliar a imagem, cliquem sobre ela para abrir a ligação em outra janela.
Além disso, a CNV recomendou que o certificado de óbito de Merlino fosse retificado "para que conste como causa da morte 'morto em razão de tortura sofrida nas dependências do DOI-CODI do II
Exército/SP'":

Trata-se de páginas do volume III do Relatório, no qual foram individualizados os mortos e desaparecidos políticos que a CNV conseguiu pesquisar (com forte base no Dossiê dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos): http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/
Comparato acusou o Judiciário de cumplicidade com crimes contra a humanidade, e talvez ele pense o mesmo no tocante a esta decisão que decidiu negar todo o trabalho de produção social da justiça de transição, bem como sobre vários dos últimos exemplos de descumprimento da Constituição para violação de direitos humanos, muito numerosos para serem listados aqui, como o que chamei, para ficar entre os mais recentes, de "golpe judicial contra a liberdade de imprensa", curiosamente movido por um partido soi-disant liberal.
Com isso, o Judiciário alinha-se a posições contrárias aos direitos humanos que, curiosamente, também são defendidas pelo candidato Bolsonaro, um conhecido negacionista dos crimes da ditadura militar e defensor da tortura.
Se a maior parte das comissões da verdade brasileiras, inclusive a Nacional, encerrou seus trabalhos, a Comissão da Inverdade continua tão intensa quanto não institucionalizada, embora presente nas instituições; certos juristas e professores de direito integram-na, bem como grandes jornais e determinados militares.
A audiência da Comissão da Prefeitura foi motivada pela homenagem do deputado Jair Bolsonaro a seu ídolo, o torturador Brilhante Ustra. De lá para cá, essa admiração foi ratificada, até mesmo como autor de sua obra de cabeceira, um livro de negação da história e dos crimes da ditadura.
A negação dos crimes do Estado parece surtir um efeito favorável à sua "normalização" no campo dos discursos. Essa "normalização" do crime, cinicamente acompanhada de falas pretensamente de combate aos criminosos, gera circulação de frases como a da foto que tirei e escolhi para abrir esta nota, uma das falas do mencionado deputado federal, que está longe de estar isolada entre os elogios aos crimes proferidos sob a proteção da imunidade parlamentar. Cito este programa do partido que se lhe está opondo atualmente, por realizar um "experimento" com essas frases: https://twitter.com/ptbrasil/status/1053740761349582848
De um lado, produzem-se discursos; de outro, eles são calados, invisibilizados. Este outro programa, com testemunhos de Amelinha e Janaína Teles contra Brilhante Ustra, foi vetado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, do Tribunal Superior Eleitoral: https://twitter.com/ivonepita/status/1053778962453880832
O Ministro julgou que essa propaganda geraria "estados passionais com potencial para incitar comportamentos violentos" na população.
De fato, não deixa de ser coerente que o Judiciário, em outro momento de culpabilização das vítimas, considere que seja violenta não a defesa da tortura, e sim a denúncia desse crime, nesta conjuntura em que sua autoridade mais alta no Brasil, o presidente do Supremo Tribunal Federal, só encontra eufemismos para o regime que se baseou nela e em outros crimes contra a ditadura militar: o Ministro Toffoli chamou-o de "movimento".
Coincidentemente, o Ministro decidiu assessorar-se, ao tornar-se presidente da Corte, de um general da reserva que ajudou a formular o programa de governo de Bolsonaro. Há um alinhamento, ao menos de espíritos, entre corte e quartel.
Também se mostra coerente, dentro desse panorama do Judiciário brasileiro, que a magistrada que criticou este negacionismo histórico tenha sido, por essa razão, obrigada a explicar-se pelo o Conselho Nacional de Justiça. Trata-se de Kenarik Boujikian, uma reserva da dignidade da Justiça brasileira; ela afirmou "um ministro do Supremo Tribunal Federal [Dias Toffoli] chamar de movimento um golpe reconhecido historicamente é tripudiar sobre a história brasileira. De algum modo é desrespeitar as nossas vítimas.” Com isso, “o Judiciário está disfuncional em relação ao sistema democrático”.
Creio que ela expressou muito bem o momento em que vivemos, em que tal sistema, ele mesmo, se mostra "disfuncional".

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Desarquivando o Brasil CXLVI: Tortura de fetos e crianças na ditadura e elogio a torturadores na democracia

No twitter, uma rede social, fez-se uma alusão à tristíssima história de Carlos Alexandre Azevedo, em razão da defesa da tortura feita pelo candidato do PSL à presidência da república, bem como do elogio feito pro ele e seu vice a um militar declarado torturador pela Justiça brasileira, Brilhante Ustra.
A alusão ocorreu por causa do dia das crianças, e lembrou que a ditadura militar torturou crianças. Destaco, a respeito dessa história, o livro Infância roubada, publicação de 2014 da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" sobre as crianças desse Estado atingidas pela ditadura. Nesta reportagem da TVT, Adriano Diogo, que presidiu a Comissão, fala da obra, então recém-lançada.
Depois de o menino de 1 ano e 8 meses apanhar dos policiais porque chorou ao ver os policiais invadindo sua casa, ele ficou 15 horas em poder dos torturadores.  No texto introdutório, Amelinha Teles destaca esta história:




Ele se matou no início de 2013, antes da publicação desse livro, que foi organizado a partir das audiências "Verdade e infância roubada" que a Comissão da Verdade "Rubens Paiva" realizou naquele mesmo ano. Sua mãe, Darcy Andozia, contribuiu com um depoimento.
Qual foi o problema que os pais dele tiveram com a repressão política? Ajudaram a escrever um livro: Educação Moral e Cívica & Escalada Fascista no Brasil, enviado em manuscrito ao Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra. A obra foi considerada subversiva pelas autoridades. Eles foram indiciados em 1974 e absolvidos pela Justiça Militar em junho de 1977 porque o trabalho não chegou a ser publicado. Tivera sido, como não havia liberdade de pensamento e de expressão, teriam sido condenados à prisão mas não à tortura, que já era ilegal nessa época, apesar de sistematicamente praticada pelos agentes da repressão.
Além da criança, os pais, Andozia e Dermi Azevedo, também foram torturados, bem como a outra autora da obra, a educadora Maria Nilde Mascellani, responsável pelos ginásios vocacionais, experiência de ensino integral destruída pela ditadura militar. Mascellani havia sido aposentada compulsoriamente pelo AI-5.
A Justiça Militar era uma das instituições de garantia da impunidade dos crimes contra a humanidade praticados pela ditadura. Seguindo essa vocação institucional, absolveu os acusados, porém se recusou a apurar as torturas. Colo esta imagem de um documento do DEOPS/SP, um recorte incluído em uma das pastas de Ordem Social, guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo:



Como sempre, para ampliar a imagem, cliquem sobre ela.
Relembro a afirmação óbvia de que apoiar a ditadura é o mesmo que apoiar o crime, já conceitualmente, pois ela parte de um roubo da liberdade e corresponde a uma corrupção do regime político. Na prática, o ambiente de censura e arbítrio cria todas as condições para a livre criminalidade dos agentes do Estado (chacinas, genocídio, estupro, tortura) e dos amigos do Estado (especialmente corrupção). Não pode ser levado a sério quem elogia a ditadura e simultaneamente afirma ou finge que é contra o crime.
O livro Infância roubada também inclui o caso de fetos torturados, em razão das sevícias sofridas por suas mães durante a gravidez. Volto a citar Amelinha Teles, que destaca o caso de seu sobrinho, João Carlos Schmidt de Almeida Grabois, filho de Criméia Schmidt de Almeida, irmã de Amelinha e guerrilheira no Araguaia. Seu pai, André Grabois, é um dos desaparecidos políticos dessa época.
João Carlos, ainda antes de nascer, sabia quando seria levado, dentro da mãe, para as sessões de tortura, pois ouvia o barulho das chaves dos carcereiros e se inquietava ainda dentro do útero:


Além das referências a tortura e estupro, o livro trata também das crianças banidas do Brasil, bem como de bebês sequestrados pelos agentes da repressão. Todas essas situações geraram traumas que duraram até a vida adulta; no caso de Carlos Alexandre Azevedo, levaram ao suicídio.
No livro, pode-se também ler o depoimento de Carmen Sumi Nakasu de Souza, sequestrada quando tinha um ano, narrando os anos de terapia que precisou fazer. Talvez seja mais tocante, no entanto, assistir em vídeo às palavras da cantora em audiência da Comissão "Rubens Paiva": https://youtu.be/N5pHlS_bzjg?t=4623.
Brilhante Ustra, agente da repressão que foi declarado torturador pela justiça brasileira em processo movido pela família Teles, é um dos personagens principais do livro, e ele seviciou pessoalmente Criméia e outras mulheres. Volto a citar Amelinha Teles nesse livro:


É escandaloso que esse tipo de criminoso tenha sido homenageado no Congresso Nacional por um político que pretende a presidência do Brasil e que tem como obra de cabeceira o livro que esse torturador assinou.
Cito o eurodeputado português Francisco Assis: "Quem elogia o torturador de uma jovem mulher absolutamente indefesa atribui-se a si próprio um estatuto praticamente sub-humano." ("Um canalha à porta do Planalto", em O Público no último dia 11 de outubro). Espero que o Brasil não se rebaixe a tanto.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Democracia com instrumentos de escuta





Nos anos 10 vigiávamos os que subvertiam a vigilância, prendíamo-los em nome da segurança, a lei cabia na jaula

Nos anos 20 infiltrávamos os movimentos antiescravatura, se queriam a liberdade, o que mais desejariam depois?

Nos anos 30 metralhamos os membros da sociedade antimilitarista só para lhes dar uma justificativa

Nos anos 40 sabotamos em nome da pátria, da família, da decência e do jantar às 8 da noite as associações femininas

Nos anos 50 desaparecemos com anarquistas e quejandos no anexo secreto dos direitos humanos

Nos anos 60 brincávamos de tiro ao alvo com os negros que não sabiam seu papel no jogo de polícia e ladrão

Nos anos 70 comprávamos pastores e bombas e nenhum deus nos impedia

Nos anos 80 continuavam existindo muitos índios, solucionamos com a importação de minas

Nos anos 90 começamos a financiar os terroristas que nos bombardeariam nos anos 00

Nos anos 00 competíamos com os peixes na ocupação dos oceanos com plásticos e corpos de procedências variadas

Nos anos 10 vigiávamos os que subvertiam a vigilância, prendíamo-los em nome da segurança, a jaula transbordava da lei

em países distantes



agora todos aqui
















Nota: Trata-se de poema para um livro vindouro, O desvio das gentes.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Golpe judicial contra a liberdade de imprensa: Lula e a Folha versus parte do STF

A última decisão inconstitucional dada pelo Ministro Luiz Fux, impedindo o jornal Folha de S.Paulo de realizar e/ou publicar entrevista com o presidente Lula, que está preso em Curitiba (parece que todo dia as instituições precisam sublinhar, aos olhos contentes dos cínicos, o caráter político desta prisão), é absurda sob tantos aspectos, e tem gerado protestos não só nos setores democráticos do campo jurídico, como na imprensa: a Abraji considerou a decisão "alarmante".
Além da balbúrdia institucional em que se converteu o tribunal, com um Ministro revogando decisão monocrática de outro, e arrogando-se a competência alheia, a decisão fere tantas previsões jurídicas, tanto no aspecto processual quanto em relação ao mérito, pois a censura prévia e a criminalização da atividade da imprensa. O artigo de David Tangerino, "Fux e o jogo de sete erros", publicado na Folha, resume bem para o público em geral a impressionante violação de normas processuais e materiais cometidas por Fux.
Lewandowski voltou hoje a autorizar a entrevista, incluindo El País e Rede Minas. Vejamos o que acontecerá a seguir, pois a disfuncionalidade do tribunal mais alto do país certamente não parará nesse ponto.
A matéria de Alexandre Alves Miguez no Esquerda Diário lista as violações encarnadas na decisão de Fux e trata do "flagrante ataque direto do golpismo judiciário à própria lei burguesa", nestas eleições "tuteladas" pelo Judiciário e pelas Forças Armadas, o que é verdade.
Podem-se ler o pedido do partido Novo, que não tinha legitimidade processual para fazê-lo, e a malfadada decisão na matéria do Jota. Mais um exemplo da velha novidade que representam os liberais brasileiros, tradicionalmente contrários ao estado de direito e à liberdade de imprensa...

Essas análises não tratam, no entanto, da questão no plano internacional. Fux também comete um ilícito internacional e compromete o Estado brasileiro, tendo em vista a proibição da censura prévia e da criminalização da atividade jornalística pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica.
Eu escrevi sobre essa questão alguns anos atrás no texto "Os olhos vazados da liberdade: cultura jurídica autoritária no Brasil, censura judicial e Sistema Interamericano de Direitos Humanos". Destaco alguns trechos dele abaixo para contribuir com o debate, tantas vezes cerceado pelos horizontes do provincianismo constitucional:

O Supremo Tribunal Federal já pôde se expressar, na vigência da Constituição de 1988, no sentido de que a “livre expressão e manifestação de idéias, pensamentos e convicções não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público nem submetida a ilícitas interferências do Estado”, e que o direito de crítica aos homens públicos enquadra-se entre as funções públicas da imprensa. A repressão penal só se pode dar quando houver animus injuriandi vel diffamandi; este ausente, “a crítica que os meios de comunicação social dirigem às pessoas públicas, especialmente às autoridades e aos agentes do Estado, por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos da personalidade.” [Trata-se de decisão tomada por Celso de Mello, que relatou a Petição 3486/DF, a qual não foi conhecida. Foi uma estranha ação proposta por um advogado que sustentou que jornalistas da Revista Veja teriam ferido a segurança nacional por criticarem o governo federal.].
No entanto, persiste a incerteza jurídica, tendo em vista que no Supremo Tribunal Federal (e no Judiciário brasileiro em geral) continuam polêmicas, mesmo após o fim da lei de imprensa, sobre a colisão entre a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. Nessa polêmica, em geral não se faz referência ao Pacto de São José da Costa Rica, ou Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que prevê, no artigo 13:
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
Isto é, a proteção da intimidade não pode ser feita por meio de censura prévia, judicial ou não, tendo em vista a liberdade de imprensa – opção feita pelos Estados da OEA devido à importância dessa liberdade para a democracia. A Convenção Europeia de Direitos Humanos trata a matéria de forma um pouco diferente .
Há colisão com a Constituição de 1988? Ela prevê, no artigo 220, que a “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”; no parágrafo primeiro desse artigo, proíbe-se “embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”. Isto é, a imprensa deverá respeitar, na ordem dos incisos do artigo 5º, a livre manifestação do pensamento; o direito de resposta e a proteção à imagem; os direitos à intimidade, à vida privada e à honra; livre exercício de trabalho ou profissão; acesso à informação e sigilo das fontes.
A Constituição não prevê que o respeito a esses direitos deve ocorrer por meio de censura prévia – o parágrafo segundo do artigo 220, que proíbe a censura, leva mesmo a pensar o oposto. Não parece, pois, haver conflito com o tratado da OEA, que, assim como a Carta brasileira, protege tanto o acesso à informação como a liberdade de expressão.
[...]

Marco da liberdade de imprensa na Corte Interamericana de Direitos Humanos, pode-se destacar o caso de Ivcher Bronstein contra Peru, julgado em 6 de fevereiro de 2001. O empresário Bronstein havia sido privado de sua nacionalidade peruana (era cidadão naturalizado) para que, assim, perdesse a propriedade sobre o Canal 2 de Televisão (os meios de comunicação não podiam ser da propriedade de estrangeiros), de que era o acionista majoritário.
Em 1997, o Canal difundiu denúncias de que o Serviço de Inteligência teria cometido torturas e assassinatos, o que gerou as represálias oficiais: nesse mesmo ano, foi anunciado que o Diretor-Geral da Polícia Nacional não encontrou o antigo processo de naturalização de Bronstein, pelo que decidiu, por resolução, cancelar-lhe a cidadania peruana. Os acionistas minoritários assumiram a direção do Canal e excluíram os jornalistas que haviam atuado nas reportagens contra o governo, o que feriu a liberdade de expressão desses profissionais, bem como o direito à informação do povo peruano.
A Comissão Interamericana, nesse caso, procurou demonstrar que no Peru, à época do regime de Fujimori, realizavam-se “práticas repressivas sistemáticas dirigidas para silenciar jornalistas investigadores que denunciaram irregularidades na conduta do Governo, nas Forças Armadas e no Serviço de Inteligência Nacional” (§ 143). O Estado peruano decidiu simplesmente denunciar a Convenção para não ter que responder ao processo. Diante desse ato, em 1999, a Corte decidiu que ela mesma tinha a competência para determinar os efeitos da denúncia, e dispôs que esse ato não poderia ter efeito imediato – e, assim, o processo continuou, mas à revelia do Estado, que acabou sendo condenado por violar o direito à nacionalidade, à garantia judicial, à propriedade privada e à liberdade de expressão.
De fato, o regime de Fujimori não tinha um caráter democrático, e a perseguição a jornalistas foi um dos sintomas do autoritarismo. A atuação da Corte ressaltou o caráter imprescindível da liberdade de imprensa em um Estado de direito.
A Suprema Corte americana, em precedente de 1964 (New York Times v. Sullivan), cunhou a doutrina da “real malícia’ (actual malice), segundo a qual, quando a pessoa ofendida pela imprensa está envolvida em assuntos de interesse público, para que o jornalista seja responsabilizado, é preciso que o autor prove que ele teve a intenção de causar dano, ou que tinha conhecimento de que difundia notícias falas, ou foi negligente na busca da verdade.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos considera que essa doutrina é a desposada pela Convenção Americana (2001, § 9), e que a responsabilidade do jornalista, nesse caso, não pode ter caráter penal:
18. Para assegurar uma adequada defesa da liberdade de expressão, os Estados devem ajustar suas leis sobre difamação, injúria e calúnia de forma tal que só possam ser aplicadas sanções civis no caso de ofensas a funcionários públicos. Nestes casos, a responsabilidade, por ofensas contra funcionários públicos, só deveria incidir em casos de “má fé”.  A doutrina da “má fé” significa que o autor da informação em questão era consciente de que a mesma era falsa ou atuou com temerária despreocupação sobre a verdade ou a falsidade de esta informação. Estas ideias foram recolhidas pela CIDH ao aprovar os Princípios sobre Liberdade de Expressão, especificamente o Princípio 10. As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a divulgação de informação de interesse público. A proteção à reputação deve estar garantida só através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida for um funcionário público ou pessoa pública ou privada que tenha se envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público. [...] As leis de calúnia e injúria são, em muitas ocasiões leis que, em lugar de proteger a honra das pessoas, são utilizadas para atacar ou silenciar o discurso que se considera crítico da administração pública. (OEA. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2002)
O décimo princípio da Declaração sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em igual sentido, prevê:
As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a difusão de informação de interesse público. A proteção e à reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou uma pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público. Ademais, nesses casos, deve-se provar que, na divulgação de notícias, o comunicador teve intenção de infligir dano ou que estava plenamente consciente de estar divulgando notícias falsas, ou se comportou com manifesta negligência na busca da verdade ou falsidade das mesmas.
A esse respeito, os litígios sobre imprensa no Brasil precisam ser interpretados de acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos, que entrou em vigor para o Brasil em 1992 .
[...]

No Brasil, a primeira vez que um censor voltou a frequentar uma redação de jornal depois da ditadura militar foi em Brasília, em outubro de 2002, quando o Desembargador Jirair Meguerian, a pedido do então governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz (então do PMDB, e candidato à reeleição), determinou que o oficial de justiça Ricardo Yoshida, acompanhado do advogado Adolfo Marques da Costa, entrassem na redação com poderes de censurar qualquer notícia relativa a uma gravação realizada pela Polícia Federal, com autorização judicial, que relacionava o governador com empresários acusados de parcelamento irregular do solo em Brasília (REDE EM DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA, 2006).
O problema da colisão entre direitos da personalidade, como a intimidade e a honra, com a liberdade de imprensa já foi abordado por vários autores. Ives Gandra Martins defende que é possível tutela preventiva quando há ameaça de lesão às garantias fundamentais dos incisos IV, V, X, XIII e XIV do artigo 5º da Constituição (1998, p. 809-810). Bueno de Godoy entende que não há censura prévia quando há tutela preventiva desses direitos, pois a liberdade de imprensa não seria absoluta, devendo o juiz, em cada caso concreto, fazer o balanceamento desses direitos (2001); posição semelhante é adotada por Leite Sampaio (1998); Grandinetti Castanho de Carvalho defende a proibição de divulgação, segundo uma ponderação de bens – quando a censura é feita pelo Judiciário, ela não seria censura, mas composição de “interesses em conflito concretamente invocados” (2003, p. 142); Luís Roberto Barroso segue esse autor (2002, p. 364-366). Segundo Bulos, a Constituição só teria vedado a “censura administrativa, praticada pelo Poder Executivo”, e não o “poder cautelar” do Judiciário para prevenir “ameaça de lesão a direito” (2003, p. 1343-1344).
Nenhum desses autores menciona que existe norma internacional que vincula o Brasil e proíbe essa tutela preventiva. Se era verdade, como diz Edilsom Pereira de Farias, que “o legislador pátrio” não elaborou lei sobre a matéria de liberdade de imprensa (2000, p. 172), isso não significa, diferentemente do exposto por esse autor, que não há norma a respeito no direito brasileiro, tendo em vista a convenção da OEA. Leyser, por outro lado, refere-se à Convenção no tocante ao “direito à vida privada” (1999, p. 40), mas deixa de fazê-lo em relação à liberdade de imprensa.
Por que o direito aplicável não é nem ao menos discutido pelas decisões e pela doutrina já relacionadas? Há uma inércia jurisprudencial contrária à liberdade de imprensa, sobrevivência da cultura autoritária no Judiciário brasileiro, e sobrevive um provincianismo constitucional nessa matéria, isto é, permanecem o desconhecimento e a inobservância dos tratados internacionais de direitos humanos.
O julgamento da ADPF n. 130, que decidiu pela não recepção da lei brasileira de imprensa pela Constituição de 1988, não foi uma exceção. O Partido Democrático Trabalhista (PDT), em sua petição inicial, fez eferência tão-somente, no tocante às fontes internacionais, à Declaração Universal de 1948. A Procuradoria Geral da União, em seu parecer, devidamente lembrou do Pacto de San José, mas não tocou na questão da censura prévia.
Os Ministros, em sua argumentação, em regra passaram por cima da internacionalização dos direitos humanos, no entanto prevista na própria Constituição, com exceção de Celso de Mello, que se referiu à Declaração de Chapultec. No entanto, mesmo ele deixou de mencionar os julgados da Corte Interamericana. Em um esquecimento de disposições do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Ministro Joaquim Barbosa afirmou que, sem a lei de imprensa, o Brasil deixaria de ter norma contra a propagação do preconceito de raça e de classe, “sem qualquer possibilidade de contraponto por parte dos grupos sociais eventualmente prejudicados.”
Diante dessas lacunas deixadas por esse julgamento, não admira que a censura judicial no Brasil prossiga, à revelia dos parâmetros do Direito Interamericano, que não são, o mais das vezes, sequer mencionados pelos julgadores e juristas.
[...]

Continuísmos políticos nem sempre se expressam, no direito, pela continuidade da legislação. Se a criação de direito é uma função política, não se deve esquecer que ela não ocorre apenas por meio do Poder Legislativo, mas também pelos outros Poderes, em suas várias hierarquias, e por vários atores sociais em suas práticas.
No caso do Brasil, pode-se verificar que, apesar de a Constituição da República promulgada em 1988, em reação à censura institucionalizada da ditadura militar, ter proibido a censura, essa prática permaneceu com o apoio do Poder Judiciário.
Trata-se de um problema de não recepção dessas normas provenientes do autoritarismo. No tocante à lei brasileira de imprensa, a lei n.o 5250 de 1967, editada durante a ditadura militar, o Supremo Tribunal Federal pôde recentemente decidir que ela não foi recepcionada pela Constituição de 1988, com o julgamento a ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) n.o 130, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT).
No entanto, isso não tem detido a censura judicial. O fundamento da continuidade é antes cultural do que normativo. Deve-se lembrar recente pesquisa que verificou que 66% dos magistrados na primeira instância da Justiça Estadual do Rio de Janeiro, comarca da Capital, nunca aplicaram a Convenção Americana de Direitos Humanos e 24% só o faziam raramente. 79% não estavam informados sobre o funcionamento dos sistemas da ONU e da OEA de proteção dos direitos humanos. 40% nunca estudaram a respeito de direitos humanos. No entanto, os resultados poderiam ter sido bem piores, se o universo da pesquisa não tivesse sido reduzido: quarenta por cento dos questionários não foram respondidos, seja porque o juiz se recusou, sem motivo, a respondê-lo, ou a receber o pesquisador, ou por ter declarado que o seu trabalho não tinha... relação com os direitos humanos (CUNHA..., 2005).
Essa cultura infensa aos direitos humanos conjuga-se com o provincianismo em relação ao direito internacional, uma vez que estes direitos estão internacionalizados, contrastando com a cultura jurídica predominante no Judiciário brasileiro.