O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Desarquivando o Brasil CXLVI: Tortura de fetos e crianças na ditadura e elogio a torturadores na democracia

No twitter, uma rede social, fez-se uma alusão à tristíssima história de Carlos Alexandre Azevedo, em razão da defesa da tortura feita pelo candidato do PSL à presidência da república, bem como do elogio feito pro ele e seu vice a um militar declarado torturador pela Justiça brasileira, Brilhante Ustra.
A alusão ocorreu por causa do dia das crianças, e lembrou que a ditadura militar torturou crianças. Destaco, a respeito dessa história, o livro Infância roubada, publicação de 2014 da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" sobre as crianças desse Estado atingidas pela ditadura. Nesta reportagem da TVT, Adriano Diogo, que presidiu a Comissão, fala da obra, então recém-lançada.
Depois de o menino de 1 ano e 8 meses apanhar dos policiais porque chorou ao ver os policiais invadindo sua casa, ele ficou 15 horas em poder dos torturadores.  No texto introdutório, Amelinha Teles destaca esta história:




Ele se matou no início de 2013, antes da publicação desse livro, que foi organizado a partir das audiências "Verdade e infância roubada" que a Comissão da Verdade "Rubens Paiva" realizou naquele mesmo ano. Sua mãe, Darcy Andozia, contribuiu com um depoimento.
Qual foi o problema que os pais dele tiveram com a repressão política? Ajudaram a escrever um livro: Educação Moral e Cívica & Escalada Fascista no Brasil, enviado em manuscrito ao Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra. A obra foi considerada subversiva pelas autoridades. Eles foram indiciados em 1974 e absolvidos pela Justiça Militar em junho de 1977 porque o trabalho não chegou a ser publicado. Tivera sido, como não havia liberdade de pensamento e de expressão, teriam sido condenados à prisão mas não à tortura, que já era ilegal nessa época, apesar de sistematicamente praticada pelos agentes da repressão.
Além da criança, os pais, Andozia e Dermi Azevedo, também foram torturados, bem como a outra autora da obra, a educadora Maria Nilde Mascellani, responsável pelos ginásios vocacionais, experiência de ensino integral destruída pela ditadura militar. Mascellani havia sido aposentada compulsoriamente pelo AI-5.
A Justiça Militar era uma das instituições de garantia da impunidade dos crimes contra a humanidade praticados pela ditadura. Seguindo essa vocação institucional, absolveu os acusados, porém se recusou a apurar as torturas. Colo esta imagem de um documento do DEOPS/SP, um recorte incluído em uma das pastas de Ordem Social, guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo:



Como sempre, para ampliar a imagem, cliquem sobre ela.
Relembro a afirmação óbvia de que apoiar a ditadura é o mesmo que apoiar o crime, já conceitualmente, pois ela parte de um roubo da liberdade e corresponde a uma corrupção do regime político. Na prática, o ambiente de censura e arbítrio cria todas as condições para a livre criminalidade dos agentes do Estado (chacinas, genocídio, estupro, tortura) e dos amigos do Estado (especialmente corrupção). Não pode ser levado a sério quem elogia a ditadura e simultaneamente afirma ou finge que é contra o crime.
O livro Infância roubada também inclui o caso de fetos torturados, em razão das sevícias sofridas por suas mães durante a gravidez. Volto a citar Amelinha Teles, que destaca o caso de seu sobrinho, João Carlos Schmidt de Almeida Grabois, filho de Criméia Schmidt de Almeida, irmã de Amelinha e guerrilheira no Araguaia. Seu pai, André Grabois, é um dos desaparecidos políticos dessa época.
João Carlos, ainda antes de nascer, sabia quando seria levado, dentro da mãe, para as sessões de tortura, pois ouvia o barulho das chaves dos carcereiros e se inquietava ainda dentro do útero:


Além das referências a tortura e estupro, o livro trata também das crianças banidas do Brasil, bem como de bebês sequestrados pelos agentes da repressão. Todas essas situações geraram traumas que duraram até a vida adulta; no caso de Carlos Alexandre Azevedo, levaram ao suicídio.
No livro, pode-se também ler o depoimento de Carmen Sumi Nakasu de Souza, sequestrada quando tinha um ano, narrando os anos de terapia que precisou fazer. Talvez seja mais tocante, no entanto, assistir em vídeo às palavras da cantora em audiência da Comissão "Rubens Paiva": https://youtu.be/N5pHlS_bzjg?t=4623.
Brilhante Ustra, agente da repressão que foi declarado torturador pela justiça brasileira em processo movido pela família Teles, é um dos personagens principais do livro, e ele seviciou pessoalmente Criméia e outras mulheres. Volto a citar Amelinha Teles nesse livro:


É escandaloso que esse tipo de criminoso tenha sido homenageado no Congresso Nacional por um político que pretende a presidência do Brasil e que tem como obra de cabeceira o livro que esse torturador assinou.
Cito o eurodeputado português Francisco Assis: "Quem elogia o torturador de uma jovem mulher absolutamente indefesa atribui-se a si próprio um estatuto praticamente sub-humano." ("Um canalha à porta do Planalto", em O Público no último dia 11 de outubro). Espero que o Brasil não se rebaixe a tanto.

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