O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 21 de outubro de 2018

Desarquivando o Brasil CXLVII: Merlino, Ustra e o TJ-SP: uma jurisprudência bolsonarista



Eu assisti em pé, no último 17 de outubro, ao julgamento do recurso que Brilhante Ustra, falecido em 2015, e que já havia sido declarado torturador pela Justiça brasileira no processo da Família Teles, impetrou em processo que havia sido movido pela Família Merlino, em razão da tortura e morte do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino em 1971.
Ele havia sido condenado pela juíza Claudia de Lima Menge a indenizar em cem mil reais as autoras, a viúva e a irmã de Merlino. O jornalista morreu de gangrena nas pernas após 24 horas de tortura no pau-de-arara. A 13ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), no dia 17, reformou a sentença.
A matéria do Uol, "TJ vê prescrição e barra indenização de Ustra a família de jornalista morto na ditadura", escrita por Janaina Garcia, destaca bem as declarações da viúva, a professora Ângela Mendes de Almeida, no sentido de que "o TJ tolera a tortura", e da testemunha, ex-ministra da secretaria das mulheres no governo de Dilma Rousseff e ex-presa política, Eleonora Menicucci, de que o julgamento "legitima ainda um autoritarismo e um pré-fascismo em que estamos entrando", referindo-se a Jair Bolsonaro. Adriano Diogo, ex-preso político e ex-presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", que tratou do caso de Merlino, destacou que o jornalista foi assassinado mais uma vez hoje, e isso afeta toda sua geração.
Assusta, porém a matéria está correta nesta afirmação: "Os desembargadores se referiram a Ustra como "suposto torturador". No entendimento deles, não houve "nexo causal" que relacionasse o coronel à tortura e posterior morte de Merlino."
A jornalista e sobrinha do morto político, Tatiana Merlino, escreveu para The Intercept a matéria "Meu tio foi assassinado pelo ídolo de Bolsonaro".
A matéria do El Pais, "Magistrados ignoram testemunhas e citam laudo forjado da ditadura para isentar Ustra", de Felipe Betim, também está correta, embora seja chocante o que diz:
O relator do caso, desembargador Salles Rossi, foi além. Primeiro a votar, defendeu que não havia provas nem testemunhas presenciais que indiquem que Ustra participou da tortura a Merlino durante a "chamada ditadura militar". Além de não levar em conta o fato de que o coronel era o responsável pelo DOI-CODI, o desembargador desconsiderou o relato das pessoas que presenciaram a tortura do jornalista, sendo a principal delas a socióloga Eleonora Menicucci, ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres no Governo Dilma Rousseff (PT). [...] O magistrado também desconsiderou documentos como o da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instaurada pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a Comissão Nacional da Verdade, instaurada pelo Governo Rousseff, e a Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo. Todas reconhecem a responsabilidade do Estado brasileiro e de Ustra pela morte de Merlino.
Com efeito, os magistrados decidiram prover o recurso de Ustra com base unicamente no argumento da prescrição, que era suficiente. Com isso, decidiram de forma diferente do Superior Tribunal de Justiça; o advogado Aníbal Castro de Souza, falando aos Jornalistas Livres ("Tribunal de SP tortura e mata novamente o jornalista Luiz Eduardo Merlino"; Ângela Mendes de Almeida Eleonora Menicucci e Adriano Diogo também falam no vídeo, para o qual fiz uma declaração; eles também aparecem na matéria da TVT, "Maior torturador da ditadura, Ustra é absolvido em segunda instância").
Sobre esse debate, quero apenas aduzir alguns pontos.

Primeiro, tendo em vista a pergunta logo no início do vídeo dos Jornalistas Livres, lembro que, em termos de direito internacional, não há nenhum obstáculo em relação à responsabilidade individual dos torturadores no tocante à reparação das vítimas. Lembro, por exemplo, da Resolução A/RES/60/147 da Assembleia Geral da ONU, aprovada em 16 de dezembro de 2005. Cito em espanhol:
IX. Reparación de los daños sufridos
15. Una reparación adecuada, efectiva y rápida tiene por finalidad promover la justicia, remediando las violaciones manifiestas de las normas internacionales de derechos humanos o las violaciones graves del derecho internacional humanitario. La reparación ha de ser proporcional a la gravedad de las violaciones y al daño sufrido. Conforme a su derecho interno y a sus obligaciones jurídicas internacionales, los Estados concederán reparación a las víctimas por las acciones u omisiones que puedan atribuirse al Estado y constituyan violaciones manifiestas de las normas internacionales de derechos humanos o violaciones graves del derecho internacional humanitario. Cuando se determine que una persona física o jurídica u otra entidad está obligada a dar reparación a una víctima, la parte responsable deberá conceder reparación a la víctima o indemnizar al Estado si éste hubiera ya dado reparación a la víctima. 
A pessoa física autora de graves violações de direitos humanos pode ser obrigada a indenizar uma vítima. Ademais, a decisão sobre a prescrição fere a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o que deve ensejar um recurso especial.
A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil, referente à Guerrilha do Araguaia, embora tenha enfatizado a responsabilidade criminal, não deixou de mencionar esse tipo de responsabilidade, no sentido de que devam indenizar as vítimas e familiares;
155. Adicionalmente, o mesmo Grupo de Trabalho manifestou sua preocupação quanto a que, em situações pós-conflito, se promulguem leis de anistia ou se adotem outras medidas que tenham como efeito a impunidade, e lembrou aos Estados que:
é fundamental adotar medidas efetivas de prevenção, para que não haja desaparecimentos. Entre elas, destacam-se […] a instauração de processo contra todas as pessoas acusadas de cometer atos de desaparecimento forçado, a garantia de que sejam processadas em tribunais civis competentes e que não se dê acolhida a nenhuma lei especial de anistia ou a medidas análogas, que possam eximi-las de ações ou sanções penais, e da concessão de reparação e indenização adequada às vítimas e seus familiares.
A citação, a Corte retirou-a, cito a nota correspondente, do "Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, das Nações Unidas. Relatório, supra nota 211, par. 599. No mesmo sentido, cf. Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários das Nações Unidas. Relatório ao Conselho de Direitos Humanos, 4° período de sessões. U.N. Doc. A/HRC/4/41, de 25 de janeiro de 2007, par. 500 (tradução da Secretaria da Corte Interamericana)."

Em segundo lugar, é importante tratar de outra questão técnica que as reportagens não abordaram: o da natureza da ação proposta no caso de Merlino. As autoras não queriam indenização pela morte, e sim um caminho judicial semelhante ao que foi tomado no caso da Família Teles, isto é, de uma ação meramente declaratória: Ustra seria declarado torturador, mas não seria preso por isso, nem teria de indenizar os familiares.
No caso de Merlino, no entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou improcedente uma ação meramente declaratória: somente caberia, segundo o TJ, uma ação indenizatória. Neste julgamento de outubro de 2018, no entanto, os magistrados decidiram que, se a ação fosse declaratória, não teria havido prescrição...
O professor Fábio Konder Comparato explicou a situação que gerou este nonsense judicial na audiência pública da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, "Carlos Alberto Brilhante Ustra: torturas e assassinatos de militantes políticos na ditadura", que ocorreu em 3 de junho de 2016. A audiência tinha como objeto as graves violações de direitos humanos praticadas pelo militar mencionado, e a fala do jurista teve como finalidade "acusar o Judiciário de cumplicidade com crimes contra a humanidade".
No caso de Merlino, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou improcedente a ação declaratória; Comparato comenta a respeito do saber jurídico dos magistrados envolvidos, que "devem ter aprendido isso em não sei que faculdade". Quando ocorreu a audiência na Comissão, a ação estava parada. O jurista explicou que o Judiciário paulista atrasou a causa por motivos políticos; cito suas palavras na audiência:
Em 26 de novembro de 2012, guardem bem esse nome, por favor, o Relator Desembargador Luiz Antônio Costa, declarou-se suspeito para relatar o feito, pois ele, abre aspas, “exige análise de contexto político partidário, o que não posso fazer com a necessária isenção”.
Eu me esqueci de perguntar, nos autos, se o Desembargador Luiz Antonio Costa fazia parte do Partido do assassino ou do partido da vítima.
A ação foi, então, redistribuída a outro Desembargador que, durante três anos, disse que não tinha tido tempo de julgar, de por em votação, pois ele tinha muito trabalho.
Continuou tendo muito trabalho até, com a graça de Deus, ser aposentado.
Então, houve redistribuição, e o feito foi para o Desembargador Salles Rossi, guardem também esse nome, que, em 30 de abril de 2015, proferiu o seguinte despacho: “Considerando a notícia de suspensão da ação penal, dirigida em face do ora apelante, ou seja, Ustra, por decisão da Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, até que aquela Corte volte a julgar a validade da Lei de Anistia, sem prejuízo das demais questões deduzidas do recurso interposto, entendo que, se um dos fundamentos do apelo que ataca a sentença é, exatamente, a possibilidade de discussão da reparação pretendida, ao depois da promulgação de três leis especiais, de consequência, de princípios da especialidade etc., reputo justificada a suspensão do presente feito, até que a ação penal em questão seja julgada ou que o Supremo Tribunal Federal decida sobre a validade da Lei de Anistia”.
Ou seja, o Desembargador Salles Rossi não concluiu o curso de Direito ou, então, fraudou a entrada na Magistratura ou, simplesmente, S.Exa. ignora o fato de que a responsabilidade cível é independente da criminal.
E até hoje isso permanece, de modo que eu volto ao ponto inicial dessa minha exposição. Nós temos que levantar uma espécie de juízo popular sobre a irresponsabilidade de vários dos nossos magistrados, a começar pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
As palavra de Comparato foram duras, porém justas. A postura judicial de se manter aparentemente neutro entre a dignidade humana e o pau-de-arara não corresponde, realmente, a uma neutralidade, e sim a uma opção jurídico-política pela garantia dos crimes contra a humanidade.
Salles Rossi, que havia cometido esses erros jurídicos que Comparato julgou primários (ele volta a essa questão a 2 horas e 41 minutos da decisão), era o relator da ação, enfim julgada com o mesmo estilo e saber antes demonstrados.

Um terceiro ponto é a negação do processo de justiça de transição e o negacionismo do Judiciário brasileiro. De fato, o relator do caso de Merlino citou as testemunhas do processo, porém duvidando de sua veracidade, e ignorou também o conjunto probatório do relatório da CNV, que incluiu o material levantado pelo Ministério Público Federal neste caso para propor a ação criminal contra Ustra e os outros agentes:

Para ampliar a imagem, cliquem sobre ela para abrir a ligação em outra janela.
Além disso, a CNV recomendou que o certificado de óbito de Merlino fosse retificado "para que conste como causa da morte 'morto em razão de tortura sofrida nas dependências do DOI-CODI do II
Exército/SP'":

Trata-se de páginas do volume III do Relatório, no qual foram individualizados os mortos e desaparecidos políticos que a CNV conseguiu pesquisar (com forte base no Dossiê dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos): http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/
Comparato acusou o Judiciário de cumplicidade com crimes contra a humanidade, e talvez ele pense o mesmo no tocante a esta decisão que decidiu negar todo o trabalho de produção social da justiça de transição, bem como sobre vários dos últimos exemplos de descumprimento da Constituição para violação de direitos humanos, muito numerosos para serem listados aqui, como o que chamei, para ficar entre os mais recentes, de "golpe judicial contra a liberdade de imprensa", curiosamente movido por um partido soi-disant liberal.
Com isso, o Judiciário alinha-se a posições contrárias aos direitos humanos que, curiosamente, também são defendidas pelo candidato Bolsonaro, um conhecido negacionista dos crimes da ditadura militar e defensor da tortura.
Se a maior parte das comissões da verdade brasileiras, inclusive a Nacional, encerrou seus trabalhos, a Comissão da Inverdade continua tão intensa quanto não institucionalizada, embora presente nas instituições; certos juristas e professores de direito integram-na, bem como grandes jornais e determinados militares.
A audiência da Comissão da Prefeitura foi motivada pela homenagem do deputado Jair Bolsonaro a seu ídolo, o torturador Brilhante Ustra. De lá para cá, essa admiração foi ratificada, até mesmo como autor de sua obra de cabeceira, um livro de negação da história e dos crimes da ditadura.
A negação dos crimes do Estado parece surtir um efeito favorável à sua "normalização" no campo dos discursos. Essa "normalização" do crime, cinicamente acompanhada de falas pretensamente de combate aos criminosos, gera circulação de frases como a da foto que tirei e escolhi para abrir esta nota, uma das falas do mencionado deputado federal, que está longe de estar isolada entre os elogios aos crimes proferidos sob a proteção da imunidade parlamentar. Cito este programa do partido que se lhe está opondo atualmente, por realizar um "experimento" com essas frases: https://twitter.com/ptbrasil/status/1053740761349582848
De um lado, produzem-se discursos; de outro, eles são calados, invisibilizados. Este outro programa, com testemunhos de Amelinha e Janaína Teles contra Brilhante Ustra, foi vetado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, do Tribunal Superior Eleitoral: https://twitter.com/ivonepita/status/1053778962453880832
O Ministro julgou que essa propaganda geraria "estados passionais com potencial para incitar comportamentos violentos" na população.
De fato, não deixa de ser coerente que o Judiciário, em outro momento de culpabilização das vítimas, considere que seja violenta não a defesa da tortura, e sim a denúncia desse crime, nesta conjuntura em que sua autoridade mais alta no Brasil, o presidente do Supremo Tribunal Federal, só encontra eufemismos para o regime que se baseou nela e em outros crimes contra a ditadura militar: o Ministro Toffoli chamou-o de "movimento".
Coincidentemente, o Ministro decidiu assessorar-se, ao tornar-se presidente da Corte, de um general da reserva que ajudou a formular o programa de governo de Bolsonaro. Há um alinhamento, ao menos de espíritos, entre corte e quartel.
Também se mostra coerente, dentro desse panorama do Judiciário brasileiro, que a magistrada que criticou este negacionismo histórico tenha sido, por essa razão, obrigada a explicar-se pelo o Conselho Nacional de Justiça. Trata-se de Kenarik Boujikian, uma reserva da dignidade da Justiça brasileira; ela afirmou "um ministro do Supremo Tribunal Federal [Dias Toffoli] chamar de movimento um golpe reconhecido historicamente é tripudiar sobre a história brasileira. De algum modo é desrespeitar as nossas vítimas.” Com isso, “o Judiciário está disfuncional em relação ao sistema democrático”.
Creio que ela expressou muito bem o momento em que vivemos, em que tal sistema, ele mesmo, se mostra "disfuncional".

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