Em programa que saiu em abril de 2015, eu falava com a Rádio da Universidade de Salamanca sobre a "tese" do "marco temporal", que tinha (e continua a ter, pois o problema não acabou) como finalidade legitimar o extermínio e as remoções forçadas da ditadura militar, que, com o número estimado de 8.350 mortos e desaparecidos para apenas 10 etnias pesquisadas pela Comissão Nacional da Verdade, foi evidentemente um regime genocida. Os criminosos que governavam o país matavam e expulsavam geralmente em nome de projetos desenvolvimentistas, como rodovias e usinas hidrelétricas.
Falei em português; o tema começa a partir dos sete minutos da transmissão. Tentei explicar a declaração, publicada no portal do Índio É Nós, contra o marco temporal. Ela é bem simples: a ideia do "marco" é de perverter a Constituição de 1988. A Constituição, nos artigos 231 e 232, reconheceu os direitos indígenas às suas terras como originários, isto é, anteriores à própria Constituição e decorrentes do caráter tradicional de sua posse. Os setores anti-indígenas querem sabotar esse capítulo da Constituição ("Dos índios") pretendendo que, pelo contrário, ela teria limitado os direitos daqueles povos apenas às terras que ocupavam no exato momento da promulgação da Constituição, ou seja, 5 de outubro de 1988!
Parece óbvio que uma cláusula restritiva dessa natureza (que seria, de toda forma, escandalosa e contrária à dignidade daqueles povos) deveria ser explícita. A questão jurídica é completamente disparatada e não têm base alguma. Fundamentam-na interesses políticos e a leniência judicial com as traduções jurídicas dos discursos de ódio contra os indígenas.
Relembro aqui a declaração, de 12 de abril de 2015, pois continua atual:
1. O Estado brasileiro, por meio do relatório da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro de 2014, reconheceu ter cometido graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas. Somente de dez etnias, a Comissão Nacional da Verdade apurou o número de 8350 mortos. Além de terem sido vítimas de genocídio, esses povos foram removidos violentamente de suas terras.2. Por essa razão, o Estado brasileiro aprovou, como recomendação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, reparar esses povos por meio da demarcação, desintrusão e recuperação ambiental de suas terras, medidas mínimas e imprescindíveis de justiça restaurativa.3. Essas medidas de reparação não são compatíveis com uma interpretação restritiva dos direitos humanos e da Constituição da República que faça crer que os constituintes desejavam, nos artigos 231 e 232, legitimar o criminoso status quo da remoção forçada dos povos indígenas.4. A remoção forçada foi, de acordo com o próprio Estado brasileiro, o produto do genocídio e de outras ações violentas da ditadura: envenenamento, fuzilamento e bombardeios de tribos pelas Forças Armadas, criação de campos de concentração para índios. Usar esses fatos contra os povos indígenas significaria culpabilizar as vítimas e beneficiar os assassinos com sua própria iniquidade, violando preceitos básicos de justiça e de dignidade.5. A demarcação das terras indígenas é uma dívida histórica do Estado brasileiro e uma exigência no campo dos direitos humanos que a Constituição cidadã determinou que fosse cumprida até 1993. Exigir que os índios e as comunidades tradicionais em geral devessem estar presentes em 1988 nas terras ainda não demarcadas significaria legalizar o legado do genocídio cometido contra os povos indígenas, além de violar gravemente as normas nacionais e internacionais de justiça de transição e de diversidade cultural.
Em 12 de abril de 2015, assinaram-na: Associação Juízes para a Democracia, Índio é Nós,
Movimento de Apoio aos Povos Indígenas (MAPI), Uma Gota No Oceano, Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição (IDEJUST), Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Tortura Nunca Mais/SP, União de Mulheres de São Paulo, Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Instituto Socioambiental (ISA), Associação Bem Te Vi Diversidade, Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), Grupo Nacional dos Membros do Ministério Público (GNMP), Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).
A partir dessa mobilização, pediu-se um parecer a José Afonso da Silva, o grande constitucionalista, que demonstra cabalmente a inconstitucionalidade do chamado "marco temporal", explicando por que as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol (onde está o tal "marco") são específicas e não atingem outras terras; o texto está disponível on-line: http://www.indio-eh-nos.eco.br/wp-content/uploads/2014/03/parecer-jose-afonso-da-silva-marco-temporal-2015.pdf. O movimento indígena distribuiu-o a todos os Ministros do Supremo Tribunal Federal.
O parecer foi publicado posteriormente em livro organizado por Manuela Carneiro da Cunha e Samuel Barbosa, Direitos dos povos indígenas em disputa (lançado pela Editora da Unesp em 2018 a partir de seminário realizado na Faculdade de Direito da USP), já em segunda edição. O artigo que publiquei na obra dedica-se à questão no Direito Internacional. Não há controvérsia alguma neste ponto: trata-se de um grave ilícito internacional. Penso que adotar o "marco temporal" seria o mesmo que elevar o crime de lesa-humanidade à categoria de lei fundamental do país.
Pouco se avançou, no fundo, em termos de justiça de transição no Brasil, e muito menos quando se trata dos povos indígenas, os mais atingidos, em termos numéricos, pelo autoritarismo. Uma das provas disso é justamente o "marco temporal". A relação desse problema com a ditadura militar, fortemente racista e anti-indígena (ela via os povos originários como simples obstáculos aos desenvolvimento e/ou ameaças às fronteiras, e por isso deveriam ser afastados ou dizimados) é direta: os que defendem o "marco temporal" querem completar a obra etnocida e genocida daqueles tempos para tomar as terras dos povos indígenas em favor dos interesses do mercado, com diversas consequências nefastas que incluem devastação ambiental (as terras mais preservadas no Brasil são as habitadas por esses povos e pelas comunidades tradicionais), a desertificação e a falta d'água.
Genocídio e deserto correspondem ao verdadeiro nome do que os racistas chamam de "integração do indígena à sociedade".
Trata-se, pois, de esforços de desfazer a ordem constitucional da transição democrática, isto é, desfazer essa transição. A extensão inconstitucional dos efeitos da lei de anistia aos assassinos e torturadores da ditadura, que o Supremo Tribunal Federal cometeu em abril de 2010, como escrevi algumas vezes, é um exemplo (a Constituição foi explícita, no artigo 9º do Ato das Disposições Constituições Transitórias, em prever a anistia apenas para as vítimas), e explica por que as comissões da verdade foram tão incômodas.
Se a impunidade dos agentes da repressão era um dos motivos de ataque à Constituição cidadã (afinal, torturas, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados permanecem no repertório de ação das forças de segurança no Brasil), os direitos sociais, outro ponto de ruptura com a ditadura, foram atacados principalmente após o golpe de 2016, quando a direita tomou o poder e conseguiu mantê-lo com as "eleições" manipuladas de 2018. Não era à toa que os nostálgicos da ditadura engrossaram e informaram as manifestações golpistas desde seu início em 2015.
Outro ponto sensível era a garantia das terras indígenas (TI), cobiçadas pelos setores dedicados ao crime ambiental e à grilagem das terras públicas (as TI integram o patrimônio federal), curiosamente muito ouvidos pelos três Poderes, e com muito espaço em meios de comunicação. A questão era tão importante para as Forças Armadas que, como escrevi em artigo sobre documentos sigilosos do Conselho de Segurança Nacional (deixo aqui a ligação para o texto), elas tentaram impedir a aprovação do capítulo sobre os povos indígenas durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.
Os militares foram derrotados naquele momento. As ameaças aos direitos indígenas não cessaram, porém. A presidenta Dilma Rousseff usou a Advocacia Geral da União (AGU) para conferir "institucionalidade" à tese anti-indígena do marco temporal por meio da Portaria AGU n. 303, de 16 de julho de 2012. Depois, Michel Temer resolveu reforçá-la com o Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU, em 2017, um parecer de efeito vinculante para a Administração federal. Temer também militarizou a Funai, em mais um elemento de retorno aos tempos da ditadura.
Era possível piorar. Os eleitores de Bolsonaro, na farsa que foram as eleições de 2018, não têm desculpa alguma: o candidato foi explícito em afirmar que descumpriria a Constituição em relação aos povos indígenas (pois prometeu não demarcar as terras desses povos) e debochou dos quilombolas em evento na Hebraica do Rio de Janeiro. As falas de discriminação racial, cobertas pela "imunidade parlamentar", bem como os recorrentes elogios à tortura, foram alguns de seus trunfos eleitoreiros. Não por acaso, trata-se de crimes que se constituíram em política de Estado na ditadura militar.
A tese do marco temporal, portanto, constitui mais um capítulo desse golpismo gradual contra a Constituição da transição democrática, desta vez direcionado aos povos indígenas (e aos quilombolas, que também afetará). Seu efeito seria o de ANULAR demarcações já realizadas, além de impedir novas. Isso não poderá ser feito sem sangue, pois eles resistirão a essa nova "legitimação" do genocídio.
Neste dia, 8 de setembro de 2021, continua o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, do Recurso Extraordinário 1.017.365, processo em que o Estado de Santa Catarina busca expulsar o povo Xokleng de suas terras. Em fevereiro de 2019, a Corte reconheceu a repercussão geral do caso. O Centro Indigenista Missionário (Cimi) publicou uma boa matéria sobre a questão.
Hoje, o golpismo como método de governo ficou mais explícito nas falas e ações do ocupante da presidência da república e de seus apoiadores. Relembro que Jair Bolsonaro desejou, ano passado, fechar o Supremo Tribunal Federal; comentei esse furo da Revista Piauí em outro momento. O Sete de Setembro de 2021 foi dedicado por esse ocupante à prática de mais crimes de responsabilidade, com ameaças aos outros Poderes e incitação de seus seguidores contra a ordem democrática, com ampla divulgação internacional.
Esse golpismo (próprio da direita brasileira e tolerado até este momento pelas instituições, que estão em campo político enfim semelhante e manterão Bolsonaro enquanto ele for útil) atinge a população em geral, não só indígenas. Talvez como resultado das calamidades múltiplas causadas pelo retorno da direita e dos militares, as passeatas e protestos contra a tentativa de ditadura militar reloaded têm incluído as reivindicações dos povos originários. Como a pandemia comprovou, agora o genocídio não se dirige mais somente a eles... Talvez tenha se expandido a compreensão de que as lutas desses povos correspondem a uma questão vital para a democracia. Aqui em São Paulo presenciei diversas vezes neste ano este acontecimento.
Houve no Brasil uma série de atos do movimento indígena em 30 de junho de 2021 em razão do julgamento no Supremo Tribunal Federal de ação sobre a tese pró-genocidas do "marco temporal".
O Tribunal falhou com a sociedade brasileira mais uma vez e adiou o julgamento, que deveria ter ocorrido em 2019. Em São Paulo, o ato começou às 14 horas diante da Justiça Federal, na avenida Paulista:
De lá, os participantes do protesto seguiram, pela calçada, para o Vão do Masp. "Floresta de pé, fascismo no chão" é um bom programa de vida.
Este cartaz diz respeito a uma iniciativa legislativa para "legalização" do marco temporal. Comento-a mais abaixo.
Nesses atos específicos do movimento indígena, quando olhamos para o sistema político, quem aparece é a esquerda, mas não toda, tendo em vista as parcelas anti-indígenas presentes também nesse campo. Abaixo, está a presidenta da Unidade Popular (UP) em São Paulo, Vivian Mendes, que participou, com outros militantes, do protesto. É interessante ver que o partido mais recente do país já incorporou essa pauta.
O julgamento da questão foi retomado em agosto de 2021. De novo foi adiado. Na manifestação "Fora, Bolsonaro" de 24 de julho em São Paulo, que englobou diversos atores (e também partidos, inclusive um dos responsáveis pela tentativa de institucionalização do marco temporal no Executivo) novamente fotografei cartazes contra a tese anti-indígena; este, da Marcha Mundial das Mulheres:
Findo o recesso da Corte, o julgamento continua a arrastar-se. Em paralelo, no Congresso Nacional, corre um projeto de lei inconstitucional e contrário ao Direito Internacional que deseja "legalizar" o marco temporal, o PL 490/2007. A advogada e deputada federal Joênia Wapichana (REDE/RR), a primeira e única mulher indígena congressista, comenta neste vídeo como a Comissão de Constituição e Justiça (soi-disant) da Câmara dos Deputados aprovou em junho de 2021 esse projeto. Ele continua em tramitação apesar de sua evidente incompatibilidade com a dignidade humana e com o manifesto de 9 de junho que o movimento indígena entregou ao presidente da Câmara, "Exigimos o fim da agenda anti-indígena do Congresso!". O documento, ignorado pelo Congresso, pode ser lido no sítio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e lista especificamente:
1. Retirada definitiva do Projeto de Lei 490/2007 da pauta de votação da CCJ e arquivamento do mesmo;2. Arquivamento do PL 2633/2020, conhecido como o PL da Grilagem, da pauta de votação do Congresso Nacional3. Arquivamento do PL 984/2019, que pretende cortar o Parque Nacional do Iguaçu e outras Unidades de Conservação com estradas.4. Arquivamento PDL 177/2021 que autorizaria o Presidente da República a abandonar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)5. Arquivamento PL 191/2020 que autoriza a exploração das terras indígenas por grandes projetos de infraestrutura e mineração;
Os povos indígenas continuam mobilizados em Brasília para acompanhar o julgamento do Supremo Tribunal Federal. A Câmara, no entanto, ameaça prosseguir com a votação do projeto mesmo que o STF cumpra seu papel (e não simplesmente adie indefinidamente a votação, como fez com a ADPF da lei de anistia, até hoje pendente de recursos), o que configura outra dimensão do golpismo contra a Constituição de 1988 e a transição democrática, que, lembramos, tentou dar fim a um regime político genocida.
A injustiça de transição, no entanto, é o que se logrou institucionalizar, à revelia do constitucionalismo, com a promoção dos três Poderes e o aplauso daqueles que não entenderam (ou lucram com) a atualidade do legado criminoso da ditadura.
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