O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Desarquivando o Brasil CLXX: Hannah Arendt, ditadura militar e Bolsonaro

Não tive como avisar aqui da conversa ao vivo de que participei com as professoras Adriana Novaes e Ludmila Franca-Lipke sobre "Persistências totalitárias", numa série do Centro de Estudos Hannah Arendt (CEHA) da USP nestes tempos de pandemia. 
Por meio deste endereço, podem-se ver as ligações para os vídeos e áudios disponíveis do Centro: https://linktr.ee/HannahArendtBR. Dia 29 de agosto, ocorrerá o debate "Considerações arendtianas sobre a cultura" com Ludmila Franca-Lipke e Juliana Albuquerque. 
Quando a Coordenadora Assistente do CEHA, a professora Franca-Lipke, me convidou tive de refletir bastante sobre o que iria falar: não sou um arendtiano, mas cheguei à conclusão de que não seria abusivo falar, tendo em vista como empreguei o pensamento da autora em Para que servem os direitos humanos?,  em certos artigos e até (isso me ocorreu no momento da exposição) no Código negro
Resolvi falar de como o pensamento de Arendt foi empregado na resistência contra a ditadura militar no Brasil, no processo de justiça de transição, e se se podem verificar "persistências totalitárias" nos dias de hoje neste país.
A Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça organizou em 1970 um "Dossiê das Calúnias" com as denúncias internacionais contra a ditadura brasileira, que reunia materiais como cartas de presos políticos, notícias da imprensa estrangeiras e livros, como este Livre noir: Terreur et torture au Brésil (Livro negro: Terror e tortura no Brasil), de 1969, publicado em Paris por várias organizações. O documento pode ser consultado no fundo do DSI/MJ no Arquivo Nacional:


O fim do Dossiê não era o de investigar as denúncias, e sim o de perseguir os denunciantes e instruir os desmentidos do governo. Alfredo Buzaid, o professor da USP e ministro da justiça de Médici, afirmou publicamente que não havia torturas no Brasile  paralisou o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.  
Temos nesse Livre noir um exemplo da importância da mobilização internacional das organizações católicas que apoiaram a publicação. Michel de Certeau, na apresentação, ataca a hipocrisia do Brasil por ter "votado pela Declaração de Direitos Humanos" das Nações Unidas e ter sistematizado a tortura e encorajado o terrorismo da extrema-direita. "Esta violência metódica e desumana", que ocorreu na França, na Alemanha, na Argélia, e em mais lugares, ocorria no Brasil, "onde ela era culturalmente tão improvável. Ela habitava nossos passados recentes com a inacreditável 'banalidade do mal' de que Hannah Arendt falava a propósito de Eichmann. Talvez ela seja um vírus que nós exportamos."
Talvez ela não fosse tão improvável em um país fundado na escravidão e no genocídio, como é o Brasil. Ademais, a máquina burocrática existente para compor o sistema de vigilância e repressão política, cujas práticas incluíam o genocídio e crimes contra a humanidade, certamente precisaria de funcionários que seguissem as ordens sem refletir criticamente sobre o estado das coisas. Arendt fazia notar que um funcionário, quando realmente ele não passa de um funcionário, é com efeito uma pessoa muito perigosa.
Para a conversa promovida pelo CEHA, selecionei alguns casos de denúncias internacionais, bem como publicações nacionais que usaram referências da obra de Arendt; estas, em geral, coincidem com o relativo relaxamento da censura no Brasil na segunda metade da década de 1970.
No vídeo, afirmei que Arendt não foi uma referência para as organizações de esquerda militaristas dessa época, que eram em regra de filiação marxista - uma tradição que Arendt critica; lembro que ela até elogia Rosa Luxemburgo em razão dos estudos desta autora que fogem aos modelos marxistas... 
Na bibliografia dos militantes apreendida pelos serviços de segurança no Brasil dos anos 1960 e início da década de 1970, Marx, Lênin, Che Guevara são autores que aparecem bastante, bem como na bibliografia dos cursos de formação dessas organizações. 
Ademais, com a distinção arendtiana entre poder e violência, a autora serviria antes de advertência do que de fundamento teórico para a luta armada.
O tempo dela vem depois, e prosseguiu com a época das comissões da verdade, embora ela não tenha sido uma referência para a Comissão Nacional da Verdade. Na minha fala, tentei destacar os usos feitos pela Comissão Camponesa (especialmente no tocante ao caráter político da memória) e pela Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (em relação à verdade na política). Comecei a escrever sobre essas referências.
No entanto, o que selecionei como vídeos foram dois pequenos trechos da audiência pública sobre Norberto Nehring, professor da USP e militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) assassinado pela ditadura militar, organizada pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" em 2013. Maria Lygia Quartim de Soares, viúva de Nehring, fez uma observação interessante sobre Hannah Arendt e 1968 e, mais adiante no depoimento, sobre a herança da ditadura e o então deputado Jair Bolsonaro, que havia agredido o senador Randolfe Rodrigues. 
Para os dias de hoje, fiz este quadro de permanências, lembrando que o Brasil não teve um regime totalitário, e sim autoritário. Como sempre, deve-se clicar na imagem para ampliá-la:


Vejam que me inspirei, sem o mesmo brilhantismo, nas estratégias de argumentação das elites jurídicas brasileiras, mais especificamente no Ministério Público Federal. Tentei brevemente explicar como estes elementos do totalitarismo destacados por Hannah Arendt de alguma forma fazem-se presentes no discurso e na ação daquele que, segundo a reportagem de Monica Gugliano para a Revista Piauí, "Vou intervir!", quis dar um golpe de Estado e trocar os Ministros do Supremo Tribunal Federal por militares.
A reação em geral muda à reportagem, que havia saído naquela semana de agosto de 2020, talvez indique que o golpe deu certo sem que o percebêssemos.
Nos comentários escritos no youtube, houve quatro perguntas, que comento agora:

Ricardo Wolff: ​O que adianta poucos identificarem os elementos totalitários no presente quando o povo mal conhece seu próprio passado?

Não é mesmo? Concordo, por isso participei da conversa. Devemos passar palavras e análises como estas adiante.

Sindia Yogasana: Detalhe, o tanque no Rio nunca esteve embaixo do tapete, né. Só lembrar dos militares na Maré em 2014. Processo de pacificação. Para citar um exemplo.

Esta observação surgiu pelo fato de eu ter exposto um genial cartum de Laerte Coutinho em que um tanque de guerra tinha sido "varrido" para baixo do tapete por um militar. Concordo, não à toa o atual ocupante da presidência começou a carreira política lá naquele lugar. E que o assassinato político mais marcante dos últimos tempos, o de Marielle Franco, tenha ocorrido no Rio de Janeiro durante uma intervenção militar (por algum motivo, esse tipo de intervenção parece atrair crimes políticos).

Márcia Oliveira: ​Como Bolsonaro avançou com o silêncio das instituições...O que mais falta?

Falta ele acabar o processo de demolição das instituições públicas, de espoliação e genocídio das populações indígenas, destituição dos direitos econômicos e sociais com a consequente limitação dos direitos civis e políticos para a grande parte da população, apequenamento internacional do país, destruição da pesquisa e da ciência nacionais, expulsão ou silenciamento da cultura, "fundamentalização" cristã dos costumes para perseguição e controle de mulheres, minorias em termos de gênero e negros, liberação dos controles de armamentos e financeiros para igrejas e grupos que usam armas para seus fins econômicos (legais ou não), devastação ambiental etc. Como é muito trabalho, talvez ele não dê conta de tudo. E, por isso, a direita o derrube.

Ricardo Wolff: Como explicar minorias, em especial judeus, apoiando um governo que visa perseguir/exterminar minorias?

Comprova-o o riso do público da Hebraica do Rio de Janeiro com a observação racista sobre quilombolas (uma das que selecionei no quadro acima). Dito isso, a mobilização dos judeus em São Paulo, muitos ligados à Casa do Povo (um espaço que foi palco de resistência à ditadura) conseguiu impedir que o então candidato falasse na Hebraica paulista. Hannah Arendt, creio, ilumina a questão com esta observação que, certa vez, repetiu em carta a James Baldwin: as qualidades, o calor humano dos povos perseguidos, a falta de preconceitos; na entrevista a Günther Gaus ela trata disso sobre os judeus e Gaus lembra do discurso de 1959 que ela fez ao receber o prêmio Lessing: essa humanidade nunca sobreviveu um minuto à hora da libertação, da liberdade.


P.S.: O Centro de Estudos apagou o vídeo.

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