O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

13 discos vermelhos em busca de companhia



Comecei a participar dos #13DiscosVermelhos no twitter, mas interrompi quando começou o último debate dos candidatos à presidência da república. Nele, Jair Bolsonaro, embora reforçado por um auxiliar contrário à lei de cotas e favorável a fechar hospitais, e pelo auxiliar aparentemente vestido para festa junina, pareceu mais fraco do que nunca e fugiu do confronto com Lula.
Assisti ao pobre espetáculo, que acabou de madrugada. Cheguei a escrever, antes disso, que tinha escolhido a Floresta do Amazonas, odiada pelos bolsonaristas (refiro-me ao objeto da inspiração, claro, mas é possível que a música também não seja apreciada), para ficar em cima da pilha de discos por motivos óbvios. A permanência da floresta (embora alguns sustentem que se trata de um bioma já irremediavelmente condenado) é uma das questões que será decidida dia 2 de outubro, uma vez que o governo do candidato à reeleição foi e continua a ser, por motivos que me escapam, uma época alvissareira para o crime ambiental.
Começo, porém, da base: o disco dedicado a Alberto Ginastera, lá embaixo, foi escolhido não só por causa do gênio deste compositor (só escolhi música boa para a pilha, claro; por sinal, o time musical que apoia Lula é muito superior ao grupo que faz arminha), mas também porque foi censurado por uma das ditaduras militares da Argentina por causa da ópera Bomarzo. O disco que tenho da ópera não é vermelho, mas como o compositor vetou a execução de toda sua obra nessa época em reação à censura, achei que poderia começar deste da Orquestra de Lancy-Genève regida por Roberto Sawicki, que ainda toca o violino solo. Ditadura, censura, essas palavras me evocaram algo do presente brasileiro.
Por causa da Argentina, lembrei de Maria Callas, que odiou Buenos Aires quando lá cantou (1949) porque, segundo contou em carta ao marido, a cidade estava cheia de fascistas. De fato, ela não voltou mais àquele país de cujo clima ela também não gostou. O disco (selo Divina) com o que restou gravado da presença da artista na Argentina não é vermelho, por isso peguei este com gravações ao vivo no México, da mesma fase da carreira, com uma voz realmente incomparável. Fica bem na pilha porque é Callas e porque, de fato, não se deve gostar do fascismo.
Como não devemos gostar desses peculiares regimes políticos europeus do século XX, resolvi incluir compositores proibidos pelos nazistas, e um deles morto em campo de concentração (Schulhoff), por marxismo e/ou modernismo e/ou em razão do antissemitismo. Entram Kurt Weill e Ernst Toch (que se exilaram) e o Berg, que morreu de doença antes de ter toda sua obra banida. Em Lulu, por sinal, a ópera que escolhi para a pilha (completada por Friedrich Cerha décadas depois, pois Alban Berg morreu antes de terminar a orquestração do último ato), a crise do capitalismo e a quebra da bolsa de Nova Iorque estão bem no centro da história. Esta gravação, regida por Jeffrey Tate, parece-me muito bem cantada, a começar por Patricia Wise no difícil papel-título, passando por Peter Straka que logra atender à tessitura do Alwa, pela encarnação que Brigitte Fassbaender nos oferece com a lésbica Condessa Geschwitz e pelo veterano Hans Hotter como Schigolch. O disco da Ebony Band,regida por Werner Herbers, inclui o "oratório-jazz" de Schulhoff, "H.M.S. Royal Oak", com texto de Otto Rombach, que conta um episódio real: uma revolta de marinheiros por causa das más condições de trabalho e da proibição de ouvir jazz, um ritmo negro (que também seria proibido pelos nazistas). A revolta vence. Os fãs do atual ocupante da presidência também têm problemas com a negritude. A revolta vencerá.
O disco das trovadoras (trobairitz), na voz de Montserrat Figueras e o grupo Hespèrion XX (quando acabou o milênio passado, Jordi Savall atualizou o nome para Hespèrion XXI), entrou para lembrar das mulheres autoras, contra a misoginia que continua no poder: Condesa de Provenza Garsenda e grande Condesa de Dia. Quase toda essa música foi perdida, mas alguns poemas ficaram e foram cantados com melodia de outros músicos. Parece-me que os fãs do atual ocupante da presidência, fiéis ao ídolo, incomodam-se com esses assuntos e o protagonismo feminino.
Escolhi este disco do grupo da Quixabeira de Lagoa da Camisa, além da vibrante cultura dos trabalhadores rurais, por causa do canto no verso "Essa terra é minha" em "Eu não sou daqui". Por algum motivo, podemos desconfiar que os partidários do atual ocupante da presidência não gostam muito desses trabalhadores, e a escassa simpatia diminui ainda mais quando veem que eles se organizam. No entanto, por alguma razão, esses partidários não veem problemas nas reivindicações de terra se feitas por grileiros.
Taiguara, que era comunista, entrou por causa da censura que sofreu (creio que foi o compositor brasileiro mais censurado da época) e o obrigou a deixar o país. Este era o único disco com lombada vermelha dele que tenho e cobre as músicas anteriores a seus embates mais sérios com a censura, a época em que era conhecido principalmente como cantor romântico. Já está lá, porém, a emblemática "Hoje"
Esta apresentação ao vivo de Elis Regina em 1977 foi lançada originalmente pela gravadora Velas, anos depois da morte da grande cantora. Lembro que eu o ouvi pela primeira vez em um supermercado (esse tipo de estabelecimento vendia discos no século passado) e fiquei paralisado pela voz em "Travessia", de Milton Nascimento. O disco começa e termina com canções contra a ditadura: "Como nossos pais", de Belchior, e "Cartomante", de Ivan Lins (que era o dono da Velas, aliás) e Vitor Martins. Esta, na intepretação de Elis, foi muito relembrada neste fim de mandato de J. Bolsonaro: "Cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, cai, não fica nada!"
O show "Direitos humanos no Banquete dos Mendigos" reuniu grandes nomes no MAM, Rio de Janeiro, em 1973. Tratava-se da comemoração dos 25 anos da Declaração Universal em um tempo, no Brasil, hostil à dignidade humana. Neste terceiro disco, o único vermelho, temos Milton Nascimento, Jards Macalé, Pedro dos Santos, Dominguinhos e Gal Costa. O poeta Ivan Junqueira fez uma leitura no fim dos artigos desta Declaração das Nações Unidas, texto não amado pelos partidários do atual ocupante da presidência. Tampouco esta organização internacional costuma despertar elogios dessas pessoas.
Da GaL, que foi fotografada fazendo o L várias vezes em 2022 e sempre foi de esquerda, escolhi ainda o "Estratosférica ao vivo", disco duplo recente que combina repertório novo e canções mais antigas, como esta pérola da época da ditadura, "Como 2 e 2", de Caetano Veloso (um ex-cirista que agora faz o L). Estes baianos não são nada apreciados pelos bolsominions, que ficaram muito irritados quando Gal alegremente dançou enquanto seu público demonstrava espontaneamente afetos em relação a J. Bolsonaro.
Em "Munduê", Diogo Nogueira (que honra em vários sentidos o nome do pai, o grande João Nogueira, e também faz o L) acentuou as raízes negras de sua música com os jongueiros do Quilombo de São José da Serra. Bolsonaristas também não gostam desse tipo de repertório (mesmo no belo timbre deste cantor) e até mostram-se capazes de votar em políticos que pesam gente em arrobas.
Esta gravação de "Floresta do Amazonas" foi o último disco gravado de Bidu Sayão, que estava aposentada, mas aceitou retornar aos estúdios a pedido do compositor, Villa-Lobos, que morreria pouco depois e fez nesse momento sua última gravação. É claro que os bolsonaristas não gostam desse tema, e provavelmente também não desta música. Há até gente da música clássica que votou 17 em 2018, mas foi por muita falta, além de consciência política, de consciência de classe.
A maioria do que selecionei foi música vocal. Deixo, então, para comentar por último um item puramente instrumental destes músicos brasileiros. O flautista Francisco Luz e o violonista Fabrício Ribeiro gravaram este disco de música de câmara, "Na solidão em busca de companhia", com música de Villa-Lobos, Radamés Gnattali, Edino Krieger e outros. Escolhi-o por causa da faixa título, de Harry Crowl (um de meus compositores favoritos de hoje), que remete a um poema de Auden. Sei que muita gente não gosta dos poemas de inspiração religiosa desse autor, mas creio que é possível apreciar a simplicidade deste exemplo lírico, e este verso, presente em dois tercetos, é essencialmente antibolsonarista: "Men of their neighbours become sensible".

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Lula no primeiro turno, ou não há simetria entre os dois lados

Este é meu tuíte fixado desde 2018: trecho do programa eleitoral de Fernando Haddad, então candidato a presidente da república pelo PT, com Amelinha Teles e Janaína Teles falando das torturas que sofreram sob comando de Brilhante Ustra, e o atual ocupante da presidência (então candidato) elogiando aquele militar, oficialmente declarado pelo Judiciário brasileiro como torturador.



As duas receberam ameaças anônimas depois e o PT teve um programa político tirado do ar pela Justiça Eleitoral justamente por mostrar Bolsonaro elogiando aquele militar, que havia sido declarado oficialmente torturador pelo Judiciário brasileiro em processo movido pela Família Teles. Note-se que as instituições fizeram sua parte durante a campanha de 2018, o que incluiu a censura inconstitucional (e contrária ao Direito Internacional) da entrevista da Folha de S.Paulo com Lula por Ministro do Supremo Tribunal Federal
Em outubro de 2018, em razão dessas ameaças, redigi com Diogo Justino uma nota pelo grupo de trabalho de Direito, Memória e Justiça de Transição do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais, que o IPDMS não quis publicar.
Tratava-se, no entanto, de uma questão muito relevante politicamente. O atual ocupante da presidência da república elogiou o torturador várias vezes, porém foi na fatídica votação na Câmara dos Deputados em 2016 que escancarou as portas do golpe contra Dilma Rousseff, que projetou o então deputado federal com mais intensidade, além de confirmar, a despeito dos ingênuos, dos incrédulos e dos cúmplices, que o Congresso Nacional tinha realmente decidido romper com a democracia no Brasil. Em caso contrário, Bolsonaro teria sido cassado por aquele ultraje à dignidade humana.
Sabe-se que ultrajar a dignidade corresponde a um dos meios para fazer carreira política, tendo em vista os fins das instituições políticas brasileiras, que conflitam mais ou menos abertamente com os princípios juridicamente instituídos (no atual governo, a colisão é explícita). No entanto, deve-se ressaltar que o voto na apologia aos crimes contra humanidade, na misoginia, no ódio contra indígenas, negros e a população LGBTQIA+ venceu em 2018 em parte por causa do número enorme de votos brancos, nulos e abstenções; somando essas três categorias, 42 milhões de pessoas deixaram de escolher um dos candidatos no segundo turno. Não foram apenas as abstenções, pois o índice de votos brancos e nulos também impressionou: foi "o maior já registrado desde o fim da ditadura militar" (cito matéria da Deutsche Welle).
A situação não deve se repetir nestas eleições, por isso escrevo esta breve nota.
Em 2018, houve muita gente que lavou as mãos diante da anunciadíssima destruição das instituições democráticas e do prometido aumento da violência política. Gente que decidiu fingir, ou realmente achava (a lucidez não é como o sol, não brilha para todos), que Haddad era igual a quem recebia cheques do Queiroz.
Houve até mesmo quem, embora enxergasse paralelos com 1964 (o candidato Bolsonaro viu-os várias vezes, aliás, o que foi esquecido por certos filósofos que resolveram publicar recentemente sobre o bolsonarismo), militares à frente, julgasse que o país vivia uma "escolha difícil". Outras pessoas, com melhor percepção da situação, escolheram com facilidade votar em alguém que considerava áureos os tempos de genocídio indígena, tortura, corrupção, epidemias escondidas pela ditadura militar. Estes foram os fascistas. Por sinal, pudemos ver que, em regra, os perfis neonazistas nas redes sociais escolheram 17 em 2018. Cada um escolhe sua companhia.
Aqueles tempos inaugurados com o golpe de Estado de primeiro abril de 1964 também representaram o encolhimento da renda do trabalhador, o ataque aos direitos sociais, devastação ambiental, desaparecimentos forçados, racismo fomentado pelo Estado, censura, e mais crimes que as diversas comissões da verdade tentaram apurar há poucos anos.
Que todos esses elementos do passado fossem retornar ou se intensificar nestes anos de volta explícita do partido militar ao poder era uma profecia autorrealizada. Mesmo a reação oficial à pandemia, ou seja, deixar que as pessoas morressem, tinha precedente na ditadura militar, como já escrevi. Os inimigos da democracia têm, de fato, motivos para estarem felizes, mesmo se ficaram mais pobres ou se tiveram mortos em razão de suas escolhas políticas. Como um Juscelino Kubitschek às avessas, Bolsonaro quase conseguiu vinte anos de retrocesso em quatro anos de mandato. Em termos de inflação, conseguiu até mais do que isso.
É claro que se trata do que os apoiadores de Bolsonaro querem, mesmo alegando que o fazem em nome da "liberdade" (como naquele significativo manifesto da direita em que o semianalfabetismo aliou-se curiosamente à estupidez política). Em nome da "liberdade", temos o recrudescimento da violência política, com diversos ataques dos apoiadores de Bolsonaro a eleitores da oposição, entre eles o assassinato de Marcelo Arruda, tesoureiro do PT, que teve a festa de aniversário invadida por um policial civil bolsonarista.
A cobertura da imprensa tendeu a culpabilizar a vítima ou a naturalizar o assassinato, seja por um reconhecimento implícito de que sem a criminalidade política a direita não consegue chegar ao poder, seja por uma extensão além-pessoa da anistia informal com que Bolsonaro tem sido tratado pelas instituições. Não há simetria entre os "dois lados" ou entre o alvo e a bala, salvo para os cúmplices e/ou desvairados (que, no entanto, possuem megafones na esfera pública). Ainda escreverei sobre isso.
A Human Rights Watch lançou um apelo para a garantia do voto livre e seguro no Brasil. Quando o PT esteve no poder, isso nunca foi necessário; hoje, setenta por cento dos eleitores têm medo da violência política durante as eleições.
Como escrevi, há os que estão felizes, pois o eleito em 2018 cumpriu muitas das metas que tinha anunciado, como violação dos direitos dos povos indígenas, destruição da Amazônia e ameaças e ataques armados. Eles não são a maioria, porém. Em relação às outras pessoas, entre as quais me encontro, que não estão felizes com os massacres e a situação das chamadas instituições democráticas, a opção é votar 13 para a Presidência da República, dar já a vitória para Lula e não prolongar a violência política com um eventual segundo turno. 
Mais importante ainda, votar em candidatos aos Legislativos federal e estaduais que não conspirem contra a democracia nem se vendam para defender crimes contra o povo brasileiro. Senão, a violência continuará, além das eleições, com incitadores ungidos por mandatos políticos.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Poetas de dois mundos: evento em em São Paulo, 9 de setembro

 


O poeta Leonardo Marona, que trabalha na Livraria da Travessa, nela organiza este evento, "Poeta de dois mundos", que volta a ser presencial.

Ele ocorrerá na Travessa de São Paulo no bairro de Pinheiros (Rua dos Pinheiros, n. 513) nesta sexta-feira, nove de setembro de 2022, às 19 horas. 

Farão leituras os autores Augusto Meneghin, Camila Assad, Daniela Rezenda, Fernanda Comenda, Gabriela Efigênia Farrabrás, Guilherme Pavarin, Janaú, Lilian Sais, Mar Becker. Todos eles lançaram pelo menos um livro pela editora Urutau. Também estarei lá.