O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Desarquivando o Brasil CXCIV: Marcelo Zelic, a pesquisa e o engajamento com os povos indígenas

Foi um baque saber da morte de Marcelo Zelic na segunda-feira, dia 8 de maio de 2023, com apenas 59 anos, por causa de acidente vascular cerebral. Seu trabalho foi importantíssimo para a memória, verdade e justiça no Brasil, especialmente para os povos indígenas

O Centro Indigenista Missionário (Cimi) inventariou sua contribuição para os povos indígenas no Brasil ("Marcelo Zelic, militante da memória, nos deixa um legado pela verdade e pela justiça"). O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi) publicou uma nota de pesar. O Centro de Trabalho Indigenista (CTI) fez o mesmo, assim como o MST.

O texto de Cristiano Navarro, Fábio Bispo e Renato Santana para o Infoamazonia ("A luta por memória dos crimes da ditadura e Justiça de Transição perde um de seus principais defensores: Marcelo Zelic") rememora sua participação do Grupo tortura Nunca Mais - São Paulo e a na Comissão de Justiça e Paz, bem como de sua participação no Acampamento Terra Livre (ATL) no mês passado, seu apoio à criação de uma Comissão da Verdade Indígena e sua recente coordenação de um projeto de memória interétnica.

Ismael Machado (li-o no Brasil de Fato) focou no relatório da Comissão da Verdade do Estado do Pará, de que Zelic e ele mesmo foram organizadores com Angelina Anjos e Marco Apolo Santana Leão. 

O Grupo Tortura Nunca Mais - São Paulo também relembrou sua trajetória. 

A antropóloga Artionka Capiberibe teceu um fio no twitter com uma foto recente lembrando da articulação no ATL para a criação de uma comissão da verdade indígena. O jornalista Rubens Valente, que também esteve com ele recentemente, publicou outra foto, em que Zelic posou apontando para um cartaz com a estimativa da CNV de 8.350 indígenas mortos (no mínimo) durante a ditadura. Para a Agência Pública, escreveu um texto mais longo ("O último sonho de Marcelo Zelic"), de que cito esta passagem que sintetiza algumas das principais façanhas do pesquisador: a recuperação do Relatório Figueiredo e do filme Arara e a criação e coordenação do portal Armazém Memória.


Zelic já era reconhecido como um grande pesquisador da temática, tendo sido o autor da descoberta, ou redescoberta, do processo administrativo produzido na segunda metade dos anos 1960 que ficou conhecido como Relatório Figueiredo, cuja divulgação levaria à extinção do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). O processo estava arquivado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, mas indexado apenas com um número, sem explicações sobre o conteúdo. Zelic reconheceu sua importância e o resgatou do limbo em que permaneceu mais de 40 anos. Foi também Zelic o responsável por localizar um filme produzido pelo governo nos anos 70 que mostrava um indígena simulando a prática de tortura num pau-de-arara, um singelo “ensinamento” dos torturadores aos membros de uma “guarda indígena” que funcionou em Minas Gerais durante a ditadura.
Na condição de coordenador do Armazém Memória e membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, Zelic e sua equipe de colaboradores coletaram, escanearam, organizaram e disponibilizaram uma impressionante coleção de documentos e outros dados relativos aos direitos humanos https://armazemmemoria.com.br/. Apenas sobre os povos indígenas são 18 bibliotecas com 2,2 milhões de páginas.


A deputada Célia Xakriabá, a única indígena exercendo mandato atualmente no Congresso Nacional, lamentou a morte. Como voltamos a ter um governo democrático, a Funai também publicou sua nota. No governo passado, isso certamente não aconteceria.

Creio que o Ministério dos Povos Indígenas não se manifestou, tampouco a Ministra Sônia Guajajara e o presidente Lula, que, no entanto, lamentaram a morte, também recente, do ex-deputado federal David Miranda.

Por curiosidade, fui ver o que a Agência Brasil havia publicado sobre a morte de Marcelo Zelic; ela a noticiou em três idiomas: além do português, o espanhol e o inglês. Percebi que, entre três de novembro de 2014 e 29 de março de 2023, não há notícia alguma sobre ele nessa agência governamental de notícias. Certamente não por falta de trabalho do pesquisador e militante (que só suspendeu por um tempo suas atividades por causa do primeiro AVC), mas talvez por falta de interesse de governos decididos a ocultar as pautas de luta dos povos indígenas.

Para o caso de alguém se interessar, deixo aqui meu breve testemunho. Eu conheci pessoalmente Marcelo Zelic em 2014, no lançamento da campanha "Índio é Nós", em 19 de abril; ele falou em mesa com uma liderança da Terra Indígena Jaraguá, (David) Karai Popygua. As falas de ambos foram filmadas: https://www.youtube.com/watch?v=z-bjwrBR8RM (no final do vídeo, pode-se ver a apresentação de Marlui Miranda). O editor Sérgio Cohn participou também para trazer o número da Poesia Sempre sobre poesia indígena, que teria sofrido censura na Biblioteca Nacional. 

Naquela ocasião, Zelic falou do conteúdo das milhares de páginas do Relatório Figueiredo, de 1967, que ele havia encontrado. Elas apresentavam um amplo levantamento dos crimes contra os povos indígenas cometidos pelos agentes do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), que acabou sendo substituído pela Funai.

Ele denunciou as medidas anti-indígenas do governo federal de então, do PT ("a ministra Gleisi Hoffmann entrou aí com uma jogada para suspender as demarcações de terras indígenas no Paraná", criticou) e os assassinatos das lideranças indígenas. Ademais, cobrou a Comissão Nacional da Verdade, então em funcionamento, para que ela investisse no trabalho com estes povos:


E os centros de tortura contra indígenas, vão entrar nesse relatório? [...] A Comissão vai incluir esses estudos, vai aprofundar esses estudos, no sentido de incorporar a esse relatório, ou só vai valer o que é centro de detenção para militantes de esquerda urbanos e alguns rurais? [...] Então nós temos uma situação que é um embate para que a Comissão Nacional da Verdade, ela efetivamente faça investimentos no grupo da Maria Rita Kehl. Faça investimentos no sentido de contratar uma equipe grande para pesquisar porque há violações em todos os Estados do Brasil, quase todos nesse período. E não são violações pequenas. Para que haja investimentos no sentido de digitalizar e se colocar numa ferramenta de pesquisa essas seiscentas mil páginas.


Maria Rita Kehl é que estava a coordenar as pesquisas sobre os povos indígenas. Depois, voltei a cruzar com ele no segundo semestre de 2014, quando eu havia passado a fazer pesquisa para a Comissão Nacional da Verdade e para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva". Ele, com Manuela Carneiro da Cunha (que também participou, na mesma mesa de Kehl e Marta Azevedo, do lançamento de "Índio é Nós") e outros pesquisadores estavam a ajudar a CNV para o capítulo sobre as violações de direitos dos povos indígenas, que sofria oposição dentro da Comissão.

Na Comissão "Rubens Paiva", que era presidida por Adriano Diogo, não havia oposição alguma. Lá, ajudei a organizar três audiências sobre o tema; nós o chamamos para falar. No relatório, no capítulo sobre as violações de direitos dos povos indígenas, ele é referido algumas vezes. Cita-se sua fala na 149ª audiência pública da Comissão:


No momento em que uma Comissão da Verdade, como a Comissão Estadual de São Paulo que se dedica a apurar o tema indígena. Uma das poucas Comissões estaduais que se debruçou sobre a temática indígena, nós temos São Paulo, nós temos Amazonas, nós temos Mato Grosso do Sul algum trabalho e a Comissão Nacional.
Quando o relatório da Comissão Nacional apresenta inúmeras, inúmeras violências praticadas para o roubo de terras indígenas no país, o Supremo Tribunal Federal, Adriano, a sua 2ª Turma, vota, através do caso dos GuaraniKaiowá, do Mato Grosso do Sul, um entendimento de que existe um marco temporal para se definir se uma terra deve ou não ser demarcada como terra indígena [...]
Rasga o STF a Constituição com uma nova interpretação, feita pela 2ª Turma, que se for confirmada pelo Plenário, ela joga um manto escuro em cima de toda essa violência que estava embaixo do tapete e que vem à tona, agora de forma mais sistematizada, pelos trabalhos das Comissões estaduais e Nacional da Verdade.
É uma situação que eu gostaria primeiro de solicitar, nós fizemos uma denúncia, através de um artigo que chama “Povos indígenas: ainda uma vez o esbulho.”, que eu queria sugerir à Comissão Estadual da Verdade que pudesse tirar uma moção, para enviar a todos os Ministros do STF, repudiando a decisão, repudiando a decisão da 2ª Turma e solicitando que essa posição seja revista, para que a gente possa incluir os povos indígenas no processo de Justiça de Transição em que vive o Brasil.

Aqui ele se referia à tese anti-indígena, anticonstitucional e ilícita perante o Direito Internacional do "marco temporal", que ganhava terreno no Supremo Tribunal Federal com ajuda de Ministros como Gilmar Mendes. Essa questão também ainda não foi resolvida.

Ele já organizava o que viria a ser o formidável Armazém Memória; ele me pediu, na época, os documentos da Comissão para colocar no futuro portal.

Depois disso, cruzei com Zelic no evento "Resistência Indígena contra o Genocídio", realizado no Campus São Paulo do Instituto Federal de São Paulo em 29 de novembro de 2018. Também falaram, além de nós, (David) Karai Popygua e Benedito Prezia, que o rodeiam nesta foto que tirei na ocasião:




A fala dele foi filmada (e a dos outros). Ele explicou, entre outros temas, a importância dos documentos para as reivindicações dos povos indígenas, inclusive as de caráter judicial:


Eu, quando peguei o relatório Figueiredo e vi ali aquele documento, que só existiam três cópias impressas [...] fiz questão de visitar o povo Terena, sentar no chão com o povo Terena, passar o micro e dizer "vocês sabem mexer com o computador?", e aí levanta um Terena e fala, "oh, Zelic, sou advogado", "pô, desculpa aí", sentar e discutir com eles o que podia ter dentro desses documentos.


Depois, estive com ele em 13 de março de 2020 no Seminário de 5 anos do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (na semana seguinte, começariam as medidas de isolamento social da pandemia). 


Não o vi mais pessoalmente. A última vez em que trocamos mensagens, faz pouco tempo, perguntei do relatório da Comissão Estadual da Verdade e Memória do Pará, que havia sido anunciado para 2021, depois para março de 2022 e só veio à luz no ano seguinte. Felizmente, ele saiu ainda a tempo de Zelic, que foi um dos organizadores do trabalho, vê-lo disponível para todos. Os povos indígenas são abordados no tomo II.

As recomendações da Comissão aparecem no final do tomo III. Para dois temas, contudo, ela decidiu repetir as recomendações do relatório da CNV, de 2014:


Frente à situação atual do país e os retrocessos em direitos humanos que vivemos, atingindo em especial os povos indígenas e a comunidade LGBTQI+ num claro ciclo de repetição das violências vividas no passado, a CEV-PA reafirma ao Estado brasileiro a necessidade de dar seguimento às recomendações temáticas do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, apresentadas em 2014, incorporando-as na lista abaixo a este relatório, como pontos também fundamentais para o desenvolvimento, respeito e aprofundamento dos conceitos de democracia, pluralidade étnica, liberdade sexual e justiça social em nossa sociedade.


É como se o tempo tivesse parado para aquelas reivindicações dos povos indígenas, que incluem a demarcação e a desintrusão de suas terras. Na verdade, pode-se até mesmo dizer que o relógio andou violentamente para trás. O caso contra Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional por genocídio parece-me forte exatamente em relação aos povos indígenas.

Faço notar, porém, que as recomendações que são reiteradas pela Comissão do Pará são as que aparecem no tomo II do relatório da CNV. Elas, por algum motivo, são amplamente ignoradas por vários pesquisadores e instituições, que costumam tratar apenas das que estão listadas no tomo I. Aquelas foram escritas pelos pesquisadores e militantes e ofertadas à CNV. No caso dos povos indígenas, são as mesmas que foram entregues também à Comissão "Rubens Paiva" no fim de 2014 por Timóteo Popygua, que o fez em nome da Comissão Guarani Yvyrupa.

Quase nove anos depois, quem sabe elas serão efetivamente implantadas, agora que temos indígenas a frente de um Ministério inédito, o dos Povos Indígenas, e da Funai? Parece possível, e Zelic viveu o suficiente para ser parte desta mudança e ver-lhe o começo.

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