O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Quando o cantor se interrompe


Quando o cantor se interrompe,

a voz ainda continua?

(por quem? por quanto tempo?)

Se o cantor fecha os lábios,

abre-se ainda a boca da voz?


Abre-se para o mundo,

e o mundo se fecha:

o cantor é interrompido

seja pelo decreto, seja pelo câncer,

(o poder e a metástase

imitam-se mutuamente)

seja pelo mercado, seja pela bomba,

(igualam-se em estrondo

os produtos e a devastação)

e pouco resta à palavra

senão automatismos à venda.


O cantor foi interrompido,

cessaram os mecanismos do fôlego;

toda a atmosfera

ressoa como o deserto.


(contracústica, infra-

-diafragmática, a voz conspira

multicostal sobre o risco)

(não a voz sob o risco,

porém a música,

que entrou sem ingresso

no espetáculo do mundo)


A voz, que mande notícias,

ela suspendeu os informes

que garantiam o fluxo

entre o cantor e o mundo.


(um coro só de objetos não sonoros,

que cantores poderiam igualá-los

na solidez e na pontaria?)

(ou um coro só de ausências,

todo feito à imagem do público?)


O cantor sob interrupção 

não pode entregar a vida,

deixa que a voz o faça.


(explodida a voz, ouvimos

enfim o cantor, ou os estrondos

vêm de outra fonte: a música, talvez?)

(o mundo não se organiza em coro

e decreta que a ousadia de somar vozes

pagará um preço muito caro)


Somente não interrompe o cantor

o silêncio,

que o ouve agora.


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