O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Os Guaranis e O Guarani: Carlos Gomes revisitado no Teatro Municipal de São Paulo

Sobre Il Guarany, ou O Guarani, ópera de Carlos Gomes inspirada no romance de José de Alencar, li e ouvi diversas manifestações sobre o sucesso incrível de público da última montagem no Teatro Municipal de São Paulo. Ela contou com o time de Roberto Minczuk (regente), Ailton Krenak ("concepção geral"), Cibele Forjaz (direção cênica), Denilson Baniwa (codireção artística e dramaturgia) e Simone Mina (figurino, além de codireção artística e cenografia). Havia, portanto, indígenas na concepção e na direção artística da ópera que leva personagens indígenas para o palco, além de dois atores indígenas, Zahy Tentehar Guajajara e David Vera Popygua Ju, e a Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá KYRE'Y KUERY, que apresentaram a música de sua própria cultura, como uma espécie de interlúdio na composição de Carlos Gomes. Creio que isso jamais foi tentado na história dessa ópera, estreada em 1870.

A audácia artística foi recompensada com o sucesso de público que levou a uma récita extra, o que deve ter sido difícil por causa das conhecidas dificuldades das agendas dos artistas que trabalham em ópera. Em geral, eles têm compromissos marcados com antecedência de dois anos.

Gosto muito de ópera e já cantei (no Coro da Cidade de São Paulo) em três produções (até agora; espero participar de La Traviata em agosto). Também escrevi vários textos sobre direitos dos povos indígenas e participei em eventos, atos e manifestações desses povos ou com eles. Em geral, as pessoas que encontro no meio da ópera não conhecem as do ativismo indígena e vice-versa. Gostei imensamente de ver esses dois mundos por que tenho tanto interesse cruzando-se.

Talvez por esse cruzamento não ser tão frequente, imagino que a direção tenha caído na tentação do didatismo em relação às lutas indígenas. O soprano que cantava Ceci, na sua segunda ária, tinha que competir com várias projeções de filmes e textos (por sinal, o Teatro poderia investir mais em revisão de português: "ali" com acento, entre outros erros, não dá!). Nesse ponto, a direção cênica sabotou Carlos Gomes, pois era difícil prestar atenção na cantora.

E não deveria fazê-lo? Tentar algo como uma partida Guaranis vs. Guarany? Não se deveria sabotar uma história da colonização? Creio que não, pois O Guarani é mesmo uma grande ópera; o que deve ser feito é torná-la nova, o que é outra coisa, que acabou sendo realizada por esta nova concepção cênica. Lendo os textos incluídos no belo libreto vendido no Teatro, inclusive a nota feita muito por alto por Ailton Krenak, creio que Ligiana Costa, responsável pelo dramaturgismo, escreveu o mais esclarecedor das tensões entre a obra do século XIX e nosso tempo (nota: entre eles, está o texto de um dos grandes ficcionistas brasileiros, Pedro Cesarino, que acho que não é mais reconhecido como escritor por ser também um importante antropólogo).

A dramaturgia funcionou desde antes do começo esperado da ação: a coreografia durante a Protofonia, combinada com a arte de Denilson Baniwa, gerou uma cena comovente: a luta, os massacres e o renascimento dos povos indígenas foram ali encenadas durante aquela peça sinfônica tão significativa (e muito bem regida por Minczuk), que acabou assumindo o papel de um dos retratos musicais do Brasil. Esta música deixou de parecer "batida", acusação que alguns críticos lhe fazem, talvez por causa do programa A Voz do Brasil...

A montagem foi um grande sucesso artístico, razão pela qual poderíamos imaginar detratores completamente ignorantes em ópera e sem muita inteligência para entender as coisas do teatro reclamando de que "a ópera foi cortada" porque o balé não foi encenado ou de que a música não foi respeitada, pois a música Guarani foi ouvida, funcionando como interlúdio. Imagino que um grau de idiotia mais extremo pudesse invocar o direito do consumidor contra a montagem, já que estamos no país dos bacharéis -- mas seria extrapolar as deficiências diplomadas da inteligência nacional aos píncaros do absurdo. Ora, como se sabe, é extremamente comum cortar música de balé em representações de ópera (quantas vezes você que me lê assistiu a uma récita do Otello de Verdi com o balé?), inclusive em gravações. Ligiana Costa, em seu texto, tem o cuidado de lembrar que muitas das montagens do Guarany ignoram o balé. Ademais, o método do enxerto (como se fez com a música Guarani duas vezes durante a ópera) não é infrequente nas encenações contemporâneas, inclusive com a introdução de personagens novos, em geral mudos.

Houve um tempo, bem anterior a Carlos Gomes, o da ópera barroca, em que o enxerto era quase o modo de produção do espetáculo. Os cantores cantavam suas árias preferidas não importa em que ópera e de que autor e em que idioma. Trata-se, contudo, de outro assunto.

Não aconteceu nada, em termos cênicos ou musicais, naquele Guarani que não ocorra normalmente nos palcos de ópera de hoje: duplos, projeções, textos de outras proveniências. Creio até que virou moda, nos últimos anos, os personagens terem duplos não cantados - vi no cinema, por exemplo, uma produção francesa Così fan tutte em que os cantores tinham como duplos bailarinos, que não cantavam, mas encenavam com sua coreografia a comédia. A diferença é que indígenas estavam na direção e no palco.

Desta vez, os cantores que interpretavam Peri e Ceci tinham duplos indígenas: David Vera Popygua Ju (como Peri; já o mencionei neste blogue algumas vezes em sua atividade de liderança Guarani) e Zahy Tentehar Guajajara (ela me pareceu o devir-indígena de Ceci). O procedimento não era inédito, claro, mas não devemos diminuí-lo por isso: devemos julgá-lo por sua eficácia. Creio que ele funcionou muito bem, especialmente na cena do batizado de Peri (por amor a Ceci, ele se cristianiza), provavelmente a mais violenta para a sensibilidade de hoje. No fundo do palco, os músicos e atores indígenas encenaram uma consagração do duplo de Peri, que ganhou cocar, arco e flecha. O batizado etnocida foi contrabalançado por aquela outra cerimônia, que indicou a permanência e a resistência daquele povo e suas crenças, apesar da violência cristã da colonização.

Muitas vezes os conquistadores espanhóis apareceram sob pedestais e assumiram poses de estátuas. Li um crítico que não gostou da ideia, mas a achei genial: era evidente que os encenadores queriam criticar as estátuas e outras homenagens aos colonizadores, assassinos e traficantes de indígenas, tão comuns, por sinal, em São Paulo. Imagine a violência de um Estado que resolve nomear uma estação de metrô com o escravizador Fernão Dias de indígenas em vez de Paulo Freire. O genocídio recebe as homenagens oficiais monumentalizadoras... Essa política oficial de ódio aos povos indígenas foi na ópera eficazmente ridicularizada.

Em revanche, a ideia de fazer o cacique Aymoré um antropólogo branco que lê Davi Kopenawa e Bruce Albert (havia mais bibliografia, mas, de onde estava, foi o único livro que identifiquei, A queda do céu), embora provavelmente corresponda às fantasias de maus cientistas, era mais engraçada que interessante.

A regência de Roberto Minczuk foi muito vigorosa, exemplar de um maestro de ópera; não lembrava em nada o sonífero musical daquele disco com Plácido Domingo (o grande tenor merecia um regente à sua altura, mas não obteve). O Coro Lírico, ao contrário da Orquestra do Teatro, estava meio desencontrado no dia em que assisti à produção, desde a aparição dos caçadores. Vi o segundo elenco. Vocalmente, destacaram-se os baixos e os barítonos. Lício Bruno estava ótimo como Cacique, David Marcondes impressionou como Gonzales. Em um papel mais curto, Don Alvaro, ouviu-se a bonita voz do tenor Guilherme Moreira. Os interpretes do casal protagonista, Débora Faustino e Enrique Bravo, foram valentes ao enfrentar tessituras não tão adequadas às suas vozes. O soprano lírico de Faustino não tinha toda a agilidade nem todo o agudo exigidos (a conclusão da ária "Gentil di cuore" teve que ser assumida pelo coro, por exemplo - um soprano ligeiro teria sido mais feliz); o tenor estava mais à vontade, porém soava como um lírico tendo que assumir um papel que foi de Mario del Monaco.

Este tenor italiano, na autobiografia Minha vida, meus sucessos, incluiu uma foto com o torso nu, caracterizado como Peri (segundo ele, mais despido do que vestido), e escreveu que agradou muito nesse papel no Rio de Janeiro em 1947, onde foi muito bem recebido e interpretou também Il Trovatore, de Verdi, e o Fausto no Mefistofele, de Boito. Estamos agora em outros tempos: a solução da montagem de 2023 foi evitar caracterizar os brancos como indígenas - o coro, quando interpretava os Aymorés, vestia redes (visualmente, o efeito era muito bonito). Enrique Bravo vestia algo parecido e não houve nenhuma tentativa de maquiá-lo como indígena, solução que ficou hoje antiquada e é considerada até racista. A estratégia de usar como duplo um ator Guarani dispensava-a, por sinal.

Dito isso, em ópera o que determina a escalação de um papel é a voz; uma cantora japonesa não pode ser escolhida para cantar a Madama Butterfly se é, por exemplo, um contralto ou um soprano ligeiro... O contralto não alcançaria as notas nem da entrada da personagem e o soprano ligeiro ou destroçaria a música do segundo ato ou destruiria a própria voz tentando fazer justiça à partitura. A falecida Jessye Norman, negra nascida nos Estados Unidos, estreou em Berlim cantando um papel para o qual muitos esperam louras alemãs: Elisabeth, do Tannhäuser, de Wagner. Ela cantou diversos papéis concebidos para cantoras brancas, assim como Leontyne Price, Martina Arroyo, Grace Bumbry (que morreu recentemente e foi o primeiro artista negro a ser protagonista em Bayreuth, no Teatro construído para as óperas de Wagner) e, hoje, Pretty Yende, entre outras, porque é a voz que comanda. Quando o brilhante Lawrence Brownlee canta, por exemplo, Rossini (neste vídeo, na Ópera de Paris), o que resta aos racistas senão envergonhar-se? Poderiam até regenerar-se e tornar-se pessoas decentes, mas alguns deles reclamam ridiculamente de "genocídio branco" (como fizeram quando a sul-africana Pretty Yende e o mexicano Javier Camarena protagonizaram com grande sucesso La Fille du Régiment, de Donizetti, no Metropoltian Opera House) vendo tantos artistas de outras raças ocupando os palcos de ópera... 

Voltando a São Paulo: outro elemento interessante foi fazer o espetáculo continuar depois que a música de Carlos Gomes acabou, outro procedimento típico dos encenadores contemporâneos de ópera. Neste Guarani, a atriz Zahy Tentehar Guajajara, que também é cantora (com uma voz de tamanho mais modesto, porém: ao contrário do Coro Guarani, ela precisou de microfone, mesmo sem ter que competir com a orquestra do Teatro), cantou uma canção indígena e os Guarani levaram um cartaz exigindo demarcação de sua terra. Dessa forma, os povos originários é que deram a palavra final. Foi muito lindo.

No entanto, o espetáculo NÃO tinha acabado ainda! Todo o elenco, indígena e não indígena, e o maestro (não vi se Cibele Forjaz estava lá também; provavelmente sim, pois tinha acabado de receber aplausos com os outros artistas) foram para a escada: os músicos Guarani voltaram a fazer sua música e mostravam um cartaz exigindo demarcação das terras: 



Relembremos que a Terra Indígena Jaraguá é a menor no país, tem menos de 2 hectares. O então governador Geraldo Alckmin foi ao Judiciário para impedir a ampliação da demarcação.

Depois, David puxou o lema "Não ao marco temporal" e a música Guarani voltou a ser ouvida. Para quem não sabe o que é essa tese pró-genocídio contra a qual os povos originários lutam, escrevi um resumo neste blogue.





Já vi algo análogo no Teatro Municipal de São Paulo em 2022: depois da apresentação de Café, ópera que Felipe Senna escreveu a partir do conhecido libreto de Mário de Andrade, membros do MST, que tinham participado da récita (o ponto alto da apresentação, aliás), foram para as escadarias e lá, depois do término da obra operística, continuaram sua performance reivindicando a reforma agrária. Foi também um encontro imprevisto de mundos: o do movimento social dos Sem-Terra e o da ópera. Outro sucesso de público.

É por isto que amo a ópera: além da generosidade do gênero, que consegue acolher outras artes e outros mundos, ele pode fazer tudo parecer possível: o acesso à terra aos camponeses, a derrota do latifúndio, a efetividade dos direitos dos povos originários, a queda dos colonizadores. 

Tudo isso deve ser possível, no palco e fora dele. O espetáculo tem que continuar.


P.S.: Falando nas tradições operísticas: o espetáculo foi dedicado a Niza de Castro Tank, grande soprano ligeiro, um dos protagonistas da primeira gravação da ópera, em 1959, regida por Armando Belardi, e que foi uma das maiores intérpretes do compositor. Ela morreu no ano passado, aos 91 anos, depois de uma longa e importante carreira.

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