O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Direito versus Literatura, parte I: biografia, censura e Benjamin Moser

Já vi um ou outro trabalho sobre direito e literatura escrito por pessoas que não conheciam nenhuma das duas áreas. Julgavam, portanto, que agiriam livremente em uma fronteira fugidia onde jamais seriam apanhadas por alguém desses dois campos.
No entanto, "direito e literatura" pode dar ensejo a propostas metodologicamente muito ricas e diversas, desde estudos de representações do direito na literatura (via geralmente escolhida pelos juristas que se aventuram nisso), a questões de hermenêutica, ao direito à literatura (Antonio Candido continua sendo a referência brasileira), e até a trabalhos que tentam ver a literatura como fonte e/ou como método do direito (o que me parece bem divertido).
Um campo riquíssimo de pesquisa nesse campo é o do direito contra a literatura. Num país de tradição bacharelesca, e de bachareis semiletrados, quem sai perdendo nesse embate inglório?
Exemplo da derrota da literatura é a progressiva desaparição de um gênero no Brasil, a biografia, por decisões judiciais.
Sobre o assunto, li há pouco uma entrevista de Benjamin Moser, autor de biografia de Clarice Lispector, Why this world. Foi publicada uma edição brasileira um tanto reduzida desse livro - foi excluída toda a seção iconográfica, o que é curioso para uma editora que começou publicando livros de arte.
Tive notícia do livro em resenha da revista The Economist, que o elogiava com as ressalvas de que o autor teria exagerado nas tintas do judaísmo de Lispector e que ele teria subestimado a capacidade brasileira de miscigenação com o estrangeiro.
O livro é melhor do que a resenha - e o autor, que empreendeu uma vasta pesquisa, foi a Ucrânia (onde Lispector nasceu) e lançou nova tese sobre a doença da mãe da escritora. Gostei também de ouvir Benjamin Moser, que fala muito bem português, em um dos lançamentos no Brasil.
Nesta entrevista dada a Claudio Leal, trata das dificuldades do gênero biográfico no Brasil em contraste com a situação nos Estados Unidos. Nesse país, o cantor hoje dedicado a navios não teria conseguido censurar integralmente a biografia escrita por um fã, nem as descendentes do grande jogador de futebol poderiam ter proibido provisoriamente o livro de Ruy Castro.
Tenho só algumas ressalvas ao que Moser escreveu: há trezentos anos, não se podia publicar nada no Brasil colônia, certamente, porque a imprensa era proibida; no entanto, não havia liberdade de expressão no Portugal do Absolutismo - publicar lá não seria uma boa saída.
Outro ponto: a censura varguista não era meramente "sutil", limitando-se a instrumentos como a proibição de importar papel. DIP, empastelamento de jornais, prisão e tortura de jornalistas integravam a receita de Vargas para reprimir os opositores. Depois de uma de suas prisões, o famoso Barão de Itararé (evidentemente, o maior nome da nobreza brasileira) pendurou na porta o tristemente cômico aviso: "entre sem bater".
A ditadura militar tampouco se limitava a ameaças, o cadáver de Herzog amargamente comprova esse fato.
Moser está certíssimo, contudo, em dizer que "a verdade é que a cultura brasileira precisa ser divulgada primeiro no Brasil". Entre os juristas também, me animo a dizer.
Mas se pode esperar algo das autoridades? Lembro do procedimento clamorosamente ilegal da Fundação Biblioteca Nacional contra os biógrafos, objeto desta justa queixa de Fernando Morais: "Eles estão exigindo agora que você leve autorização dos personagens citados na sua obra ou dos seus descendentes." Como fazer a biografia de um Casanova no Brasil? Sempre se pode provocar a ira de um tetraneto oriundo de algum encontro furtivo do conquistador!
A questão jurídica parece-me nula em termos dogmáticos, explicando-se apenas pela antropologia. O artigo 20 do Código Civil não proíbe biografias, apenas protege o direito de imagem - também dos mortos, em um momento necrofílico da augusta lei.
A verdade histórica é contrária à boa fama? Afirmar, como Elio Gaspari fez a partir de documentação, que Geisel autorizou o assassinato de oponentes à ditadura militar contraria a "respeitabilidade" ou a "boa fama" do ditador falecido?
Na prática, o direito à memória e à verdade, de natureza difusa, é negado por uma hipertrofia, realizada pelo Judiciário, do direito à imagem, que é individual. De que forma? Se a verdade sobre determinada pessoa pública é considerada ofensiva por um descendente ou pelo próprio, ela é proibida.
Trata-se de uma intepretação realmente singular: o direito à imagem significa, para tal jurisprudência, o direito à hipocrisia.
Essa notável construção jurisprudencial a partir de um curioso artigo do singular Código Civil brasileiro parece-me decorrer de uma cultura jurídica privatista, que faz prevalecer interesses individuais (lucros advindos da imagem dos falecidos) sobre direitos difusos (a verdade histórica).
Isso ocorre num país em que censura é proibida pela Constituição, porém permanece como valor e tradição autoritários.
É essa a dimensão antropológica. Veda-se, por conseguinte, o acesso à cultura brasileira, substituída pela hipocrisia judicialmente autorizada.
O atual ministro da justiça quer desarquivar substitutivo seu a projeto de Antonio Palocci para impedir a censura judicial a livros. O de Palocci era bem melhor.
Como o problema não é legislativo, mas próprio de uma cultura jurídica que lerá qualquer fonte do direito segundo sua ideologia privatista, resta a ver se a edição de nova lei adiantará alguma coisa.
A história do direito brasileiro não aconselha muito otimismo. Por exemplo, tratado internacional da ONU contra a tortura e lei federal, juntos, não foram suficientes para que boa parte dos juízes brasileiros fossem capazes de tipificar o crime quando ele era cometido pelos agentes da segurança pública, segundo relatório das Nações Unidas.
"O que acontece é que o jornalista ou o escritor tem um coronel na cabeça.", disse Benjamin Moser. Aqueles juízes também.

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