Em nome dessa meta improvável, o Estado brasileiro tem, repetidas vezes, sacrificado sua imagem, a coerência e os direitos humanos.
Falei em pré-ONU. Explico para quem não conhece as miudezas da história da política exterior do Brasil. Antes da ONU, existia a Sociedade ou Liga das Nações, criada com base no Tratado de Versalhes, que foi o "acordo" de paz da Primeira Guerra Mundial. Esse acordo foi negociado sem a presença dos diplomatas alemães, e imposto a esse Estado, que foi simplesmente excluído da nova organização internacional.
A medida absurda e discriminatória (que não seria repetida com a criação da ONU) seria desfeita após os Tratados de Locarno de 1925. Em 1926, a Alemanha ingressaria na Liga e teria uma vaga permanente no Conselho da organização. O governo brasileiro, que era um membro eleito desse Conselho, resolveu simplesmente vetar o ingresso daquele Estado em março, por ter visto falhar sua chantagem de somente aprovar os alemães se fosse concedida ao Brasil a vaga permanente que era destinada aos Estados Unidos!
Os EUA, faço lembrar, acabaram nunca integrando a organização (apesar dos esforços do Presidente Wilson) em razão do isolacionismo do Congresso estadunidense.
Acabou o mandato do Brasil em setembro do mesmo ano, ele não foi reeleito (nenhuma surpresa) e a Alemanha pôde ingressar na Liga. O Brasil, então, deixou a Liga em protesto por não ter visto sua "importância internacional" reconhecida. Essa era a madura política exterior da República Velha!
A organização terminou, de fato, com a Segunda Guerra Mundial. Durante as negociações para a criação da ONU, a ambição brasileira permanecia, e Stálin vetou a destinação de uma vaga permanente no Conselho de Segurança para o Brasil, afirmando que essa inclusão apenas daria mais um voto para os EUA!
A obsessão continuou, no entanto. Mais um dos incontáveis exemplos está neste telegrama de 22 de dezembro de 2009 divulgado por Wikileaks em 6 de fevereiro de 2011:
¶2 [...] Brazil has not disagreed with a single argument in our previous demarches and non-papers. The response has been always the same: the concept of bdefamation of religionsb is repugnant to Brazilian values and principles, and it is inconsistent with Brazilian law and international law. For those reasons, Brazil cannot and will not support a resolution that purports to punish the bdefamation of religions;b instead, Brazil consistently abstains.
¶3. (C) When asked why Brazil does not vote against a resolution it finds totally objectionable, Gauch responded that it was enough to abstain. In the GOBbs view, Brazil is taking a principled but practical position on the issue, not desiring to offend OIC countries, in particular powerful ones like Iran, Egypt, Turkey, and Saudi Arabia with which Brazil is attempting to deepen relations. Moreover, obtaining a permanent seat on the UNSC remains Brazilbs overriding foreign policy goal. As a result, the GOB prefers to avoid antagonizing countries and groups of countries whose votes might be valuable in a future election.
Trata-se de iniciativa de Estados islâmicos para impedir a liberdade de expressão e perseguir minorias sob o pretexto de "difamação da religião". Tanto a Assembleia Geral quanto o Comitê de Direitos Humanos da ONU já aprovaram resoluções a favor.
O Brasil, embora contrário à medida, simplesmente se abstém nessas votações para não desagradar eventuais Estados (mencionam-se no telegrama Irã, Egito, Turquia e Arábia Saudita) que poderão apoiá-lo em seu caminho para o assento permanente no Conselho!
Os impérios não gostam do Direito internacional - para eles, é melhor agir sem regulação alguma. Mesmo um Direito altamente manipulado pode causar algum constrangimento ao arbítrio. Dessa forma, os Estados Unidos não são membros da Convenção da ONU sobre Direitos da Criança, bem como, em uma postura isolacionista, de vários outros tratados de direitos humanos; a situação é oposta no tocante a questões econômicas como propriedade intelectual...
A Somália, que nunca se destacou pelo cumprimento dos direitos humanos, também não. São os dois únicos membros da ONU que ficaram de fora do tratado, pelo que sei. O Brasil ratificou a Convenção.
Mas eis que vemos, em telegrama de 30 de novembro de 2009, que os EUA contavam com apoio brasileiro para modificar o texto dela:
¶8. CONVENTION ON THE RIGHTS OF THE CHILD: Silva believed it would be difficult to change the CRC's wording to meet the objections of the United States or Somalia. He said he would nevertheless encourage the Brazilian Mission in New York to be in touch with the U.S. Mission to see if it is possible to find common ground.Esse Silva não é o ex-presidente brasileiro, e sim Nathanael Souza e Silva, da divisão de direitos humanos do Ministério das Relações Exteriores.
Esse telegrama também foi divulgado no dia 6 de fevereiro. Quis escrever a respeito disso porque, acho, os holofotes cairão sobre as declarações de 2005 do rabino Sobel sobre o alegado antissemitismo de Lula, que estaria mascarado de antissionismo.
No entanto, em favor do ex-presidente, lê-se no último telegrama que citei que Lula teria ficado pessoalmente perturbado com a negação do holocausto pelo presidente do Irã ("President Lula, who is personally disturbed by President Ahmadinehad's Holocaust denial, would raise that issue along with persecution and harassment of Baha'is during Ahmadinehad's impending visit to Brazil.") e, de fato, o presidente brasileiro fez uma declaração pública sobre o assunto quando o iraniano esteve no Brasil.
A obsessão com o Conselho de Segurança da ONU continuará? Decerto. Porém é de esperar que a presidenta Dilma Rousseff mantenha uma política exterior mais coerente com os direitos humanos, que é justamente a que um virtual membro desse Conselho deveria assumir...
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