O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Algo como um poema: homenagem às florestas, presságios dos desertos

Enquanto o projeto de Código Florestal vai abrindo seu caminho legislativo a golpes de motosserra, pistolagem, contrabando, tóxicos e outros instrumentos do agrobanditismo, escrevo aqui mais um poema de meu livro inédito Cálcio.



Alvará de demolição





no campo
o código da paz
legislado por armas

(cativo breu
propaga a sombra
dos palácios da república
às enxadas dos escravos:

Visionária sustentabilidade da cinza
dos cocares ensanguentados
às feiras de artesanato tradicional
)

os nervos roídos pela luta
nada sentia enquanto atirava
até que o cheiro de carne queimada
obrigou-o a olhar para a própria mão

baixou as sobrancelhas sem pelo
e o rosto habitado por orifícios novos
cavernas
onde o vírus refazia a origem do homem

viu os tocos dos dedos
ainda firmes
a empunhar o fogo rupestre

(cativo breu
caiu sobre o dia e não é noite
fez cair a noite sem ser eclipse
mas poente contínuo,
o céu desta república

Sustentabilidade sólida da seca
dos velhos mananciais às novas represas,
deságua na minha taça
)

a fumaça desenha nas paredes
o animal
a caça
ele mesmo

no campo
o código da floresta
semeado por corpos

nascem brotos
transgênicos
propagam outra coisa que já não é a lei
e sim uma ordem mais imperiosa
que a areia impõe aos quilômetros quadrados do sol

(cativo breu
dos fogos de artifício
comemorativos da república
acesa na terra ancestral
onde os mortos viviam
e estão sendo mortos novamente

cativo breu,
como o extermínio pode ser sustentável?
perguntam-lhe, e apaga as luzes
quando se leria a resposta nenhuma

Alguns resistem com flecha ou fogo,
mas a sustentabilidade está do nosso lado:
nossas armas têm pontaria automática
)

ele viu o fogo inteiro nos tocos de mão
e continuou a atirar
como as árvores, ainda de pé
embora o perfurassem, como às águas
e preparassem
o cerrado em fogo no fogo cerrado

desfazendo a origem do mundo

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