A violação maciça dos direitos humanos é sempre uma operação complexa que exige uma combinação de ações e omissões, pois é fundamental, para a magnitude da violação, que aqueles que poderiam impedir os atos ilícitos se mantenham calados ou inertes. Em orquestrações, inclusive as musicais, alguns instrumentos devem silenciar enquanto outros tocam, para que o efeito almejado seja atingido.
Como desconheço quem seja o compositor desta obra que é a ruína de todo um bairro, o Pinheirinho, não sei se houve orquestração ou, na verdade, um encontro casual de ações e omissões. De qualquer forma, o acaso também pode ser voluntariamente empregado na composição musical (e jamais se consegue afastá-lo de todo na execução... musical), porém poucas vezes com resultados felizes.
A barbárie da destruição de todo um bairro pela prefeitura de São José dos Campos (nas mãos de Eduardo Cury) e os poderes estaduais de São Paulo (Executivo, com a polícia de Geraldo Alckmin, e Judiciário combinando forças), sob bombas e tiros foi acompanhada de omissões significativas em nível federal. A notável falta de coragem cívica da presidenta Dilma Rousseff, que teria criticado a portas fechadas a barbárie e manteve-se calada a respeito quando esteve em São Paulo (bem pode ser que ela tenha aprovado a barbárie; neste caso, a falta é de civismo), e a inércia da ministra Maria do Rosario, que divulgou esta nota postergada (lembro que ela critica quem trabalha rápido em favor dos direitos humanos) estão sendo acompanhadas do bloqueio do bolsa-família para os, direi assim, "refugiados" de Pinheirinho (o Haiti é aqui - e também não é, já que os haitianos estão sendo impedidos de vir).
Falta de civismo? Ou de civilidade? E para quem? Rousseff, rainha incontestável do ato-falho (lembremos do meio-ambiente, que ela caracterizou como inimigo), inolvidavelmente revelou que ela seria presidenta de todos os brasileiros "mas também dos pobres"; pobre é uma categoria à parte, que não entra na dos cidadãos brasileiros.
Outra omissão foi a notável falta de jornalismo da grande imprensa, que não reclama quando é censurada em ações contra os pobres. Este artigo de Jânio de Freitas é esclarecedor das mentiras da Polícia Militar e do governo do Estado, mas cala a respeito da dimensão de classe social do problema, do qual ele mesmo é parte. Se houvesse ação parecida em mansões griladas em Brasília (eu argumento com o impossível apenas como ilustração), a reação jornalística teria sido bem outra.
Em termos jurídicos, toda ação foi de um desacerto tão grande que se entende que a juíza Márcia Loureiro, talvez para se certificar de que sua caneta foi mesmo capaz de gerar a devastação (a única forma como esses juízes poderiam emular poetas como Eliot e The waste land), foi pessoalmente ao local depois da operação policial. Trata-se de atitude rara, pois os magistrados em geral são uma espécie de gabinete, e qualificada neste caso como escárnio por Wálter Maierovitch.
Sugiro ver, para quem aprecia emoções fortes, a entrevista que a magistrada concedeu sobre a ação, disponível no YouTube, e compará-la com este texto de Jorge Luiz Souto Maior sobre a função social da propriedade e este, de Vladimir Aras, que qualifica o caso de nada menos do que naufrágio judiciário.
A lição é ostensiva para quem acha que é possível a democratização (e até justiça de transição!) de um país em que um poderes políticos é abertamente antidemocrático (Eliana Calmon que o diga).
Felizmente, temos em contraponto ações do Ministério Público Federal: aqui se pode ler a petição inicial de ação civil pública contra a União, o Estado de São Paulo e o Município de São José dos Campos. E a procuradora Gilda Pereira de Carvalho enviou ofício ao prefeito Eduardo Cury cobrando-lhe o respeito ao direito à moradia da população que foi alvo de bombardeios da Polícia Militar e da Guarda Municipal.
A discussão permanece. Políticos associados ao governo defendem a operação literalmente arrasa-quarteirão. Soninha Francine publicou no twitter contra os moradores, ou certos moradores, do Pinheirinho. Depois, tentou explicar-se em um texto que é o oposto do que João Telésforo escreveu, "Justiça não é pacificação", que elogia a tensão e o conflito para a criação de novos direitos e de poder popular - Bruno Cava fez o mesmo, por sinal. E a Francine escreveu algo mal articulado e sem humor, o contrário do que Hugo Albuquerque logrou nas "Dez mentiras que cercam o Pinheirinho".
A propósito, Idelber Avelar fez um amplo roteiro comentado de leitura sobre Pinheirinho; André Egg fez também o seu, em duas partes. Agradeço aos dois terem citado este blogue.
O Judiciário empenhou-se intensamente para impedir que os direitos humanos fossem aplicados ao caso. No entanto, deve-se reconhecer que a Polícia Militar foi quem mais trabalhou na destruição física de Pinheirinho. Além da mão militar, suas ações prosseguem na área da comunicação. Sobre isso, escreverei outra nota, provavelmente amanhã.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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