O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 21 de janeiro de 2012

Belo Monte e Mautner: Kaos em favor da Ordem

André Vallias me chamou a atenção para o vídeo da "TV Belo Monte", destinada a fazer propaganda em favor da maior violação de direitos humanos e do maior ecocídio até agora planejados pelo governo de Dilma Rousseff. Entre as pessoas convocadas para defender o indefensável, está Jorge Mautner, o artista do Kaos.
O depoimento é bastante peculiar. Invoca-se o patriotismo, como se fossem os "interesses internacionais" que desejam impedir a usina. É claro que o imperador Mautner despojou por decreto os índios, os antropólogos, o Ministério Público Federal, os ecologistas, artistas, eu mesmo etc. da nacionalidade brasileira. Trata-se de uma ideologia da "união nacional", autoritária, que impede ver interesses divergentes e diversidades culturais.
Depois do ato de arbítrio do Imperador Mautner, passemos para os ufanismos de bolso:

1. "a nossa democracia é realmente muito democrática e a mais ampla de todas em sua constituição"

A democracia brasileira é a mais ampla do mundo? Para quem? Certamente não para o povo brasileiro. Não sei se a "constituição" a que ele se refere é a norma jurídica ou a formação política. Nos dois casos, estaria errado.

2. "A dor e o prazer às vezes estão muito juntos neste processo. E dá uma dor no sonho de macular aquele cenário imaginário."

Dor para quem, prazer para quem? Uma forma de negar os danos é dizer que o Xingu não existe; se ele é só imaginário, destruí-lo não causaria efeitos reais... Porém, Mautner é bem explícito ao afirmar que há um sonho de destruir tudo aquilo. Essa aspiração, que é a do Capital, passou a ser também dele. Tal é o novo imaginário do Kaos.

3. O artista declara que Belo Monte vem para "necessidade de eletricidade dos habitantes da Floresta Amazônica", que estaria 80% preservada. E o resto do Brasil teria 61% de floresta preservada! Afora os índices enlouquecidos do novo ecologista Mautner, parece que a eletricidade do local será aproveitada para exportação para a China - eis os interesses internacionais que estão ao lado da construção de Belo Monte.

4. Espera que ela cumpra "suas promessas escritas", as condicionantes.
Belo Monte já encarna a quebra, pelo Estado brasileiro, de promessas escritas, o Pacto de São José da Costa Rica entre elas. A presidenta Dilma Rousseff aprofunda o estado de Estado-fora-da-lei no sistema internacional de direitos humanos de que o Brasil, na verdade, nunca chegou a sair completamente. Como a poluição nos rios amazônicos e a sede dos índios sabem perfeitamente, as condicionantes impostas ao empreendimento ecocida não cumpriram seu papel: o IBAMA, adotando o iletramento como método hermenêutico (sempre favorável aos poderosos), licenciou aquilo sem considerar que cumprir as condições fosse um requisito para as obras... As condicionantes não condicionam!

O ecocídio segue sem respeitar aquilo que deveria servir-lhe de condição, razão pela qual o Ministério Público Federal, diante da complacência do governo federal com a ilegalidade, propôs uma das ações civis públicas contra o empreendimento.
A manifesta duplicidade do Instituto pode ser comparada com o que fez contra Nuno Ramos: no caso do artista, que não tem milhões nem faz campanhas eleitorais, cumprir todos requisitos para o licenciamento ambiental não evitou a proibição de Bandeira Branca. Rigor além da lei para a arte, complacência aquém da lei para as grandes empresas. O que é mesmo que o IBAMA deseja conservar no Brasil?
Pode-se contrapor à sabedoria mautneriana esta análise de fontes sobre Belo Monte feita por Idelber Avelar.
Jorge Mautner teria renegado seus antigos ideais nessa entrevista à TV Belo Monte? Não conheço suficientemente bem a obra do artista/pensador, que foi reeditada em alto nível pela editora Azougue. Li apenas Fragmentos de sabonete e outros fragmentos, em que o autor realmente consegue transformar o pensamento em espuma a escoar pelo ralo. Mautner, com esta obra, comprova que "Um livro, às vezes, é apenas um pedaço de sabonete." (p. 28).
Esse livro, publicado em 1976, e que li na edição revista e ampliada de 1995 (lançada pela Relume Dumará), contém uma premonição do que seriam as redes sociais: "Haverá máquinas imensas, cérebros eletrônicos imensos, onde os seres colocarão cartões indicando quais os outros seres que eles querem conhecer." (p. 13). Afora isso, parece-me lamentável.
Politicamente, é pernicioso; aqui também, a visão mautneriana da democracia é ingênua e perigosa, porque afirma prescindir da reflexão:

Vivemos em comunidade porque esta é a forma mais democrática de relacionar-se. E também por causa da tecnologia, da superpopulação, da descentralização, do desaparecimento do individual neurótico. A democracia é evidente em si mesma. (p. 17).

Temos aí o perigo dessas ideologias políticas que rejeitam a razão em nome de um sabonete em êxtase. Se é evidente a democracia, não precisamos questionar nem mesmo se há sentido na tese de que a superpopulação acabaria com as neuroses individuais (psicanalistas poderiam confirmar essa intuição mautneriana?), tampouco o próprio fundamento da utopia mautneriana, que é a tecnologia, o "Grande Mundo Tecnológico", "assustador", que "promove a grande modificação do sistema nervoso de todas as criaturas, quer elas queiram, quer não." Isso é um problema? Não, "porque o que realmente importa é saber captar, entender e concretizar (transformar a ação e gestos) este novo encadeamento de relações." (p. 19).
Não é interessante? Mautner personifica a Tecnologia (usemos maiúscula, como o autor) para tratá-la como algo inelutável, e assim não ver que interesses humanos estão por trás dela. Há teleologias mais sofisticadas do que essa.
Apesar de ter escrito já na década de 1960 sobre a bomba atômica, Mautner faz em Fragmentos de sabonete um elogio irrefletido à tecnologia. Nessa utopia, o lugar dos índios é o do passado, como no trecho nostálgico das páginas 24 e 25, em que ele saúda o futuro que "É a humanidade cristalizada numa pílula imortal." (p. 25). Mautner certamente aplaudirá quando tivermos de tomar a natureza em pílulas - o astronauta tem que fazê-lo, pois está longe da natureza. Porém, se a destruirmos, não teremos nem mesmo essa chance.
Para tanto, há o extermínio imaginário dos índios, coisa tão repetida por aí, que consiste em imaginar que esta era uma terra de gente nua, sem fé nem lei nem rei, vieram os portugueses com a civilização, e agora temos o Brasil, em que todos são unidos e ponto, não há mais índios.
Portugal e Brasil esforçaram-se, mas não conseguiram o extermínio total. Lembro de ninguém menos do que Eduardo Viveiros de Castro que, em entrevista, declarou que, no colégio, havia aprendido que não há mais índios - e a descoberta da realidade levou-o a querer estudá-los. Os esforços de completar, no plano imaginário, o genocídio muitas vezes ocorrem para que ele possa prosseguir sem maiores alarmes no plano concreto.

Os portugueses tinham aliados índios, e os franceses, e os holandeses. Mas no fim a união nacional decretou-se pelo futebol e pelos batuques (sagrados nos terreiros e profanos nos carnavais; ou o inverso disso? Ou o simultâneo?). (p. 42)

Os índios, hoje, sofrem os efeitos dessa pretensa "união nacional", cujos tambores (de revólveres também?) abafam outras vozes. Mautner chega a criticar Lévi-Strauss por ter escrito Tristes trópicos: "Coisas indígenas. Os trópicos não são tristes, faltou um olhar carnavalesco para Lévi-Strauss (sim, um olhar mais profundo para que ele enxergasse essa realidade. Um olhar macunaímico, e não entendiado." (p. 75).
De fato, se os seus olhos estão cegos para as condições dos povos indígenas hoje, e se o seu intelecto está estagnado o suficiente para achar que o carnaval é uma tradição indígena, você achará entediante Lévi-Strauss...
Se a história não é o forte de Mautner, a filosofia também não. Ou sim? Ele glorifica Hegel mais de uma vez, "Hegel anuncia a nova cultura chegando das Américas." (p. 51), mas esse é o filósofo que, como expliquei no meu livrinho sobre direitos humanos, considera "natural" o desaparecimento dos índios (segundo Hegel, "inferiores em tudo") diante do contato com o "sopro" da atividade europeia...
Outro sinal inquietante do pensamente mautneriano foi dado na época em que apoiou o então governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho. No primeiro número do então caderno de cultura do governo do Estado, Instalação cultural, de julho de 1999, temos, na capa, a chamada para "Mautner, o anjo do impossível", e outra matéria, "Poesia e política no poder", sobre Garotinho que, assim como Sarney, é dono da mesma excelência na poesia e na política.
O político-poeta elogia Mautner como artista e como filósofo. Mautner não faz por menos: "acho da maior importância o destaque dado a literatura e a leitura pelo governador poeta Anthony Garotinho, em todas as escolas do Rio de Janeiro." E traça considerações sobre os índios;

Quase todos nossos indígenas eram canibais. Foi novamente através da música e também do teatro que os jesuítas acabaram com a antropologia [sic] no curto período de uma geração. A união nacional deste país-continente deve-se também a este trabalho dos jesuítas através da música e da poesia.

Afora os erros históricos e novamente a ideologia da "união nacional", é deveras significativo o ato-falho de acabar com a antropologia... Afinal, se os índios se dissolveram naquela união, e a antropologia só estuda esses povos, para que ela deveria continuar?...
Mautner reconhece que existia preconceito contra os índios nos anos 1970, mas, "vinte anos depois", "Novamente um milagre da música e da poesia! Lá em Parintins, qualquer loiro de olhos mais verdes, ou qualquer loira de olhos azuis juravam ser descendentes de índios, com muito orgulho!" Ali Kamel tem seus predecessores entre os artistas a soldo.
Volto a Belo Monte. O projeto precisa dessas mistificações artísticas, históricas e filosóficas para ter uma aparência palatável. Mas essa aparência não esconde os problemas jurídicos, não apenas da ilegalidade em relação ao direito ambiental e aos direitos humanos, como seu caráter provavelmente criminoso.
O estado brasileiro tornou-se parte da Convenção da ONU Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio, de 1948, e, por isso, editou a Lei nº 2.889, de 01 de outubro de 1956, que transcrevo inteiramente:

LEI Nº 2.889, DE 1 DE OUTUBRO DE 1956.
Define e pune o crime de genocídio.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA:

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;
Será punido:
Com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a;
Com as penas do art. 129, § 2º, no caso da letra b;
Com as penas do art. 270, no caso da letra c;
Com as penas do art. 125, no caso da letra d;
Com as penas do art. 148, no caso da letra e;
Art. 2º Associarem-se mais de 3 (três) pessoas para prática dos crimes mencionados no artigo anterior:
Pena: Metade da cominada aos crimes ali previstos.
Art. 3º Incitar, direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes de que trata o art. 1º:
Pena: Metade das penas ali cominadas.
§ 1º A pena pelo crime de incitação será a mesma de crime incitado, se este se consumar.
§ 2º A pena será aumentada de 1/3 (um terço), quando a incitação for cometida pela imprensa.
Art. 4º A pena será agravada de 1/3 (um terço), no caso dos arts. 1º, 2º e 3º, quando cometido o crime por governante ou funcionário público.
Art. 5º Será punida com 2/3 (dois terços) das respectivas penas a tentativa dos crimes definidos nesta lei.
Art. 6º Os crimes de que trata esta lei não serão considerados crimes políticos para efeitos de extradição.
Art. 7º Revogam-se as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, 1 de outubro de 1956; 135º da Independência e 68º da República.

Creio que todas as letras do artigo 1º estão sendo praticadas no Brasil, embora eu não esteja conseguindo verificar, na jurisprudência, se os tribunais brasileiros estão aplicando essa lei. Creio que os antropólogos e o Ministério Público devem apurar se Belo Monte é a realização da letra c desse artigo.
Trata-se, lembro, do mais grave crime de todos, cujo cometimento, segundo Hannah Arendt, poderia justificar a aplicação da pena capital. Vejamos o final de Eichmann em Jerusalém:

E justamente porque você apoiou e implementou uma política de não querer dividir a terra com o povo judeu e o povo de algumas outras nações - como se você e os seus superiores tivessem algum direito de determinar quem deveria ou não habitar o mundo - descobrimos que ninguém, isto é, de nenhum membro da raça humana se pode esperar que queira dividir a terra com você. Essa é a razão, e a única razão, pela qual você deve ser enforcado.

Mas lembremos que a Constituição brasileira proíbe essa pena e o Judiciário brasileiro jamais poderia aplicá-la, exceto em caso de guerra. E a pena não é realmente necessária para os poderes estabelecidos: os grupos que, na realidade, a recebem (como os índios) não têm mesmo acesso à justiça. Ademais, a pena deveria ser contra aqueles poderes, e o Judiciário não cometeria tal ingratidão.

E o acesso ao imaginário da nação? Impossível na cosmovisão mautneriana, com que termino esta nota. Pois o artista-filósofo afirma que é "nos demais países latino-americanos" que "a população índia é 'espacialmente' separada da outra"; no Brasil, ela não seria, por causa da miscigenação... Cito a página 71 do livro-sabonete.
Espaços para os índios, para o autor, não se justificam, portanto. É interessante ver como o argumento da miscigenação pode ser apropriado de forma palatável para o racismo.
Em nome da união nacional (a Ordem por trás do Kaos), calam-se as dores dos divergentes: "aqui é uma só festança, um só futebol, um grande carnaval, lembrar mestre Gilberto Freyre."

6 comentários:

  1. Sou fã devotado de Jorge Mautner, mas louvo este artigo pela crítica merecida, certeira e consistente. A título de consolo, deixo a seguinte indicação para outros fãs:

    http://www.youtube.com/watch?v=tf_OpTVm1TI

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  2. Muito Bom! Parabéns pelo texto. Agradeço por ter compartilhado essas ideias. Abraços

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  3. Obrigado aos dois, e a Jesiel por ter lembrado do verdadeiro talento de Jorge Mautner, que não é o de ideólogo nem de ecologista. Como escrevi há pouco no twitter, é dessas espumas teóricas que se erguem concretas barragens...

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  4. Muito esclarecedor o artigo. confesso que sempre apreciei muito Mautner como músico em seu maravilhoso violino parecem se compor e o considero transgresso tbém. Mas como muitos artistas e intelectuais que tiveram algum papel em nossa cultura, creio agora que ele se equivoca e mais ainda "fica a serviço de". Lamentável Mautner!!

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