O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Espaço público, letra e imagem: Entrevista com Carlos Leone

A entrevista abaixo foi publicada no K Jornal de Crítica n. 16, de 2007. Como não está mais disponível, pensei que seria oportuno reproduzi-la aqui.
De 2007 para cá, a crise em Portugal aprofundou-se, a revista Prelo fechou as portas, e a INCM, que a editava, decidiu fechar também a Livraria Camões no Rio de Janeiro.
Portugal chegou ao ponto de escolher um primeiro-ministro, Passos Coelho (continua no cargo, para vergonha daquele país) que aconselhou aos professores portugueses a emigração. Uma forma pouco sutil de dizer que o país não tem mais futuro.
Nesta ligação, podem-se ler os sumários e as introduções dos volumes de Portugal Extemporâneo, ainda a principal obra de Carlos Leone.
Na foto, ele é o segundo a partir da esquerda em mesa com, na ordem, Eduardo Meinberg, Daniel Aarão Reis Filho e Sedi Hirano, no Seminário Exílio e Migrações Forçadas no século XX: América Latina e Europa, que ocorreu na ECA/USP em maio de 2010, organizado pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro, com minha ajuda.


ESPAÇO PÚBLICO, LETRA E IMAGEM: ENTREVISTA COM CARLOS LEONE

Carlos Leone é historiador, professor e crítico literário. Escreveu, entre outras obras, Dez críticas (Lisboa: Edições Colibri, 1999), Portugal Extemporâneo (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2 vol., 2005) e O Essencial sobre Estrangeirados no Século XX (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005). Pesquisador sobre o espaço público e sobre os chamados "estrangeirados" portugueses, tem realizado parte de seu trabalho de campo em instituições dos Estados Unidos. Foi professor visitante da Universidade de Rutgers (Nova Jersey). Foi editor da Revista Metacrítica, de Filosofia, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Atualmente, edita a revista Prelo da Imprensa Nacional-Casa da Moeda portuguesa, que foi retomada em 2006 após 18 anos sem ser publicada.
A entrevista foi concedida a Pádua Fernandes na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.


Uma pré-modernidade persistente

Estive recentemente nos Estados Unidos a dar aulas sobre Portugal no século XX. Comecei com uma introdução, porque as referências dos alunos eram da história inglesa. As referências que eles têm em termos da expansão européia são da expansão inglesa, século XVI em diante. A expansão portuguesa, tal como a espanhola, ocorre nos séculos XV e XVI. Portanto, nesse período, que na língua inglesa se chama Early Modernity e que é uma espécie de pré-história da modernidade para eles, nesse período Portugal e Espanha eram realmente modernos. O problema é que, quando na história européia em geral, se observa a expansão de holandeses, ingleses, franceses, Portugal e Espanha já estão em retrocesso, já estão a iniciar aquilo que é na história de ambos países a decadência, o afastamento da Europa e por aí afora. O meu problema, digamos assim, com a questão da modernidade portuguesa é o facto de ela ter tido uma vida muito breve, não se ter desenvolvido, ter-se alçado e acabado num período histórico ligeiramente defasado do resto da Europa. Temos essa sensação de pré-modernidade persistente porque nossa modernidade não é a do Iluminismo. Então, quando chegamos ao século XX, ao fim do século XX e, por via revolucionária, ao 25 de Abril, há uma mudança das instituições sociais: passa a haver o voto, a liberdade de imprensa, uma separação séria entre Igreja e Estado. Quando chegamos aí, as sociedades européias em seu conjunto já estão no que é vulgarmente chamado de pós-modernidade. Então, a nossa procura da modernidade tende a pensar em coisas que são, na verdade, pós-modernas: a terceira geração de direitos sociais, os direitos ecológicos. E esse salto, como diz o Boaventura de Sousa Santos, como diz o Manuel Villaverde Cabral, esse salto da pré para a pós-modernidade ficou lá atrás, com este enigma de nossa modernidade ter existido, ter sido importante, mas sem ser pensada pelo resto da Europa.

Obstáculos à modernização

As instituições como a Imprensa Nacional, a Biblioteca Nacional estão em contato com o estrangeiro e são levadas a atualizar-se. Se formos para o setor privado em Portugal, um dos setores mais ativos e mais dinâmicos é o bancário. Os bancos estão sempre em contacto com o estrangeiro e têm que se modernizar. Esse contato com o estrangeiro, sobretudo a comunidade européia, foi sem dúvida, nos últimos vinte anos, após o fim das situações de exílio, fator de modernização. Essa europeização contudo ficou aquém do esperado, produzindo ainda assim algo do isolamento lusitano anterior. O maior historiador português vivo, Vitorino Magalhães Godinho, já comparou publicamente em entrevistas os fundos europeus para a modernização da economia portuguesa (recebidos abundantemente nos últimos vinte anos) ao ouro do Brasil. Ou, antes do ouro do Brasil, às especiarias da Índia. Ou seja: com uma fonte externa de riqueza, da ordem quase do milagre, que promove alterações positivas, mas que acaba por ser sentida como uma facilidade, uma espécie de maná, e portanto, não leva a um movimento próprio interno de modernização. Hoje, os fundos europeus estão a decrescer em volume. E começam a fazer falta, pois se vê coisa que deveria ter sido feita. Muita coisa ficou por fazer.
Há vários outros problemas, sobretudo em nível de justiça e de educação. Os sistemas de educação são praticamente autônomos, não têm grande controle exterior, resistem às tentativas de modernização porque alteram o status quo. O que está a passar com o chamado processo de Bolonha, com a modernização da forma do ensino superior em Portugal, é que está a se resistir institucionalmente. [...] Não sei se é verdade o que se diz de Bolonha: que se trata de processo europeu para americanizar as universidades européias. Acho isso impossível, porque não há uma sociedade européia como a americana. Mas ainda que fosse esse o objetivo, receio que não consigam atingi-lo. A sociedade americana funciona de maneira excepcional. No caso de Brown, onde investiguei, o ambiente de trabalho é favorável, o material, a racionalidade das coisas, a disponibilidade dos alunos e professores são constantes. É impossível estar lá e não trabalhar. O aluno vai para a universidade fazer o seu trabalho. Ele quer escrever o próprio paper e traz dúvidas para aula. Há uma atitude de trabalho que é magnífica. E que corresponde ao tal ambiente de investigação sensacional dos americanos. Isso, que eu conheço pouco (não sou especialista no sistema universitário americano) era ótimo que existisse em Portugal. E existe em outros países da Europa, como a Inglaterra. Mas, nos EUA, temos uma versão melhor, mais rica, mais dinâmica do que qualquer universidade européia pode ser.

Descontinuidade do discurso crítico

Quando propus a Manuel Felipe Canaveira, orientador da minha tese de doutorado, estudar o discurso crítico em Portugal, ele logo me objetou que não havia discurso crítico em Portugal. Segundo ele, que é historiador, eu estava a falar de algum caso isolado, e por isso não haveria continuidade desse discurso, ou seja, um objeto definido a investigar; [...] Acabei por concluir que existe uma certa continuidade, mas não se pode pensá-la em termos disciplinares. Essas tradições específicas disciplinares não se formaram devido ao facto de, na história portuguesa, as instituições mais fundamentais da sociedade (o Estado, a Igreja, a Universidade) terem resistido à modernidade.

O aquário kafkiano

Um dos indicadores de uma sociedade moderna é o grau de alfabetização, ou de literacia. [...] A classe média alta (que tem esse indicador, que geralmente é alfabetizada) é a classe dirigente. Em países onde a alfabetização é muito melhor e mais antiga, os do norte da Europa, não é preciso o primeiro ministro ser doutor de coisa nenhuma. A obsessão com o título acadêmico é típica de uma sociedade muito pequena, onde essas glorificações são restritas. [...] Quem detém o poder é quem detém o saber. É tudo a mesma gente. E há a pequenez que faz com que tudo e todos tenham um tio, um primo, um irmão, uma influência, um conhecimento... O fato de a sociedade ser pequena faz o ambiente ser claustrofóbico. No tempo do Salazar, isto era o aquário kafkiano (palavras de Eduardo Lourenço). O pesadelo calafetado, tudo bem fechadinho. Um ambiente em que ninguém diz abertamente o que pensa e com o tempo até deixa de pensar para não ter o risco de dizer por acidente.

O valor do exílio

A experiência do exílio durante o período salazarista vem romper um pouco com esse quadro. A partir de que momento se verifica a influência do Eduardo Lourenço nas letras portuguesas, por exemplo? A partir do momento em que ele passa a residir no estrangeiro. Antes disso ele esteve em Portugal, teve papel importante na Vértice, lecionou por pouco tempo na Faculdade de Letras de Coimbra, passou um breve período no Brasil e foi para a França. Ele começa a publicar mais regularmente já vivendo e trabalhando em França. É um caso, mas há muitos outros. O afastamento gerou ou permitiu o desenvolvimento de uma visão crítica da sociedade. E também permitiu que a sociedade absorvesse essa crítica, porque vinha de longe. De modo que a experiência do exílio, a experiência de imigração foi uma das maiores, senão a maior influência para mudar Portugal no século XX: possibilitou essa passagem de pré-modernidade, em muitos aspectos, para a modernidade / pós-modernidade.

Espaço público e mundo virtual

No passado, havia pouca gente alfabetizada. Hoje os níveis de alfabetização já são muito maiores, mas a cultura, no seu todo, está a transferir a comunicação para os meios de imagem, tevê, internet. De modo que os problemas do passado (não havia quem escrevesse, não havia público) mantêm-se hoje por outras causas. O público foi transferido para as mídias digitais, e esse foi, digamos assim, o problema de todas as revistas de idéias. A Prelo, que está a agora ser publicada, também sofre um pouco por isso: é complicado arranjar colaboradores. O alcance de difusão da revista é muito limitado: cada vez mais não se lê, não se lêem mais revistas culturais, jornais, não se lê, pura e simplesmente. E o sucesso de muita coisa na internet como blogues, vem justamente porque não é preciso perder muito tempo a ler aquilo, é simples e rápido [...] Em publicações portuguesas virtuais, acontece a mesma coisa que ocorre as edições em papel: é difícil manter a periodicidade, é difícil arranjar novos colaboradores, é difícil manter o título. E, ao fim de certo tempo, as coisas tendem a desagregar-se.
Vértice é uma revista que ainda está hoje em publicação. Uma revista de idéias, de literatura. Está muito associada à esquerda e ao partido comunista. Eduardo Lourenço foi fundamental no seu surgimento, na década de 1940. Depois da ida de Lourenço para a França a Vértice perdeu sua influência, em parte pela associação com a esquerda, mas também pela falta de interesse pela palavra escrita, que é um dos problemas da pós-modernidade. Seara Nova, outra revista muito importante, ligada ao António Sérgio, também está em publicação, mas ninguém sabe, ninguém lê. Há uma defesa do romance moderno em Portugal, nos anos 1930, feita pelo António Ferro – figura importante na propaganda do regime de Salazar, mas que começou muito jovem, ligado à revista Orpheu e ao Fernando Pessoa. Trata-se de uma defesa associada justamente à velocidade: não mais o romance em três volumes, como se fazia no século XIX, mas o romance breve, em 200 páginas, para ser lido rapidamente. Apesar de um meio como internet permitir o armazenamento de mais texto, põem-se lá coisas cada vez mais curtas, e isso faz com que as revistas de cultura tenham um papel extemporâneo.
Mas o novo formato, eletrônico, digital no caso, não resolveu o problema cultural de base, isto é, não resolveu a escassez do espaço público. Os projetos que têm viabilidade se mantêm à custa de reproduzir o que já existe. Aí está a tal agenda tradicional, que é cada vez mais a televisão, a entrar também naquilo que era supostamente alternativo, os blogues. Isso é um problema geral.

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