O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 28 de janeiro de 2012

"Contra naturam": Desenvolvimento sustentável à moda Rousseff


Em 26 de janeiro deste ano, a presidenta Dilma Rousseff, no Fórum Social Mundial 2012, a que foi depois de se encontrar amigavelmente com Kassab e Alckmin após o massacre de Pinheirinho (sem dizer uma palavrinha sobre a barbárie ocorrida em São José dos Campos), afirmou que desenvolvimento sustentável é crescimento acelerado!
Até o início da década de 1970, fazia mais ou menos sentido defender que desenvolvimento econômico é simplesmente igual a crescimento. Em 1972, a Conferência de Estocolmo, organizada pela ONU e origem de diversos compromissos internacionais em matéria ambiental, levou à paulatina mudança dessa noção. Um desenvolvimento que não se traduza em um compromisso com as gerações futuras não pode ser considerado sustentável. Mais do que isso: um compromisso com o planeta.
Permanecem, porém, as mentalidades retrógradas, interessadas apenas no lucro a curto prazo, deixando a desertificação, a poluição e a extinção de espécies como legado que esperam não chegar a ver, conquanto tudo isso já ocorra. Ouçam a volta do desenvolvimentismo versão Médici no governo retrô que temos hoje no Brasil: http://t.co/8DiZxKzI.
A partir dos sete minutos, ela enuncia que estará no centro dos debates algo mais amplo do que o meio ambiente e o clima: "um novo modelo de desenvolvimento". Novo, de fato? Após 10 minutos e 37 segundos, ouvimos:

No meu governo, quando falamos de desenvolvimento sustentável, eu quero dizer aqui de forma clara no que estamos falando. Para nós desenvolvimento sustentável significa crescimento acelerado de nossa economia para poder distribuir riqueza. Significa criação de empregos formais e expansão da renda dos trabalhadores. Significa distribuição de renda [...]

Depois de transcrever o áudio, descobri que o texto já está disponível no portal da Presidência da República. No entanto, ouvi-la pode ser bem mais inspirador e revelador do que a simples leitura, em razão da entonação dura, monótona e levemente ameaçadora que a presidente empresta àquelas palavras. Ouçam que fala de amplo mercado de consumo (mais um caso de ameaça ao meio ambiente, embora ela não o perceba) etc. Aos 12 minutos e 48 minutos, recorda da sustentabilidade ambiental como "condição imprescindível", mas ela já a reduziu ao mero crescimento econômico (com distribuição de renda).
O gosto nulo e o talento zero da presidenta para o ambientalismo, sempre reiterados, fazem-nos relembrar que, quando na Casa Civil do governo Lula, ela já tinha exposto o Brasil ao ridículo ao dizer, em Copenhague, 2009, que o "meio ambiente é uma ameaça ao desenvolvimento sustentável". Marina da Silva, que não pôde continuar naquele governo, jamais teria dito tal enormidade (que bem representa, note-se, como se sustenta cientificamente o pensamento de Rousseff).
Talvez os seus idos, velhos, distantes dias de militante marxista estejam ligados ao fato de que hoje a presidenta reviva o discurso de seus antigos algozes, apenas enfiando um "sustentável" aqui e acolá para adornar o discurso.
Quem aponta esse problema é o geógrafo marxista David Harvey, ao escrever sobre ecossocialismo em Justice, Nature, and the Geography of Difference. Ele explicou que se provou ser difícil tirar do marxismo a "visão marcada pela húbris" da "tese da dominação da natureza": "O marxismo compartilhou, com boa parte da ciência burguesa, uma repugnância geral à ideia de que a 'natureza' pode controlar, determinar ou até limitar qualquer tipo de comportamento humano."(p. 193).
Um ponto de contato com o capital predador...
Voltando ao discurso em Porto Alegre: é claro que a plateia governista aplaudiu o absurdo científico proferido pela presidenta. Rousseff concluiu sua fala de maneira triunfal e afirmou: "Tenho certeza: um outro mundo é possível."
Pois eu tenho certeza de que, dependendo do Médici reloaded (Belo Monte é só um dos exemplos da ressurgência dos projetos desenvolvimentistas da ditadura militar) precisaríamos de outro mundo, eis que para o atual só restará a destruição.
Mas não o teremos.

8 comentários:

  1. Nélio Schneider - Porto Alegre28 de janeiro de 2012 às 12:10

    Ruim com a preocupação pelo sustentável, pior sem ela. A sinuca de bico de qualquer texto cientificamente coerente sobre o assunto é que ideias coerentes não mudam o curso do desenvolvimento predatório. Existe aí, por parte da presidenta, uma preocupação que precisa ser apoiada para frear o ritmo (acelerado) do crescimento predatório, ou seja, justamente a questão da sustentabilidade. A presidenta também está falando bastante de discutir "um outro MODELO de desenvolvimento". São tentativas em busca de coerência frente a uma realidade incoerente. Belo Monte não é só incoerência, é busca de solução. Belo Monte não é igual a Itaipu; dizer isso é perder o senso de observação científica e histórica, assim como comparar Médici com Dilma é perder o senso de cientificidade histórica. É muito cômodo e NADA científico pegar um ponto coicidente numa comparação (um tanto) esdrúxula. Considere: desenvolvimento vai (ter de) haver, quer você queira quer não. A discussão então gira em torno do tipo de desenvolvimento que queremos. E há gente propondo. Além do mais, você, que é científica, deve ter notado que o "acelerado" da presidenta tem uma conotação primordialmente SOCIAL. Convenhamos que há um patamar de dignidade a ser alcançado, antes do qual a maioria democrática não vai querer ouvir nem falar em sustentabilidade ou o que quer que seja. O que significa, no seu texto, a expressão "reduziu a um MERO crescimento econômico". Cientificamente (vide Marx) não há como justificar uma expressão dessas. Nada em economia é mero, pois tem a ver com tudo, incluindo a possibilidade de você estar dizendo o que está dizendo...

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    1. Desenvolvimento sustentável sem meio ambiente, algo de que a presidenta não gosta e cosndiera um fator impeditivo, é mero cescimento... Dividido na fórmula criada desde o governo Lula: bilhões para banqueiros e bolsa-família para os pobres.

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  2. vamos e convenhamos, ela também disse na COP que o meio ambiente atrapalha o desenvolvimento sustentável... Assim fica a pergunta: o que é que a Ministra do MMA está fazendo no governo da Dilma...

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    1. Creio que o papel é facilitar as licenças ambientais para as grandes empreiteiras e criar entraves para quem não possa comover financeiramente a máquina burocrática, como ocorreu com Nuno Ramos: http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/10/um-voo-negro-nuno-ramos-e-vida.html

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  3. Prezado Pádua: só uma sugestão: não tenho certeza de que Dilma tenha realmente lido e se inspirado em Marx, a não ser talvez, no Marx do Manifesto. Leninista ela era e é até hoje, colocando cotidiana em prática essa expressão da Novilíngua "centralismo democrático"! Marx tinha uma leitura muito menos "marxista" da Natureza do que os que não o leram com cuidado (conservadores ou progressistas) propragandeiam: Com a preponderância cada vez maior da população urbana, a produção capitalista, de um lado, concentra a força motriz da sociedade, e de outro, desequilibra o intercâmbio material entre o homem e a terra, isto é, a volta à terra dos elementos consumidos pelo ser humano, violando assim a eterna condição natural da fertilidade do solo. O progresso da agricultura capitalista se faz despojando não só o trabalhador, mas também o solo: a produção capitalista só se desenvolve exaurindo as fontes originais de toda riqueza: a terra e o trabalhador (Marx 1975: O Capital, Livro I – grifos nossos). E mais:
    O próprio espírito da produção capitalista, voltado para o lucro imediato, contrapõe-se à Agricultura, que precisa ser dirigida de acordo com o conjunto das condições vitais permanentes das gerações humanas que se sucedem. As florestas constituem disso contundente exemplo, pois só são de algum modo exploradas de acordo com o interesse geral quando não estão subordinadas à propriedade privada, mas à administração do Estado (Marx 1979 O Capital, Livro III – grifos nossos).
    Se interessar, passo o link para uma apresentação que fiz a alguns meses chamada "Floresta precisa de Código?", onde tem mais Marx "ecologista" e tb Gregory Bateson: http://www.overmundo.com.br/banco/floresta-precisa-de-codigo-1 Abraços eco-socio-fraterno
    Monica Lepri

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    1. Prezada Monica Lepri,
      muito obrigado pelas sugestões bibiliográficas. David Harvey também aposta na possibilidade de um ecossocialismo.
      É bem possível que eu esteja superestimando os conhecimentos da presidenta. Decerto nunca a vi nem li falar nada que demonstrasse ter estudado Marx. Ademais, como ela não terminou o doutorado, ao contrário do que estava na plataforma lattes, ficamos sem saber o que ela pensa (ou pensou) em termos mais acadêmicos...
      Dei-lhe, porém, o benefício da dúvida, porque alguns ex-companheiros da época em que ela era militante da esquerda clandestina elogiaram-lhe os conhecimentos.
      Abraços, Pádua.

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  4. Pádua,

    Dilma nem em sonho concebe o que seria "desenvolvimento sustentável" ou mesmo a insustentabilidade do desenvolvimentismo - a crítica à esquerda que, inclusive, precisa ser feita desse conceito e que Marina, infelizmente, não faz.

    Agora, eu discordo da relação Dilma/Médici. São desenvolvimentismos diferentes, basta ver como a concentração de renda cresceu nos anos 70 e como ela diminui - pode ser pouco, mas diminui.

    A gênese dos problemas de Dilma não estão na direita orgânica brasileira, mas sim no próprio pensamento da esquerda pré-petista, sobretudo do PDT de Brizola, no qual ela pertenceu enquanto ele ainda era um partido razoavelmente sério.

    Podemos regredir um pouco mais e falar no Positivismo, cuja herança ambígua se espraiou da direita brasileira até a esquerda "comunista", passando, é claro, pelo trabalhismo (ou varguismo social) de onde vem Dilma.

    Em outras palavras, eu creio que essas nuances tem pouco a ver com alguma atualização de Médici - ou mesmo de Getúlio -, elas repousam na gênese da política brasileira pós-República, coisa que nem a experiência inovadora do PT conseguiu pôr fim - ao unir novas tendências europeias e trazer novos atores para arena política brasileira - ou mesmo o PSDB com sua adesão à Terceira Via - basta ver que Serra, há tempos tende a uma releitura positivista da Terceira Via.

    O positivismo brasileiro, que une o pior do cientificismo europeu do século 19º - a ordem como máscara para os conflitos sociais e a teologia progressista radicalizada - com a tradição nacional que converte propositalmente discordância em ofensa, reivindicação com oportunismo para manter "cada um em seu lugar", está de volta em uma de suas variantes à esquerda. É isso que, ao meu ver, está em jogo e que precisa ser combatido. Tendemos a enxergar isso como direitismo ou endireitização, mas, infelizmente, esse processo também pertence à tradição da nossa esquerda, embora só pela esquerda se possa escapar dele.

    abraços

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  5. Obrigado, Hugo, pelos comentários.
    A questão da "distribuição", que Rousseff acentuou ao longo do discurso, é mesmo diferente. Mas a relação com a natureza, não, encontram-se nesse ponto Médici e Rouseff. E o próprio marxismo tem esse problema na relação com o meio ambiente. Espero que ninguém tenha achado que o paralelo seja mais amplo, e que eu esteja acusando a presidenta de mandar matar oposicionistas por aí.
    Também acho que não escrevi que Rousseff aprendeu esse desprezo ao meio ambiente com Médici. É simplesmente algo em comum que tem que ver com o cientificismo do século XIX, que chegou ao Brasil, como você lembra, com o positivismo.
    O PDT já é um momento tardio, creio. Eu pesquisei os documentos da VAR-Palmares, a que a presidenta pertenceu, e escrevi um texto longo sobre eles, ainda inéditos. Lá há outros pontos de contato entre os rebeldes e a ditadura, surpreendentes, mas que não vem ao caso, que é o do ambientalismo. Nesse âmbito específico, Rousseff é tão pouco de esquerda quanto Médici.
    E, desculpe ofender a quem pensa essas coisas de forma unívoca e monolítica, boa parte dos chamados políticos de esquerda são de direita nesses assuntos.
    Abraços, Pádua.

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