O grande crítico caracteriza com justeza a literatura comercial:
Minha ideia é que os únicos livros que vale a pena ler são aqueles que nos tornam estrangeiros. Estamos perante eles como uma pessoa está diante de uma língua que não domina. O trabalho que se tem que fazer, como leitor, é aprender a admirar aquela língua. [...] A pior coisa que pode acontecer na literatura, e que é um traço marcante da banalização, é o leitor sentir-se em casa. O que se chama literatura comercial é a que dá ao leitor uma apreciação do tipo “aqui não há nada de estranho, vais ter exatamente o que queres”.
Na minha experiência como professor, vejo o mesmo desafio: é muito difícil lecionar quando os alunos estão convictos de que já sabem (e toda a graduação tem para eles apenas o efeito declaratório, e não constitutivo do saber...), ou que só aceitam aprender aquilo que já sabem - posturas eticamente danosas para a educação. Esses alunos que só aceitam reconhecer-se em tudo que leem são os mais comuns, em minha experiência, e têm o horizonte do mundo barrado pelo próprio umbigo.
Não foi esse, porém, o trecho da entrevista que me havia convocado a escrever, mas esta interessante passagem:
[...] um problema que é o fantasma de toda teoria literária: ao contrário do que se passa com outras práticas letradas, ela não conseguiu, e provavelmente não conseguirá, livrar-se dos amadores e dos ignorantes. Uma pessoa que não estudou Direito até diz coisas sobre as leis, mas sabe que está a dizer asneiras. Quando tem um problema com a Justiça, contrata um advogado. Ora, não passa pela cabeça de ninguém contratar um crítico literário para ler com ele. Qualquer um, inclusive, acredita que suas ideias a respeito do que leu são mais inteligentes do que as de qualquer crítico.
Imagino que isso deva ser mesmo um grave problema para a área de Letras, em que não tenho formação alguma e sobre que, portanto, não posso opinar (muito menos escrever nesse campo). Porém, não posso deixar de notar que a comparação que o crítico faz é um tanto despropositada. Quando se chega aos tribunais, trata-se de um campo de aplicação do saber próprio das ciências sociais aplicadas, que vai além do exercício teórico. Não creio que haja um exato equivalente disso em Letras - pode-se ler um livro, bem ou mal, sem um crítico, mas não postular em juízo sem advogado (no Brasil, salvo poucas exceções, que a OAB, antidemocraticamente, quer retirar do cidadão brasileiro - vejam artigo de Luiz Otávio Ribas).
E, quando se fala da dimensão teórica, já que Abel Barros Baptista menciona a área que estudei, Direito, posso assegurar que ele está bastante errado. Autores que não tinham formação nessa área deram-lhe imensas contribuições - Kant é um caso. Não vou deixar de ler o que, por exemplo, Derrida e Habermas escreveram sobre direito somente porque não se tornaram advogados. Não tenho essa vocação para o obscurantismo.
Obscurantismo, por sinal, alegremente assumido por boa parte da academia. No caso do direito, um sinal disso são concursos para a disciplina ciência política, por exemplo, que exigem formação em direito, ou doutorado em direito.
É certo que outras áreas fazem o mesmo; os historiadores, em desprezo aberto ao Brasil, querem blindar-se por lei: já escrevi sobre a pretendida reserva de mercado no campo dos pareceres e projetos, a cláusula Escrava Isaura e a leviandade do Senado Federal no tratamento do projeto absurdo.
Voltando ao direito: decidir quem pode falar sobre ele é uma questão eminentemente política. Não há, ao contrário do que afirma Abel Barros Baptista, razão teórica ou epistemológica para barrar aqueles que não têm formação jurídica, que estudarão a norma jurídica a partir de seus prismas próprios. O direito tem muitas casas e habitantes variados.
De um lado, a história do direito brasileiro seria muito mais pobre, por exemplo, sem a historiadora Keila Grinberg e seus trabalhos sobre as ações de liberdade e o direito brasileiro do século XIX (destaco agora o notável O fiador dos brasileiros, publicado pela Civlização Brasileira, sobre Antonio Pereira Rebouças). Não por acaso, ela escreveu um livro de bolso, que é ótimo para usar com os alunos (eu o fiz em uma disciplina extinta) de direito, Código civil e cidadania, pela Zahar. É capaz de haver professores de direito civil que não tenham percebido a ligação entre direito civil e cidadania...
Por outro lado, às vezes vocações brilhantes no direito, que não pensam com antolhos, acabam indo para outra área fazer pesquisas que poderiam ter sido realizadas na academia jurídica, houvera a abertura para tanto. Lembro aqui de Alexandre Nodari, que é alguém que pensa nas fronteiras entre disciplinas, e que já tive a felicidade de publicar.
Não posso ser acusado de ser um realiano ou ter alguma simpatia teórica por Miguel Reale, mas até um jurista conservador como ele era é capaz de reconhecer isto:
[...] os juristas, enquanto juristas - consoante tenho exposto repetidas vezes - não se capacitam de que eles não detêm mais o monopólio da Teoria Geral do Direito. Esta disciplina, com efeito, a determinar, no plano empírico-positivo, os princípios ou leis gerais que nos permitem compreender a experiência jurídica, estudada, sob ângulos distintos, pelo jurista, pelo sociólogo, o historiador e etnólogo etc.
Cito um excerto do livro Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, de 1978.
Merecem mais do que o desprezo os juristas que estão aquém disso; merecem nossa atenção e cuidado em razão dos prejuízos à democracia que podem causar ao arrogar-se um monopólio indevido, e que é contrário até mesmo à própria experiência do direito, cuja produção e aplicação não é monopolizada por pessoas com carteira da OAB...
Negar isso não é apenas limitar a imaginação jurídica, que tem muito a ganhar com contribuições de outras áreas, mas também, politicamente, cercear a insurgência por meio de uma polícia do pensamento a cobrar determinados certificados acadêmicos no interesse imediato de reserva de mercado e no interesse mediato de manter tudo como está para sempre. Trata-se do serviço tradicional do bacharelismo, com todos os eclipses intelectuais e as lacunas democráticas que lhe são correspondentes.
Talvez, enfim, Abel Barros Baptista não esteja mesmo correto até sobre a área de Letras. Se os grandes livros nos tornam estrangeiros, por que estrangeiros (no tocante à academia de Letras) não poderiam sobre eles escrever? Neste passo, lembro do próprio crítico, com seu admirável De espécie complicada: Ensaios de Crítica Literária publicado pela Angelus Novus em 2010. O último ensaio, em trecho que trata da discussão entre Roberto Schwarz e Michael Wood sobre Machado de Assis, aponta a inconsistência da leitura nacional (aquela que, feita por estrangeiros ou não, entende Machado por via das regras que definem a nação) como restrição das possibilidades da literatura internacional:
Na medida em que se trata de impor uma barreira que deixa o estrangeiro à porta, porque incapaz de entender tudo aquilo que está em causa, há alguma eficácia argumentativa e até política: sempre se deu mais um passo para delimitar o "nosso" por oposição ao alheio, para barrar o acesso estrangeiro ao "nosso". Mas precariamente, porque a própria condição em que a defesa é armada e usada decorre já num cenário exterior ao nacional e em que o nacional enquanto valor próprio não tem sentido.
Talvez se possa dizer o mesmo no tocante às fronteiras teóricas.
Em tema correlato, vale considerar a situação do jornalismo: a obrigatoriedade do diploma caiu no STJ, mas já estão tentando reinstituí-la via Congresso. Sou contra. Não sou advogado nem teórico do direito, mas, na condição assumida de palpiteiro, me parece que esse tipo de reserva de mercado para jornalistas formados se choca com o princípio constitucional maior da liberdade de expressão.
ResponderExcluirJerônimo Teixeira
De fato, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em parecer de 1985, foi da mesma opinião que você.
ResponderExcluir