Foi carbonizada uma criança índia, Awá-Guajá, por madeireiros no Maranhão? O jornal Vias de fato afirmou-o e o Conselho Indigenista Missionário ratificou a informação, aduzindo que a FUNAI foi informada em novembro e se manteve inerte.
Inerte, até que a notícia se espalhou nos espaços virtuais. Em janeiro, a Fundação mexeu-se, afirmando que antes não havia recebido nenhuma denúncia. Pode-se ler aqui o impressionante Relatório da FUNAI do Maranhão. Foram verificar in loco a denúncia Hélio Sotero de Oliveira, chefe do SEMAT/CRI, Rosimar Ferreira de Sena Oliveira, indigenista, e o assistente técnico Cristóvão Marques da Silva.
No dia 7 de janeiro de 2012, os servidores partiram de madrugada para a cidade de Arame colher informações. Encontraram de manhã o índio citado na notícia, que afirmou tudo não passar de mentira. Então, surpreenderam um caminhão madeireiro que, além disso, transportava maconha. O motorista Neraldo Alves Machado, "não-índio", cujas atividades seriam autorizadas pelo índio Evanildo Guajajara.
O motorista reincidente na exploração de madeira foi "avisado [...] sobre a ilegalidade das suas ações e as conseqüências". A motosserra foi apreendida.
Em seguida, verificaram "intenso trânsito de caminhões madeireiros".
O breve relatório, assinado no dia oito de janeiro de 2012, termina com um pito contra a "mídia" pela repercussão da "suposta selvageria" contra o menino índio, constatando, porém, que o Estado tem descurado da questão do meio ambiente "sobretudo no que concerne à causa indígena". Os servidores elogiam a si mesmos: "houve um trabalho sério, meticuloso, cansativo, de se buscar a realidade dos fatos".
À primeira vista, é evidente que o relatório não foi exatamente bem escrito, é sumário e ressentido. Há mais, porém: ele viola o direito.
A lei federal 5371, de 1967, que instituiu a FUNAI (foi assinada por Costa e Silva; já o Estatuto do Índio, lei 6001, de 1973, é do governo Médici - fazem parte do entulho autoritário no ordenamento jurídico brasileiro), prevê esta singela competência:
Art. 1º Fica o Governo Federal autorizado a instituir uma fundação, com patrimônio próprio e personalidade jurídica de direito privado, nos termos da lei civil, denominada Fundação Nacional do Índio, com as seguintes finalidades:
[...]
VII - exercitar o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio.
O relatório mostra que esse poder não foi exercido regularmente nesse caso. O poder de polícia implica não apenas prevenir ataques aos índios, mas investigar se e como de fato ocorreram. O relatório, no caso, documenta a recusa do órgão a investigar o "suposto" homicidio.
Compete ao serviço de monitoramento ambiental e territorial da FUNAI, segundo o Decreto 7056, de 2009:
Art. 21. À Diretoria de Proteção Territorial compete:
[...]
IX - implantar medidas de vigilância, fiscalização e de prevenção de conflitos em terras indígenas e retirada dos invasores em conjunto com os órgãos competentes.
Trata-se do poder de polícia; a instrução sobre poder de polícia, baixada pelo presidente da Fundação segundo a competência do artigo 24, IX do decreto 7056. Veja-se:
Art. 2º No exercício do poder de polícia, caberá à Funai, por meio de sua sede ou de qualquer de suas unidades descentralizadas, proteger e promover os direitos dos índios, de suas comunidades e de seu patrimônio, especialmente:
[...]
III – zelar pela preservação dos recursos naturais existentes nas terras indígenas e pelo patrimônio indígena;
IV – impedir a exploração ilegal de recursos naturais existentes em terras indígenas;
Como a exploração ilegal prossegue intensa à vista dos servidores, é evidente que a FUNAI documenta sua desídia em realizar sua competência legal.
O relatório, apesar de sumário, não deixa de revelar que a "investigação" da "suposta selvageria" simplesmente não ocorreu. As singelas atividades e a conversa com aquele único índio, que nem mesmo pertence ao povo Awá-Guajá, não podem ser seriamente consideradas uma investigação. Por sinal, é óbvio, desde a primeira página até a última, que a Fundação partiu do pressuposto de que tudo se tratava de uma mentira movida por fins políticos.
Mas há outro problema: nessa desídia, ocorreu também violação do direito internacional aplicável à matéria.
Lembro que a primeira condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, o caso Ximenes Lopes, que teve origem no homicídio de paciente psiquiátrico na Casa de Repouso Guararapes, no Ceará, teve como um de seus fundamentos a falta de uma investigação séria, diligente e efetiva do que ocorreu com a vítima. Da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, foram feridos (além do direito à vida) os artigos 8o. e 25, no paragráfo primeiro de cada um deles, que preveem os direitos às garantias judiciais e ao processo judicial.
Com a FUNAI recusando-se a investigar, simplesmente não haverá corpo nem, oficialmente, crime algum. Nesses momentos, vemos a importância da esfera pública: sem o barulho gerado na internet, a denúncia teria sido tão ignorada quanto aquele corpo. Leio agora (notícia do dia 11), que a FUNAI resolveu prosseguir com as investigações.
O restante da nota soa a hipocrisia: "A Funai vem, desde 2007, por meio de operações em conjunto com o Ibama e com a Polícia Federal, combatendo os ilícitos ambientais nas terras indígenas." Pois bem: o Ministério Público Federal do Maranhão está judicialmente lutando contra a FUNAI, o IBAMA e a União "pedindo a retirada dos madeireiros da região e a instalação de bases de proteção da Funai na terra indígena."
O Ministério Público venceu a ação em primeiro grau, mas a FUNAI recorreu! Se ela lograr êxito, infelizmente terá que continuar o trabalho de controladora de trânsito de caminhões madeireiros.
A foto acima, tirei-a na esquina da Rua Maria Antônia com a Avenida Consolação, em São Paulo. Niara de Oliveira esclarece que o autor do painel é Eduardo Kobra, com artistas do seu estúdio.
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