O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 7 de abril de 2012

Antes das redes sociais, Pimenta entre Roma e Iraque

Alberto Pimenta lançou, no final do mês passado, livro novo, Al-Facebook, pela editora 7 Nós. Ainda não o tenho.
Escrevi, há mais de cinco anos, uma resenha para a Germina sobre dois livros de Pimenta, Alberto Pimenta, Iraque e Ovídio: vozes e silêncios da inquietação. Eram Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta e Imitação de Ovídio, de 2005 e 2006, respectivamente. Duas obras-primas.
Eu havia escrito outra, mais curta, para o K Jornal de Crítica, que aproveito para republicar aqui.
Faço-o por pura ansiedade, enquanto não leio o livro mais recente.



Contra o Império e os outros dispositivos sanitários: Alberto Pimenta e as políticas emancipatórias



No segundo semestre de 2005, um livro de poesia inteiramente voltado à invasão do Iraque pelos EUA – uma questão da esfera pública internacional. Na primeira metade de 2006, outro livro: um longo poema sobre o amor e o exílio, evocando Ovídio. O leitor se surpreenderá com as diferenças entre ambos, mas a diversidade e a feracidade são conhecidas marcas do escritor português Alberto Pimenta.
O primeiro, Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta (Lisboa: &etc) continua a temática geopolítica desse poeta, que já escreveu sobre a ONU, prisioneiros de guerra, o mercado financeiro mundializado... Desta vez, porém, o autor cria um alter ego iraquiano que reflete sobre “as botas” dos ianques que pisoteiam seu país.
Trata-se de uma poesia antiimperialista, tanto no conteúdo quanto na forma: Pimenta dá a voz ao outro também ao refletir e transformar a herança da poesia lírica árabe (penso especialmente nos divãs), e espelha a dualidade entre Oriente e Ocidente, o passado babilônico e o presente muçulmano, a paz e a guerra, como diz no último poema (ou última parte, se considerarmos o livro como uma só poesia):

Não sei
Se tornarei a ver
As caravanas
Que de madrugada
Atravessam o deserto
Em frente
Às ruínas de Palmira

Ou
As azenhas milenares
De Hama
A chiar de esforço
Quando elevam
A água do oponte
Até ao aqueduto
Que encima a cidade

Ou
A paisagem
Aos pés do monte Kasyun
Coberta de estrelas
Que caíram
E se fizeram
Pura luz esparsa:
A cidade de Damasco

[…]
Já ouvi dentro de mim
Um trovão
Fender-me a alma.

Para a unir de novo
Não sei o que terei de enfrentar.


Lançado na Mesquita de Lisboa, o livro foi boicotado por livrarias em Portugal, país que não enviou soldados, mas que teve poetas (como Vasco Graça Moura) que apoiaram abertamente a invasão do Iraque.
O segundo livro, Imitação de Ovídio (Lisboa: &etc), aparentemente habitaria em mundo diverso do Marthiya. Mas não: ambos marcam-se pelo engajamento em (e contra) um tempo hostil. Neste, o eu poético dirige-se a sua amada e está exilado de seu lugar, de seu tempo, e até mesmo das palavras. Na epígrafe escolhida, da oitava elegia do livro IV de Tristia de Ovídio, se lê que o destino foi propício no passado, mas agora traz infortúnios (Pimenta poderia ter escolhido, devido a sua posição marginal no sistema literário português, outro trecho dessa obra: ingenio sic fuga parta meo, isto é, o talento foi a causa de seu exílio).
A hostilidade do tempo atual reflete-se na capa, baseada em colagem do autor, Nela, se vêem dois corpos que naufragam entre rasuras e restos de texto de lingüística – a rasura chega a obscurecer o logotipo da editora.
Os tempos atuais naufragam, presos a “ideias que/ ao nascer/ já não são nascentes/ e / vão todas em direção ao poente” (p. 9). Entre elas, as de Heidegger, o “pobre demente” (p. 15 e 21). Os homens estão perdidos “carregando/ males/ e mails” (p. 22), enquanto a pobreza aumenta:

por exemplo e
a propósito,
há mais
miséria
que há vinte anos

e então
já havia
este dito:

mais miséria
que
há vinte anos [p. 44-45]


O que dizer a respeito, se “o homem/ não é o senhor da verdade/ e a religião/ está de volta” (p. 46), pelo que “não há/ mais nada/ que pensar” (p. 46). Entre hoje e amanhã, abre-se um espaço “que não é o da eternidade” (p. 24).
A obra, um poema dividido em quatro partes (I, II, III e a sua soma, VI), busca outras idéias, contra a decadência desse mundo que começa a apodrecer: “elas espatifam-se/ contra os ossos do crânio/ e trazem à boca/ sangue tirado ao coração:// não é assim, amor?” (p. 12). Como as “palavras/ são dispositivos/ apenas sanitários” (p. 52), o livro busca escrever com o corpo: “os lanhos, todos eles,/ abrem-se/ com a língua” (p. 34).
Todavia, Pimenta não se ilude com as políticas do corpo, cujo potencial emancipatório parece ter-se esgotado nas décadas de 1960 e 1970. O eu poético dirige-se à amada, com a ponta do dedo rodeia-lhe “a esfera” de saliva (p. 62), mas não sabe o que, a quem, e se ainda poderia dizer. O livro termina com a interrogação: “e tu?/ tu sabes?” (p. 63).
O desencanto, pois, marca esta obra (outro paralelo com Ovidio, além do amor e do exílio): “poesia/ propriamente dita/ não há meio de acontecer,/ é como matar um pássaro ontem/ com uma pedra/ atirada hoje” (p. 59), sem tirar-lhe, contudo, a inquietação. É preciso responder à pergunta: “poderemos ainda/ colaborar/ para que a morte/ não seja/ a melhor forma de libertação?” (p. 61).

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