O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Brasil e as velhas cotas para brancos

O Supremo Tribunal Federal, que já instituiu cotas raciais (desde 2001, com Marco Aurélio na presidência, o tribunal "implementou o sistema de cotas em serviços terceirizados para trabalhadores negros ingressarem no STF"), julga se elas são constitucionais em universidades públicas. Creio que não haverá surpresa no julgamento.
Aqui só gostaria de lembrar que o Brasil, embora isso não seja lembrado pelo DEM, partido político que se insurgiu contra essas políticas afirmativas, já teve cotas raciais, informais ou não, em favor dos brancos.
Uma lembrança óbvia é a política de imigração, que, desde o século XIX até pelo menos o ano de 1980, desejou "embranquecer" a população brasileira. Em uma nota sobre Machado de Assis, comento artigo de Ana Maria Gonçalves sobre o assunto.
O Decreto-lei n. 7967, de 27 de agosto de 1945, que privilegiava a "ascendência europeia", foi aprovado segundo os interesses dos grandes produtores agropecuários. Na ditadura militar, houve algo de correlato na política de colonização de terras na Amazônia por migrantes do sul do país.
Existiram também as cotas informais criadas pelo racismo. Um exemplo é o Itamaraty - não sei se a vedação de diplomatas negros (uma cota de zero por cento...) foi algum dia formalizada internamente naquela instituição. Hoje as coisas começam a mudar, e este discurso de formatura, proferido por Maria Eugênia Zabotto Pulino em abril de 2012, é impressionante (agradeço a Cybelle de Lima, que me chamou a atenção para o vídeo).
Essa novíssima turma de diplomatas, em vez de se chamar "Turma Barão do Rio Branco", preferiu escolher "Milena Oliveira de Medeiros", diplomata brasileira e negra, natural do Acre, que morreu por causa de malária contraída na Guiné Equatorial. A doença foi diagnosticada tardiamente - o que gerou protestos dos diplomatas pela alegada negligência do Ministério das Relações Exteriores.
A oradora argumentou que homenagear uma diplomata acriana seria uma forma de, indiretamente, celebrar Rio Branco, pois durante sua longa gestão no Ministério das Relações Exteriores o Brasil logrou tomar (adquirir, mais diplomaticamente falando) o Acre para si.
Quanto a mim, menos diplomaticamente, posso comentar que a escolha da homenageada corresponde a mais um passo significativo para enterrar aquela herança de Rio Branco - que é também uma herança significativa em termos de gênero.
Os exemplos de políticas de embranquecimento do Brasil são variados. Outro caso dessas políticas racistas de reforçar os grupos predominantes foi o do embranquecimento dos professores no Rio de Janeiro, ocorrido na primeira metade do século passado, estudado por Jerry Dávila,  professor da Universidade da Carolina do Norte, no livro Diploma de brancura: Política social e racial no Brasil, 1917-1945 (lançado pela Unesp), de que tomei conhecimento por meio de crônica de Elio Gaspari.
O autor recorda que colônias de imigrantes europeus, brancos, no sul do país também foram alvo da atenção governamental, para que se abrasileirassem. Essa preocupação, com Vargas, estava ligada à Guerra Mundial que se aproximava e as preparações militares dos alemães. No entanto, eles não eram vistos como inferiores, ao contrário dos negros:

No Rio, durante a era Vargas, a eugenia não estava relegada a conferências profissionais e remotos laboratórios, mas era um esforço coletivo, participativo.  [...] No sistema escolar, os eugenistas colocaram suas ideias em prática pela primeira vez, aprendendo e executando os programas para aperfeiçoar a raça. Suas pesquisas mostravam aquilo em que queriam acreditar: que alunos brancos, ricos, eram mais qualificados e isso podia ser mensurado. Nos casos em que um teste revelava o oposto, o pesquisador se esforçava para explicar por que os testes ou os pesquisados haviam-se desviado dos verdadeiros resultados, obtidos nas condições que se sabia serem verdadeiras. [p. 92]

A Constituição de 1934, não por acaso, previa que o Estado estimularia a educação eugênica:

Art 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas:
        [..]
        b) estimular a educação eugênica; 

É claro que essse tipo de educação equivale à negação da universalização do letramento e da educação - metas que ainda não foram atingidas no Brasil, embora as políticas públicas estejam hoje mais perto da universalização do analfabetismo funcional.
Argumentos de negação do racismo no Brasil, portanto, derivam de uma ignorância tão vasta sobre o país que não podem ser considerados honestos, intelectualmente falando. Em alguns casos, podem ser até vistos como uma campanha deliberada para manter as cotas de cem por cento, ou algo próximo disso, para brancos.
No início desta nota, me referi a artigo de Sales Augusto dos Santos sobre "Políticas públicas de promoção de igualdade racial" que trata do combate ao racismo institucional, que é uma forma de discriminação indireta que persiste no Brasil. Esse problema deve ser conjugado à memória de que o país já teve formas oficiais de discriminação direta em favor dos brancos, isto é, em prol dos dominantes. Contra esse tipo de discriminação, políticos como os do DEM jamais se levantaram.
Compensar aquelas políticas não é nada menos do que um dever de justiça do Estado brasileiro. Ou, segundo, Marcelo Träsel, uma pechincha: "Nenhum negro ou índio está pedindo para se deitar com a minha mulher, ou vender minha filha para angolanos, ou me aplicar algumas chibatadas."

3 comentários:

  1. Samuel Martins dos Santos27 de abril de 2012 às 09:14

    Pádua,

    Apenas para apresentar mais alguns exemplos, me lembro do Sylvio Romero, que no advento da Primeira República, propunha o embranquecimento da raça.

    Isso muito em função da fala de Louis de Couty, de que o Brasil não tem povo, de modo que o postulado republicano que todo poder emana do povo não seria bem sucedido em um grupo miscigenado.

    Particularmente em relação ao racialismo de Oliveira Vianna, citado pela Débora Duprat, cheguei em conclusão um pouco diversa em pesquisa que realizei sobre esses autores na UFSC, da qual tomo a liberdade de reproduzir a seguinte nota de rodapé:

    "Em relação à questão racial em Oliveira Vianna é possível apontar a influência das teorias raciais no primeiro volume de Populações Meridionais do Brasil (1920), no qual Oliveira Vianna manifesta o interesse de escrever um livro exclusivamente sobre a influência étnica na formação do país, como também na obra Evolução do Povo Brasileiro (1.ed., 1922), que destaca a importância dos dólicos louros na formação do empreendedorismo bandeirante. A obra específica sobre o tema é Raça e Assimilação (1932). Ocorre, todavia, que no desenvolvimento do seu pensamento o autor minorou a importância da questão étnica, conforme escreveu no prefacio da segunda edição de Evolução do Povo Brasileiro (1956, p. 7), disso deslocou a análise para o âmbito cultural, que verificaremos em sucinta exposição sobre a obra Instituições Políticas Brasileiras (VIANNA, 1955), motivo pelo qual não enfocaremos com vagar a influência das teorias raciais no pensamento de Francisco Oliveira Vianna." - Paradoxo da Primeira República no Brasil: entre ordem jurídica e a identidade nacional.


    forte ab.

    Samuel Martins.

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  2. Prezado Samuel Martins,
    obrigado; a Débora Duprat precisa ler isso - eu também, que escrevi apenas um pouco sobre o S. Romero e a exceção que ele abria aos mulatos, em quem o elemento branco poderia predominar...
    Abraços,

    Pádua

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  3. Parabéns, gostei muito da reflexão e do texto, chega de hipocrisia.

    Estamos aqui: www.facebook.com/afarsabrasil

    Com sua licença, postamos um link para seu artigo lá.

    Obrigado.

    Suez

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