O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 28 de abril de 2012

Poesia lésbica de político homofóbico, ou a arte sabe mais do que as instituições

Em uma nota sobre a deriva belomontesca de Jorge Mautner, lembrei como Anthony Garotinho, quando assumiu o governo do Estado do Rio de Janeiro, criou uma publicação da Secretaria de Cultura que, em seu primeiro número, publicou uma entrevista em que o governador divulgava sua persona de "poeta do amor".
De fato, Garotinho escreveu livros de versos, o que, em princípio, não destoaria da vocação beletrística de tantas autoridades brasileiras. Getúlio Vargas entrou na Academia Brasileira de Letras, José Sarney e  Marco Maciel estão lá etc. Em tantos desses casos, a literatura é tratada antes como fator de prestígio do que como objeto estético.
Talvez seja esse o caso de Garotinho, hoje deputado federal pois a lei da ficha limpa ainda não era eficaz na última eleição para o Congresso. Quero ressaltar, porém, como a obra poética do autor, embora de escasso mérito, se insurge contra as posições do político.
No portal do Centro Cultural Anthony Garotinho, instituição sediada em Campos, está disponível integralmente um dos livros de poesia do político, Diário do amor, dedicado à esposa e atual prefeita desse Município e, como ele, ex-governadora do Estado.
Todo o livro é composto de anotações de criança apaixonada, que, nos poucos momentos menos fracos, chega ao nível da imitação de poesia. Pareceu-me que se destaca o poema de número 13, que é ruim de forma estranha, interessante. Ele se inicia descrevendo uma chuva noturna; um dos amantes acorda com um raio e contempla a amada na cama.
Um virtuosismo sintático involuntário surge nos versos "Loucura de quem ama é assim:/ sente desejos imensos / intensos / impossíveis." Na aliteração com a vogal "i" anasalada, o autor reproduz a interjeição do leitor ao chegar nesse verso ("iiihhhh"), que, ainda por cima, já teria ficado resfriado com a leitura (daí a nasalidade) em razão de toda a chuva que cai durante o poema. Soa mal, parece loucura, mas tem seu método.

Neste trecho,
 

Você deitada
dormia o sono de uma fada,
tive o desejo
de lhe dar tantos beijos

a diferença/deferência da rima toante ocorre com o "i" a separar o beijo do desejo da consonância total (presente em "deitada" com "fada", uma rima perfeita). A vogal, novamente, ecoa a interjeição que o leitor terá feito desde o início da leitura do poema. 
Ao incorporar ao poema a própria reação crítica de quem o lê, o autor se orienta por qualidades dialógicas e inclusivas - certamente acidentais e, por isso, presentes nessa obra. Ela marca-se por um caráter político que se contrasta, como veremos, com a atuação do autor como político na cena pública institucionalizada.
Esse contraste é explicitado no estranho final, à primeira vista apenas banalíssimo:

mas num único beijo
você vai sentir mais desejo
do que a terra sente
depois de um dia quente,
recebendo da chuva
um beijo de verão.

Volta a rima toante dialógico-inclusiva de "beijo" e "desejo", contrastando novamente com uma rima perfeita, "sente" e "quente". A alternância de tipos diferentes de rimas não é uma exibição gratuita da limitada técnica versificatória garotinhiana, e sim uma decorrência formal da desmistificação do amor, que, embora pareça ter momentos de perfeição e harmonia, sempre está ligado à condição imperfeita das coisas humanas.  Não há novidade nisso.
O que há de inesperado? O eu lírico dirige-se a uma "amada", isso é anunciado explicitamente. No entanto, qual é o gênero desse eu? Um leitor ingênuo associaria a pessoa do poeta ao eu lírico e, portanto, incautamente pensaria que se trata de um homem cortejando uma mulher. Uma análise mais cuidadosa mostra que não se trata disso absolutamente. 
É a chuva quem beija a amada terra, e sabemos que, mitologicamente, a terra é associada ao gênero feminino. E as chuvas, as águas? O mesmo gênero: uma leitura arquetípica do poema deixa claro que se trata da relação amorosa entre arquétipos femininos, numa ousada representação poética de uma relação sexual entre duas mulheres. A fada-amada-terra é beijada pela amante-chuva. Isso explica o "mas não!" no tocante ao raio, estranha interrupção sintática no segundo verso, "Um clarão me acordou essa noite/ achei ser um raio, mas não! ", que, aparentemente, pareceria decorrer de um deficiente manejamento dos recursos da língua. Mas não: o raio, símbolo fálico, é repentina e firmemente renegado na intensa relação lésbica descrita por Garotinho.
Dessa forma, podemos contrastar o caráter reacionário e hostil aos direitos humanos do político Garotinho, que vocifera contra programas de combate à homofobia (chamados arbitrariamente de "kit gay"), à elogiosa abertura de gênero presente na poesia do autor. 
No exercício da poesia, embora de baixíssima qualidade, ele se mostra de muito melhor nível do que na condição de político, ao rascunhar versos em que o amor entre mulheres é um impulso natural, e não um vil pecado. Uma atração calorosa entre elementos da natureza.
Lemos, portanto, a poesia lésbica de um político homofóbico, fenômeno invulgar que mostra como as forças inconscientes que movem a literatura podem-se mostrar mais sábias do que a atuação pública cuidadosamente planejada de um político profissional.

4 comentários:

  1. Ironia ao quadrado. Ironia dentro da ironia. Ironia sobre o texto, ironia embutida na interpretação que leva à aparente contradição entre postura poética e postura política do poeta-Menininho: por trás das gargalhadas, uma reflexão sobre assunto grave. Ironia da melhor qualidade.

    "Mas não: o raio, símbolo fálico, é repentina e firmemente renegado na intensa relação lésbica descrita por Garotinho." (meu trecho predileto)
    Delícia de se ler.
    Beijo e obrigada!

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  2. Muito obrigado, Renata. Sou a favor da ironia na poesia ou, quando for o caso, na ironia contra a falta de poesia.

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  3. Uauuu, amei!!! Será que um dia as pessoas que se engajam para produzir a favor do mundinho politiqueiro e "burocratiqueiro" vão voltar-se para nossas verdadeiras percepções de mundo?

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