O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Desarquivando o Brasil XXXV: Emicida, racismo e polícia

"Tevê cancerígena aplaude prédio em cemitério indígena./ Auschwitz ou gueto? Índio ou preto? / Mesmo jeito, extermínio [..]", versos de Emicida em Dedo na ferida.O rapper foi preso neste treze de maio por desacato, leio no twitter, por causa dessa música, em Belo Horizonte.  Ele participava do festival Palco Hip Hop, na mesma região, Barreiro, onde a Ocupação Eliana Silva havia sido removida pela polícia.

Ocupações como a de Pinheirinho são lembradas por Emicida na letra.


Ele foi liberado no mesmo dia, mais tarde. A economista Renata Lins sintetizou o caso nesta mensagem que o empresário do artista retuitou, como se vê abaixo, depois de ser retransmitida por Eduardo Sterzi: "13 de maio de 2012. Um negro é preso em BH por cantar uma música".



A Folha de S.Paulo hesitou em relação ao título da matéria,  e acabou decidindo dizer que o rapper foi obsceno. Deve-se lembrar que Rita Lee, em sua última apresentação ao vivo, em Aracaju, também foi detida por desacato à Polícia Militar. O caso ocorreu em 28 de janeiro deste ano, 2012. O vídeo parece-me mostrar que a compositora e cantora estava correta. Ela exclamou: "Eu sou do tempo da ditadura. Vocês pensam que eu tenho medo? Porra!"
No blogue de Emicida, lemos que a Polícia Militar apresentou uma versão dos acontecimentos bem contrastante com o que foi gravado no espetáculo - o boletim de ocorrência refere-se a frase que o rapper não teria declarado - o que talvez se explique por meio das sérias deficiências policiais no Brasil, presentes também no campo da compreensão mínima do que é o fenômeno artístico.
O jurista e professor Gabriel Divan, que conhece muitíssimo mais direito penal e hip hop do que eu, explica o que até eu consigo perceber, que não ocorreu o crime de desacato. Ademais, como ele escreveu, a questão é muito mais profunda: "A questão é MENOS o ‘enquadramento’ jurídico dos funkeiros e MAIS o questionamento sobre a real necessidade (e a real legitimidade democrática) de seguir sendo aplicado um tipo penal que criminaliza algo assim."
O problema é político e reduzi-lo à mera tipificação é leviano, como Gabriel Divan bem explica aludindo ao "imenso grupo de juristas que rapidamente aguardam as discussões exclusivamente penais do caso como quem espera a garçonete trazer o primeiro e gelado chope da tarde".
O problema é político e diz respeito a uma cultura autoritária. A letra de Emicida, em uma menção explícita à ditadura militar, faz ouvir "Ainda vivemos como nossos pais, Elis. / Quanto vale uma vida humana, me diz". Foi bonito ver que Maria Rita, a cantora que é também filha de Elis, logo se solidarizou com o rapper.
Como nossos pais é uma canção de Belchior que Elis Regina interpretou no espetáculo e disco Falso Brilhante, e acho que é uma das grandes manifestações de incoformismo na música brasileira dos anos 1970, tão mais forte pelo desencanto que ela carrega: "Ainda somos os mesmos e vivemos/ como nossos pais". A indignação da cantora em "É você que ama o passado e que não vê/ que o novo sempre vem" supera a interpretação do próprio compositor.
Nada na história permanece sem mudar: "plus ça change..." Ver as continuidades na história implica identificar o que se altera, como o racismo hoje e na ditadura militar.
O caso de Robson Silveira da Luz, homem negro morto pela tortura policial em maio de 1978, foi denunciado no ato público de criação da seccional de São Paulo da Comissão Brasileira de Anistia (CBA-SP), que ocorreu na Câmara dos Vereadores em 12 de maio de 1978 - quase no dia da Abolição.
Acusado de roubar frutas, ele foi preso, torturado e morto no distrito de Guaianazes. O delegado Alberto Abdalla acabou sendo condenado (note-se que a notícia erra a data do assassinato) pela morte, porém jamais foi preso.
O DOPS de São Paulo gravou as falas do acontecimento e as transcreveu.  Um pouco depois, o Movimento Negro Unificado (MNU) se constituiria, em 18 de junho de 1978 e, em 7 de julho do mesmo ano, realizou ato em frente ao Teatro Municipal de São Paulo em protesto por aquele assassinato, do de Newton Lourenço, operário assassinado pela política na Lapa, bem como pelo preconceito sofrido por meninos negros no Clube de Regatas Tietê.
O assassinato foi um dos estopins para essa intensificação dos movimentos. Leio em "Ações educativas do movimento social negro no Brasil", de Otto Vinicius Agra Figueiredo, que na Bahia "um grupo de professores militantes do MNU em suas discussões acerca da baixa auto-estima do negro fundou em 1981 o Grupo de Educação Robson Silveira da Luz do MNU."
Por que também os movimentos negros eram vigiados pela política política? Cito o livro Lélia Gonzalez (São Paulo: Selo Negro, 2010) de Alex Ratts e Flavia Rios:

Em tempos de ditadura, qualquer denúncia de racismo era recebida como tentativa de criar sentimentos antinacionais. Falar de racismo significava dar vida àquilo que "não existia" na sociedade brasileira. [...] Para os generais que comandavam a nação, nada disso fazia parte da nossa realidade. [p. 87]

A lógica da negação do racismo serve obviamente para mantê-lo: não se combaterá o que se julga não existir. Essa lógica, completamente compreensível (mas nunca justificável) em um Estado ditatorial, que é incompatível com a autonomia popular, é repetida, hoje, na democracia brasileira, por setores comprometidos com esse tipo de opressão.
Vejam um curioso caso no recentíssimo (de 17 de maio de 2012) programa da Al Jazeera em inglês sobre cotas raciais no Brasil, em que Demétrio Magnoli apanhou de Idelber Avelar e Athayde Motta (diretor do Fundo Baobá), por meio destas ligações: http://stream.aljazeera.com/story/brazils-racial-quotas-0022211 ou http://www.youtube.com/watch?v=js26QHH5hNM
A postura de Magnoli obriga-o a criar um mundo paralelo e a negar esta outra dimensão terrestre, mais mundana e banal, em que vivo. Ou, talvez, o fato de ser um homem branco de sua classe social faz com que viva, de fato, em um mundo apartado, o que corrobora a impressão de que Magnoli está completamente errado, e que o racismo segrega. Algo disso me evoca Sérgio Buarque de Holanda, ao tratar, em Raízes do Brasil, do secreto horror à realidade nacional.
A partir dos 32 minutos do vídeo, Magnoli afirma que os movimentos negros são tão poderosos no Brasil que fizeram o STF violar a Constituição... Idelber Avelar logo replica com o voto do Ministro Lewandovski: trata-se, em vez disso, de cumprimento da Constituição. Antes, a partir dos 20 minutos, ele desfez o erro magnoliano de que o direito brasileiro não era racista. A partir dos 6 minutos, o geógrafo havia explicado que nem a sociedade brasileira nem o seu direito dividiram a sociedade em raças...
Athayde Motta, como Avelar, trouxe de volta a realidade brasileira, e desmontou a falácia de que mestiços não seriam discriminados (especialmente a partir dos 15 minutos); a partir dos 27 minutos, voltou a insistir que as raças são categorias sociais, desfazendo (como também Idelber Avelar) a falácia biologizante de que, se não há biologicamente raças, logo não haveria socialmente racismo... E ele, como homem negro, lembrou que, embora estudante de doutorado, sofria discriminação.
Intelectualmente, uma postura como essa às vezes só consegue ser mantida a custo de inconsistências generalizadas e citações inventadas, como bem mostrou Ana Maria Gonçalves em um texto antológico.

Vejamos, porém, as transcrições do DOPS. Foi lida (o relatório não diz por quem), no ato de criação da CBA-SP,  uma carta aberta escrita pela família de Robson Silveira da Luz.
O documento, que pode ser visto ao lado, foi consultado no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Eis a transcrição policial, com seus enganos:

[...] as circunstancias que levaram a morte de Robson não estão isoladas de todas as outras formas de abuso do poder, e repressão que paira sobre todos nós, se existe o esquadrão da morte, se existe Abdalas agindo por conta propria, é porque isso até certo ponto é permitido, sentimos na propria carne a necessidade de que sejam respeitadas as minimas garantias individuais como no caso o direito a vida, pois não achamos correto que a troco de bananas, ou por falta de arroz, feijão, carne ou qualquer alimento alguem venha a perder a vida em qualquer dependencia publica, pedimos a solidariedade de todos aqueles que não aceitam o abuso do poder, a repressão a falta de garantias individuais, a discriminação racial no sentido de que a justiça que nos ultimos anos tem andado de muleta, nesse pais, seja feita afim de que se possa acabar com o arbitrio ainda hoje existente. S.Paulo maio de 1978- 90 anos de Abolição, a familia de Robson Silveira da Luz.
Não por mera coincidência, a prisão de Emicida e sua música também são objeto da reportagem da Al Jazeera. Eles atestam a permanência do racismo e da violência policial, que eram um problema em 1978 também para o movimento de anistia.
A curiosa imagem que a família usou na carta, a justiça com muletas, se não pode mais ser usada em relação ao Supremo Tribunal Federal no tema das cotas, permanece em relação à anistia e à justiça de transição.




2 comentários:

  1. de começo: o blog é realmente muito bom. quanto ao tema: não acho que Magnoli viva em mundo a parte e alheie-se, quando defende a inexistência das raças, que ele bem sabe não haver. Magnoli tem é muito medo, de as afirmações dos negros resultarem em que eles tenham mais poder, por se reconhecer como tal e usufruírem disso compensatoriamente. O mesmo medo infantil de Maggie, que se reporta à sua visita de adolescente aos EUA para defender que aquela separação ali vista nunca deveria ser permitida no Brasil. Separação, no entanto, claríssima, pois nos lugares onde frequento, por ser da classe média, não há negros. Os lugares que Maggie frequenta também não deve tê-los. Mas ou ela e Magnoli não percebem, ou preferem assim. Desde que não se fale sobre isso. No máximo, se realmente a coisa passar pelo inconsciente, uma pequena e conveniente negação freudiana. Nada que um dedo na ferida não resolva. AdrianadeOliv49

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  2. Prezada Adriana,

    obrigado. Não ouso, por desconhecimento da matéria, me pronunciar sobre a psique de Magnoli. A hipótese do medo, contudo, me parece muito atraente, e é provável que desempenhe um papel importante na cultura racista de uma elite que certamente não ignora de todo que, apenas por seus próprios méritos, não poderia monopolizar as posições que ocupa.
    Um dedo seria suficiente? Acho que não: trata-se de obra para muitas mãos.
    Abraços,

    Pádua

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