O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Campanha de defesa do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Cumpriu-se mais um capítulo do que escrevi em nota recente, "Terra sem lei VI e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos" (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/terra-sem-lei-vi-e-o-sistema.html), isto é, da campanha de governos de esquerda da América Latina contra o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Para que não restasse dúvida sobre a posição do governo venezuelano, ele realizou a denúncia da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o Pacto de São José da Costa Rica) em dez de setembro de 2012, conforme este comunicado à imprensa do Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos, José Miguel Insulza, que lamentou o nefasto acontecimento:

El Secretario General de la OEA lamenta la decisión adoptada por el gobierno de la República Bolivariana de Venezuela, de denunciar este instrumento jurídico, uno de los pilares de la normativa legal que ampara la defensa de los derechos humanos en el continente.
El Secretario General manifestó su esperanza de que en el año que debe transcurrir para que dicha decisión se haga efectiva, como lo establece el Art.78, el gobierno de la República Bolivariana de Venezuela pueda reconsiderar su decision.
Denúncia, neste caso, não significa a comunicação de um crime (mesmo que se considere, não em sentido técnico, criminosa a atitude do governo Chávez). No direito internacional, trata-se do ato pelo qual uma parte deixa um tratado internacional.
Aqui, pode-se ler a nota da própria Comissão Interamericana, explicando as consequências jurídicas da denúncia do tratado: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2012/117.asp  A competência da Comissão em relação à Venezuela continua, mas não a da Corte. O grave problema para o país que disso decorre é o fato de a independência do Judiciário daquele país estar comprometida, situação que a Comissão tem denunciado. Um dos problemas é a existência de juízes sem estabilidade, que podem ser removidos ou suspensos livremente, tornando o Judiciário singularmente sujeito a pressões:

128. En su Informe sobre Venezuela de 2003 la Comisión estableció que los jueces provisionales son aquellos que no gozan de la garantía de estabilidad en el cargo y pueden ser removidos o suspendidos libremente, lo que podría suponer un condicionamiento a la actuación de estos jueces, en el sentido de que no pueden sentirse jurídicamente protegidos frente a indebidas interferencias o presiones provenientes del interior o desde fuera del sistema judicial. La Comisión señaló que un alto porcentaje de jueces provisionales afectaba seriamente el derecho de la ciudadanía a una adecuada administración de justicia y el derecho del magistrado a la estabilidad en el cargo como garantía de independencia y autonomía en la judicatura. [Informe 171, de 3 de novembro de 2011, do Caso Allan R. Brewer Carías. http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/12.724FondoEsp.pdf]
No momento dessa informe, 44% dos juízes eram "provisionales", ainda não eram titulares. No caso citado, o juiz Manuel Bognanno foi suspenso depois de ter ordenado (sua decisão foi descumprida, por sinal) que o réu, o advogado constitucionalista Brewer Carías, tivesse acesso aos autos do processo... Dessa forma, a Venezuela reedita Kafka e coleciona condenações em virtude do desrespeito às garantias judiciais, nos casos Apitz Barbera e outros (“Corte Primera de lo Contencioso Administrativo”, de 2008), Reverón Trujillo (2009), Chocrón Chocrón (2011). O governo autoritário que submeteu seu próprio Judiciário quer rumar, portanto, para um caminho de tranquila impunidade internacional.
O Estado brasileiro também está participando da sabotagem ao Sistema Interamericano, como escrevi naquela nota, o que se reflete nas ações tomadas em represália à cautelar no caso de Belo Monte (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/02/o-impacto-do-brasil-contra-o-sistema.html) e no descumprimento da condenação no caso Araguaia (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/cumpra-se-ato-pelo-cumprimento-da.html).
No entanto, ocorre também a reação contra essas tentativas oficiais. O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) lançou campanha pela defesa do Sistema Interamericano no dia 11 de setembro, em Bogotá:
http://cejil.org/comunicados/es-hora-de-defender-el-sistema-interamericano-de-derechos-humanos

É interessante verificar que ela já foi assinada por ex-presidentes (http://cejil.org/sites/default/files/2012_09_11ComunicadoDeclaracionBogotaFinal-1.pdf). Nenhum deles é brasileiro, como era de se esperar. No tocante a Collor e Sarney, suas difíceis relações com os direitos humanos não lhes permitiram pensar nessa hipótese. Lula contrariaria Dilma em matérias (Belo Monte e Araguaia) em que ela continua o legado de seu predecessor? Talvez Fernando Henrique Cardoso o faria, por estar na oposição e ter feito o reconhecimento da da jurisdição da Corte em 1998? Provavelmente não: lembro que ele se manteve fiel ao ditador japonês do Peru, Fujimori, apesar das condenações que este sofreu na Corte, desprestigiando-a.
Fujimori, por sinal, em 1999 deixou de reconhecer a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Chávez, em 2012, realizou algo pior.
Quanto ao ditador eleito do Peru, o internacionalista brasileiro Cançado Trindade, então naquela Corte e, hoje, na Corte Internacional de Justiça, lembrou, em entrevista dada a Jayme Benvenuto, como foi crítico o momento:


O maior desafio que enfretamos até hoje foi o relativo à rebeldia do Governo Fujimori, a partir do caso Castillo Petruzzi (maio de 1999). Por razões de ordem política interna, o ex-Presidente Fujimori pretendeu "retirar" o instrumento de aceitação da jurisdição obrigatória da Corte com "efeitos imediatos". Quando assumi a Presidência da Corte aos 16 de setembro de 1999, herdei este problema. Nossa reação foi firme. No dia 24 de setembro de 1999 (o dia mais dramático de toda a história do Tribunal), emitimos nossas duas Sentenças sobre competência, nos casos do Tribunal Constitucional e de Ivcher Bronstein, declarando inadmissível a pretendida "retirada" do Estado peruano da competência contenciosa da Corte, com "efeitos imediatos".
A Corte deixou claro que sua competência não poderia estar condicionada por atos distintos de suas próprias atuações, e que, no presente domínio de proteção, as considerações superiores de ordre public internacional, somadas à especificidade dos tratados de direitos humanos, e ao caráter esencialmente objetivo das obrigações que consagram, certamente primam sobre restrições indevidamente interpostas e adicionais às manifestações originais do consentimento estatal, e sobre a concepção tradicional voluntarista do ordenamento jurídico internacional. [Direitos Humanos: debates contemporâneos, 2009, p. 110, disponível em http://www.unicap.br/catedradomhelder/pdf/ebookDebatesContemporaneos.pdf]

Pouco depois, cada vez mais isolado (apesar do apoio dado pelo Brasil), o ditador cairia. Ressalto que, enquanto ainda se discutia se o regime fujimoriano era democrático ou não, foram a Comissão e a Corte Interamericanas que desnudaram, com suas decisões, o caráter autoritário do regime, em razão das contínuas e programadas violações dos direitos humanos. Dessa forma, continuo a lamentar (faço-o desde 2001: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/06/o-golpe-no-paraguai-e-carta-democratica.html) que a Carta Democrática Interamericana permaneça sem conexão com aqueles órgãos, que ainda são, na OEA, os que mais eficazmente atuam na defesa da democracia.

Para defendê-los, lembro que a Declaração de Bogotá, que pode ser lida nesta ligação (http://cejil.org/sites/default/files/2012%2009%2011%20DECLARACI%C3%93N%20DE%20BOGOTA-1.pdf), continua aberta a assinaturas. Para assiná-la, deve-se enviar nome, profissão ou cargo para difusion@cejil.org com o assunto "Declaración de Bogotá".


P.S.:  Em uma conversa (pelo twitter) com um governista que se apresentou como pós-graduando em geografia, recebi o argumento de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (que não seria nada mais do que um instrumento do imperialismo dos EUA, e por isso teria decidido contra o Estado brasileiro em certos casos), foi uma das forças que estava por trás do golpe militar de 1964.
Confrontado com a evidência de a Corte somente foi criada em 1979, simplesmente replicou que os EUA eram capazes de coisas de que nem suspeitaríamos!
Da mesma forma, o oficialismo é responsável por atentados à inteligência insuspeitados.

P.S.2: Em momento talvez de hipocrisia ou, quem sabe, de desespero, aventa-se que os réus do chamado mensalão recorreriam à OEA para defender-se de condenações no Supremo Tribunal Federal: http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/79676/Lula-estuda-ir-%C3%A0-OEA-para-defender-os-r%C3%A9us-Lula-estuda-ir-OEA-para-defender-r%C3%A9us.htm
Considerando os atentados que o atual governo federal, do PT, vem realizando contra o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, é curioso que políticos do partido no poder queiram agarrar-se a recursos que esse mesmo partido tenta demolir.

2 comentários:

  1. Não entendi sobre o parágrafo quanto à Venezuela (comentário seu, em réplica, na postagem anterior a essa).

    O fato que li em jornal veiculado numa TV de elevador foi que Chávez é denunciado por ex-Juiz por interferir pessoalmente em condenações (não sei se penais ou cíveis).

    Bem, se no país 'bolivariano' os juízes não têm a garantia da inamovibilidade e outras que fazem parte do nosso sistema constitucional, o que dizer de um simples pedido de condenação do chefe do Executivo Federal dirigido a um Juiz, não?

    Talvez seja isso o que não vem sendo entendido pelos críticos do julgamento do mensalão: a independência do Judiciário não é um mero detalhe na democracia (ou na falta dela)...

    abr, Adriana

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    1. Obrigado pelo comentário. Era isso o que eu queria comentar: como os magistrados estão muito vulneráveis a esse tipo de pressão na Venezuela, a própria democracia é atingida...
      Quanto aos delírios governistas no Brasil, derivam obviamente de pessoas que não têm compromisso com a democracia.
      Abraços, Pádua

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