O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 16 de setembro de 2012

Kátia Abreu, os Toynbees e a esterilidade da inteligência agrícola

A senadora Kátia Abreu, sólida aliada do governo federal, publicou em 15 de setembro de 2012, na Folha de S.Paulo, interessantíssimo artigo com o significativo título "Arcaico e moderno" - quase o binômio da modernização conservadora da qual a latifundiária e presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) é um dos próceres.
O artigo reivindica para a autora e a agricultura brasileira (na verdade, o agronegócio) a modernidade, a preservação ambiental, e o aumento da produtividade por meio da tecnologia. O "moderno deve assimilar o arcaico e torná-lo disfuncional e necessário." O moderno chama-se a tecnologia que, permitindo os ganhos de produtividade, levará à baixa de preços nos alimentos, alegadamente fazendo com que as famílias, rurais e urbanas, vivam melhor no Brasil.
A história idílica contada pela nobre representante do Estado de Tocantins poderia ser desmentida com as notícias e pesquisas sobre violência no campo, fortemente ligada à expansão da fronteira agrícola; com os efeitos perversos dessa tecnologia para o meio-ambiente e para a saúde; com o alargamento do agrobanditismo e suas vítimas na população rural e nas comunidades indígenas etc. Mas não tratarei disso, e sim das referências intelectuais da escritora e latinfundiária.
A colunista da Folha termina o texto, após estranha citação que comentarei, afirmando que a "inteligência agrícola brasileira" é bem sucedida, "respeitando a parte intocável do nosso território e mantendo fértil a parte que cultiva". Isso seria "muito mais do que qualquer grande visionário de um mundo justo possa aceitar ou compreender."
Não sou visionário nem grande, mas também não consigo compreender a estranha frase. Entendo que este grande nome do PSD esteja a dizer que todos os esforços da bancada ruralista para anistiar crimes ambientais e ampliar as possibilidades de desmatamento foram e são, na verdade, para nada, eis que o agronegócio estaria só estaria a cultivar a área já cultivada, respeitando a "parte intocável" do país. Desmatamento zero no Brasil!
Como seria impensável que a nobre presidenta da CNA estivesse a mentir publicamente, o que se pode fazer é admirar tais ousadas visões do futuro. Ela, sim, é uma grande visionária: poucos ousam pedir o desmatamento zero no país, e ninguém chega a ver que ele já estaria ocorrendo, em uma espécie de harmonia emudecedora do canto do uirapuru com os sons da serra elétrica.
Visões à parte, é estranho que a senhora Abreu contraponha a "inteligência agrícola" (estranho conceito: será que sojas transgênicas já têm cérebro?) a um "mundo justo". A justiça seria incompatível com a inteligência (audaz afirmativa que desafiaria milênios do pensamento humano), ou, mais modestamente, com a inteligência da senadora? Escapa-me a resposta.
Imagino que frankfurtianos logo dirão que o contínuo louvor à modernidade tecnológica feito pela colunista e senadora não é nada mais do que um exemplo do uso da razão instrumental contra a razão crítica. De fato, nunca vi este nome do PSD tentar usar Adorno ou Horkheimer em favor de suas teses desenvolvimentistas.Seria demasiado incoerente.
No entanto, vi, com grande espanto, que a nobre senadora, pouco antes do triunfo da inteligência agrícola sobre as visões de um mundo justo, invocou em seu favor o nome de Arnold Toynbee (o economista e tio do historiador Arnold J. Toynbee). Pareceu-me, porém, que ela não o conhece muito profundamente. Eu tampouco, mas sei que Toynbee estava preocupado com as condições do trabalhador na Inglaterra, o que incluía a situação do campo.
Em suas Preleções sobre a Revolução Industrial do século XVIII na Inglaterra (Lectures on the Industrial Revolution of the 18th Century in England, parcialmente disponíveis nesta ligação: http://socserv2.socsci.mcmaster.ca/econ/ugcm/3ll3/toynbee/indrev), a preocupação com a justiça distributiva é central. Toynbee explica como os cercamentos no campo, a concentração de terras e a introdução de novas tecnologias levaram a uma "grande revolução social, uma mudança na balança de poder e na posição relativa das classes." Os fazendeiros aumentaram seu poder, e o contrário ocorreu com os trabalhadores.

Meanwhile, the effect of all these agrarian changes upon the
condition of the labourer was an exactly opposite and most
disastrous one. He felt all the burden of high prices, while his
wages were steadily falling, and he had lost his common-rights.
It is from this period, viz., the beginning of the present
century, that the alienation between farmer and labourer may be
dated.

Os efeitos dessa desigualdade social para os trabalhadores rurais e urbanos levam o autor a escrever, mais adiante, que "Os  efeitos da Revolução Industrial provam que a livre competição pode produzir riqueza sem gerar bem-estar." Em vez da confiança cega nos ganhos da produtividade e no progresso tecnológico, Toynbee analisa os problemas de concentração de renda e defende, entre outras medidas, a intervenção do Estado para a disponibilidade de moradia abaixo dos preços do mercado para os pobres.
Ademais, o que a nobre senadora escreve sobre Toynbee (a relação entre o "espírito do homem e o seu meio ambiente") parece dizer respeito não a ele, mas ao sobrinho, Arnold Joseph Toynbee, com sua teoria das civilizações. É verdade que pessoas menos ilustradas, por jamais terem lido nenhum dos dois, confundem-nos, embora o tio pertença ao século XIX e o sobrinho, ao XX (o primeiro morreu em 1883, o segundo em 1975).
Como a presidenta da CNA, colunista da Folha, nobre senadora pelo Tocantins, e um dos maiores nomes do partido criado por Gilberto Kassab, o PSD, jamais cometeria um erro tamanho, e é tão culta quanto suas terras são cultivadas, julgo que se enganou apenas na escolha de um fundamento teórico muito pouco adequado às políticas que adota, fundamento, aliás, que foi tão mal comprendido que o pensamento do economista acabou se parecendo com o do sobrinho... A genética seria tão determinante para as ideias quanto para a agricultura?
É claro que, se o erro tivesse realmente sido cometido pela miss (cuja celebrada modéstia a fez recusar o título ofertado pelo Greenpeace), ela teria que reconhecer que o sobrinho tampouco serviria para fundamentar os elevados propósitos da latifundiária. O livro póstumo de Arnold J. Toynbee, Humanidade e a Mãe Terra (Mankind and Mother Earth), termina com este apelo:

A humanidade irá assassinar ou resgatar a Mãe Terra?  Poderá assassiná-la ao usar mal sua crescente força industrial. Como alternativa, poderá resgatá-la superando a cobiça agressiva, suicida que, em todas as criaturas vivas, incluindo o homem, tem sido o preço do dom da vida, ofertado pela Grande Mãe.

Aqui: http://www.thefederalist.eu/index.php?option=com_content&view=article&id=78&lang=en  O erro seria tão curioso quanto a tentativa frustrada do uso de poeta marxista por certo empresário e político do DEM: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/05/marxismo-para-administradores-ou.html

8 comentários:

  1. Me chamou atenção o seguinte trecho: "O historiador e economista inglês Arnold Toynbee afirma que 'existem dois fatores constantes na vida social: o espírito do homem e o seu meio ambiente. A vida social é a relação entre eles, e a vida somente se ergue ao cume da civilização quando o espírito do homem é o parceiro dominante da relação -quando, em vez de ser moldado pelo meio ambiente, ou simplesmente preservar-se em tensão com o meio numa espécie de equilíbrio, ele molda o meio ambiente de acordo com seu propósito ou 'expressa' a si mesmo 'imprimindo-se' sobre o mundo".".

    Bem invocar o pensamento de um economista que acredita que o homem deva ser o 'parceiro dominante' na sua relação com a natureza -- pensamento, aliás, do qual poucos economistas escapam -- está inteiramente de acordo com as ideias e ideais de Miss Abreu. Dominação, assimilação (noutro trecho) e civilização (decerto aquela que 'domina' a natureza) são as ideias-epítome desse pensamento... arcaico (mas que Miss gostaria que fosse moderno).

    abr,

    ResponderExcluir
  2. Prezado anônimo,
    mas Arnold J. Toynbee encaminhou sua obra final para a Mãe Terra. Creio que se pode usá-lo contra essa posição.
    Abraços,

    Pádua

    ResponderExcluir
  3. Vdd. Ou o economista do século 20 findou a vida revendo seu discurso, ou Miss se enganou de personagem e confundiu o historiador do século 19, com esse último. Nunca saberemos. Citações colhidas aleatoriamente para referendar discursos prontos talvez não sejam muito exatas quanto à autoria, enfim. abr, Adriana

    ResponderExcluir
  4. Esse não é o economista, mas o historiador. O economista é do século XIX. O texto parecia ter juntado os dois em um só.
    Abraços, Pádua

    ResponderExcluir
  5. ufa, a confusão foi minha, afinal. o economista tratou dos malefícios da Revolução Industrial para os trabalhadores e o historiador consagrou a mãe terra. Resta saber de onde Miss pinçou a citação, se de um ou de outro (?) -- está mais para o economista oitocentista. Ainda sim, superado em suas digressões sobre a natureza pelo sobrinho historiador do séc. XX. abr, Adriana

    ResponderExcluir
  6. Temos que perguntar para o assessor que escreveu o artigo... Abraços, Pádua.

    ResponderExcluir
  7. ... ainda assim, superado pelo ... e sem as aspas adicionais no primeiro comentário... mania de revisão, me desculpe, Pádua. Breve lerei o "post" sobre o ataque ao sistema interamericano de DH -- cada vez mais preocupante! p.s. li ou vi em algum lugar, denúncia de ex-Juiz de que o presidente bolivariano indica (va) condenações a certos réus... durma-se com isso! Adriana

    ResponderExcluir
  8. Prezada Adriana,
    vou acrescentar um parágrafo sobre a Venezuela, então. Abraços, Pádua

    ResponderExcluir