Esta pequena resenha foi publicada no antigo K Jornal de
Crítica, n. 16, de 2007. Como não está mais disponível, e os livros são muito
interessantes, incluo-a aqui.
Literatura portuguesa
contemporânea e violência: Alexandre Nave, Jorge Roque e Guilherme Faria
Pádua Fernandes
Dois livros portugueses diversos, de três autores contemporâneos
diferentes (e um deles é artista plástico), em dois gêneros literários
distintos. No entanto, essas dissimilitudes giram em torno de motivo
semelhante: a violência. No primeiro livro, temos a violência como cenário e
motivo; no segundo, a violência como fundadora do humano, que é obtido pelo
combate, e não é apenas produto, mas a própria batalha.
O poeta Alexandre Nave, antes de Vão cães acesos pela
noite (Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2006), só havia publicado o
interessante Columbários e sangradouros (Vila Nova de Famalicão: Edições
Quasi, 2003), que pecava pelo excesso expressionista de “facas repetidas nas
gargantas” (p. 64). Contudo, em versos como “temos cicatrizes/ como fronteiras
da pátria” (p. 47) já se podem encontrar as preocupações do segundo livro.
Em Vão cães acesos pela noite, o universo militar
está presente desde a violenta capa, baseada em pintura de Ernst Ludwig
Kirchner, Homens da artilharia no chuveiro. Significativamente, a
epígrafe à seção central do livro, Canum more, é de Wilfred Owen, o
poeta inglês quer morreu na Primeira Guerra Mundial e inspirou Britten para seu
War Requiem.
Os diversos poemas seguem versificação invariável: versos
livres e brancos que ficam, em geral, em torno do octossílabo, e tratam de
partes do corpo (“Focinhos”, “Tórax”, “Colhões”), locais (“Quartel”,
“Refeitório”, “Vestiário”), atividades e ritos (“Treino”, “Ronda”) e até
pessoas (“Recruta”, “Putas”). No entanto, não há sujeito nas descrições: o
humano só aparece num viés anatômico, com insistência no cheiro, no cu e na
urina, típicas dos cães. Em determinado momento, lembra, embora com menos
radicalidade, a teologia escatológica de Hilda Hilst: “chegam raivosos
queimados nos altares,/ vão com o dia defuntos ao terço// dias inteiros// como
deus caísse.// E deitam-se de peito a escutar,// descobrem no cu o buraco de
Deus.” (p. 74-75).
À falta do sujeito, partes do corpo tomam a cena, ou menos
do que isso: “o cheiro nos pés como memória/ do coração das raparigas.” (p.
83). As relações humanas dão-se em termos de matilha – em geral, os “camaradas”
estão em grupo e sem individualidade; as relações sexuais são descritas em
termos como “pelas raparigas, montadas, ermos, armas,// agudos na carne tenra
das virilhas,/ esfregam as crostas dos lombos// arrastam o corpo nelas como
sarna” (p. 69); “dão de bruço, dizem que se fodem/ oferecem o caralho, mijam
cheios// encrespam os ossos, chifrudos perfuram/ das fardas, postos tesos nos
membros// fodem ao relento nos quintais das casas/ marcam o território ao
corpo,// guardam a honra no cu.” (p. 29); “trazem gumes no cheiro das
virilhas,/ a urina escorrida pelas pernas,// dão o cu fechado aos cães.” (p.
31).
A masturbação é freqüente. Em “Quartel”, pode-se ler: “entre
o peito e o cinto, foscos/ batem punhetas, segóvias,/ ficam entediados de
esperma// uns deitados sobre o corpo, outros/ erguidos à porta, escarram pelo
chão” (p. 40-41). A ejaculação e o escarro igualam-se, pois não há prazer ou
júbilo, e sim o mero funcionamento de mecanismos corporais.
Essa vivência fragmentada do corpo humano, não como
resultado de um evento como uma batalha, mas de uma cultura militar, com seus
locais, ritos e armadilhas, corresponde à noção de violência assumida pelo
autor. Não é preciso bombas para que estes corpos estejam em pedaços, não é
preciso que a guerra ecloda para que todos sejam estrangeiros. Com estas vestes,
a humanidade não é um fim: “a farda como saca de morte” (p. 57).
A presença da pátria é vivida no mesmo diapasão: não há,
obviamente, esfera pública, o território é marcado à maneira dos cães: “urinam
anônimos de cerveja,// pingam a urina quente nas botas,/ marcam a pátria no fio
do mijo.” (p. 94).
Não há diferenças significativas entre as duas primeiras
seções, a que leva o título do livro e a Canum more. A terceira e
última, “Cânticos”, dedicada a Pasolini, encerra três cânticos, dedicados,
nesta ordem, ao sangue, à merda e à pátria. O universo de Salò parece não
estar distante. Assim termina o livro: “guardamos a fronteira da pátria//
deitamo-nos de orelhas ao vento/ limpamos os intestinos na erva// entre
arvoredo e gado,/ enterramos carne, sangue e merda.” (p. 108-109).
Neste livro, nem sempre a sintaxe é bem resolvida; por
vezes, Alexandre Nave usa construções que soam desajeitadas, sem que essa falta
de jeito colabore para o sentido: “morrem na vergonha do que esperam/ astutos à
honra do que deixam.” (p. 44). É de pensar também que o autor encontrará novos
metros e ritmos nos próximos livros de sua voz já distinta.
Senhor porco (Lisboa: &etc, 2004) com texto e
pinturas de autoria, respectivamente, de Jorge Roque e Guilherme Faria, é um
livro de aforismos ilustrados, com notável integração dos dois trabalhos artísticos.
O livro inicia com uma “advertência”: “Não se trata aqui do
belo, mas da resistência em face da ameaça.” (p. 5). A ameaça é o porco. O
animal, Jorge Roque diz expressamente, é uma metáfora (p. 16). Pode-se comparar
este porco ao filho-da-puta do Discurso sobre o filho-da-puta de Alberto
Pimenta, embora sem a construção e a vertigem desse livro de Pimenta. Os
porcos, “Distingue-os poder, cultura, estilo. Liga-os o porco que os veste.”
(p. 28); “Ajusta óculos, compõe gravata, olha em volta com olhar douto. Na pata
com que vira a folha, a falta de dedos trai o porco.” (p. 44).
Trata-se do homem na cultura, e não na natureza, como talvez
se pensasse devido à designação de um animal irracional: “Fato de marca, punhos
dourados, gravata estudada como convém, senta-se à mesa, desdobra o guardanapo
(tudo com gestos de compostura treinada). Mas ao chegar o prato, nele sorri o
porco.” (p. 8).
O porco também não é simplesmente o outro, mas a si mesmo:
se “O porco prolifera, as margens para que empurra o homem estreitam-se. Ser
homem não é um direito, mas um combate.” (p. 20). O porco está dentro de cada
um, a guerra não tem fim: “Cada vez que um porco cospe no meu nome mais eu
coincido com ele.” (p. 12); “[...] todo homem tem um pouco de porco. O que faz
o homem é o combate sem tréguas” (p. 47).
Para a luta pelo homem, precisamos da arte: “Toda a arte é
moral (também poderia dizer política): ou implica uma construção do homem ou é
decorativa.” (p. 39). Dessa forma, o livro é nostálgico da moral, do sentido, e
de Deus: “[...] quanto mais porco, menos moral.” (p. 43); “O porco é um animal
biológico. O homem um animal de Deus (esta diferença não é mensurável).” (p.
28). Essa nostalgia, no entanto, não se torna ingenuidade porque Jorge Roque
sabe que o “combate é sem vencedor” (p. 47).
As pinturas de Guilherme Faria em geral remetem à barbárie
presente na civilização, sublinhada pelas figuras dos porcos antropomorfizados.
Uma das mais chocantes talvez seja a da tourada, no momento exato da morte do porco-touro,
em que todos os personagens (inclusive os da plateia) são porcos – o júbilo do público é de fato
indecente. Em outra, um porco cuja metade direita difere da esquerda, senta-se,
enquanto a sua própria pele, como casaco, está pendurada. Talvez ele não seja
mais do que pele; mas é nesse mesmo sentido que se pode dizer que a literatura
tem armas: ela tem apenas aquilo de que ela se pode descobrir, e, mesmo
despindo-se, isso que a cobriu não consegue deixar de integrá-la. Não outra é a
violência constitutiva da literatura.
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