O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Matrimônio igualitário na França: as noites perturbadas dos conservadores



Cumprindo promessa de campanha, François Hollande enviou projeto para o casamento igualitário na França, país que conta apenas com uma lei de união civil (o PACS) que pode ser usada por casais do mesmo sexo.
Os reacionários de todo o espectro político movimentam-se; vi na televisão um parlamentar indagando a repesentante de organização LGBT se o projeto acarretaria que os homossexuais poderiam se casar em trio (que fantasias são despertadas no inconsciente dos reacionários!), e teve de escutar que só se almejava a igualdade: como os heterossexuais não podiam se casar a três, os homossexuais tampouco o poderiam.
Houve uma passeata, de que participaram talvez quatrocentas mil pessoas, contra o projeto Mariage pour tous (casamento para todos). Vichy também teve muitos entusiastas. Peguei um dos folhetos da campanha, que pode ser visto acima, que bem mostra que se trata de um movimento sustentado por mentiras. Uma delas, é que "somos todos filhos de heterossexuais", como se não existissem pais e mães homossexuais. E, numa França que orgulha de sua laicidade e persegue islâmicos em nome do Estado laico, dizer que a família é "sagrada" é de uma hipocrisia ímpar.
Levando a mentira e a hipocrisia a um patamar mais elevado, pseudocientistas estão afirmando que fazer com que o casamento deixe de ser um privilégio heterossexual vai destruir as bases antropológicas da sociedade francesa, quiçá da humanidade. Sobre o assunto, o antropólogo Maurice Godelier, da EHESS, em matéria do Le Monde (que tem, em geral, publicado contra o projeto), em 17 de novembro do ano passado, lembrou que "A humanidade não parou de inventar novas formas de casamento e de descendência" (http://www.lemonde.fr/societe/article/2012/11/17/l-humanite-n-a-cesse-d-inventer-de-nouvelles-formes-de-mariage-et-de-descendance_1792200_3224.html). Traduzo este trecho:

Esta concepção de família modelada por séculos pelo cristianismo é própria do ocidente e não tem sentido algum em muitas sociedades. Ela evolui porque os holandeses, em sua maioria protestantes, aceitaram o casamento homossexual e a homoparentalidade.
Entre os Baruyas, cada indivíduo tem muitos pais e muitas mães. Todos os irmãos do pai são considerados pais, todas as irmãs da mãe, como mães. Todas as famílias que não são do ocidente pós-cristão são irracionais? Foi a humanidade que as inventou! As resistências são normais, elas acompanham uma grande transformação social e mental.
Não só pseudoantropologia, mas pseudopsicanálise tem sido invocada contra o Mariage pour tous. O uso selvagem da psicanálise chegou a tal nível que os lacanianos, em 13 de janeiro de 2013, lançaram um manifesto (a ser assinado pelos pscanalistas) contra a instrumentalização da psicanálise pelos reacionários:
http://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2013/01/LQ-269.pdf 
O manifesto ressalta que nada na experiência freudiana valida uma antropologia autorizada pelo Gênese; a estrutura edipiana não é um universal antropológico; que, no nível do inconsciente, os dois sexos não são ligados por nenhuma complementaridade originária, o que Lacan exprimiu com "A relação sexual não existe"; e que cada ser falante deve buscar as vias de seu desejo - alguns precisam de uma crença religiosa para isso, outros a dispensam, questão sobre a qual o psicanalista não deve se pronunciar.



Além da mentira, da hipocrisia, da pseudociência, mantos que o ódio religioso contra os homossexuais usou para cobrir suas vergonhas, há mais uma veste, ou melhor, um anel de bacharel: o discurso juridicizante. Cada criança teria direito a ter um pai e uma mãe (já imagino que o próximo passo da república de Vichy, despertada do túmulo, se tiver sucesso agora, será proibir solteiros e separados de terem filhos, ou os terem sob sua guarda), e o matrimônio igualitário feriria tal direito.
Sobre essa não-questão, aconselho artigo de Beatriz Preciado, traduzido para o português por Fernanda Nogueira, "Quem defende a criança queer?". O artigo, pungente, parte da experiência pessoal da autora, revista sob o prisma da biopolítica: "A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. A polícia de gênero vigia o berço dos seres que estão por nascer, para transformá-los em crianças heterosexuais. A norma ronda os corpos meigos."
http://blogueirasfeministas.com/2013/01/quem-defende-a-crianca-queer/
No Libération, em francês: http://www.liberation.fr/societe/2013/01/14/qui-defend-l-enfant-queer_873947
A autora demonstra bem esta outra falácia do movimento: não se quer proteger todas as crianças, e sim impor tal norma (no sentido de Foucault) a todas elas.
Acima, outra foto que tirei muito mal da propaganda dessas pessoas muito estranhas, cheias de paixões tristes, que saem de casa num domingo frio para impedir que outras pessoas também tenham direitos.
Neste sítio do Partido Socialista francês (que não é o PT, e tampouco Hollande é Dilma Rousseff), temos a petição pelo casamento para todos:
http://www.parti-socialiste.fr/articles/droit-au-mariage-et-ladoption-pour-tous-signez-la-petition?gclid=COz-zdSbgrUCFXDLtAodPl4Acw
Pode-se aí baixar o material da campanha e da manifestação que ocorrerá no dia 27 de janeiro, como este "sim" para a igualdade:


Entre os blogues que leio sempre (na lista à direita), está o de Didier Eribon, biógrafo entusiasmado de Foucault. Ele está a favor do projeto, podem-se ler vários textos a respeito no blogue, o que o coloca em conflito com Foucault, ainda bem.
Já escrevi como Foucault se encontra com a direita religiosa (pegando caminhos diferentes) na oposição ao matrimônio igualitário. Trata-se do surpreendente encontro do filósofo francês com Ives Gandra da Silva Martins:
http://opalcoeomundo.blogspot.fr/2011/05/matrimonio-igualitario-no-brasil-o.html
Eribon supera essa posição dogmática, mostrando que se trata de uma forma de impor aos homossexuais uma posição de desviantes e anormais, o que é bastante tranquilizador para os "normais".
Curiosamente, mesmo na edição revista de 2011, Eribon, apesar de destacar aquela entrevista de Foucault e citá-la (da página 510 a 514), não menciona que o filósofo (que era homossexual) manifestou-se contra o matrimônio de pessoas do mesmo sexo...
Desde minha época de mestrado, para o escândalo de parte da banca examinadora, não tive dúvida de que era necessário superar Foucault. Felizmente Eribon, apesar do excesso de reverência àquele filósofo, consegue fazê-lo, e termino esta nota com tradução minha da crônica "Casamentos de ontem e de hoje", publicada em Contre l'égalité et autres chroniques (Paris: Éditions Cartouche, 2007):

"Por que os homossexuais querem se casar?" Quantas vezes ouvi essa frase nas últimas semanas! [...]
É um pouco como se considerássemos que os gays e as lésbicas fossem portadores de um gene do anticonformismo, e que eles iriam contra sua verdadeira natureza reclamando o acesso ao direito comum.
Vejam o essencialismo mal disfarçado nessas posições que desjam classificar, hierarquizar, normalizar, enfim, gays e lésbicas na categoria do anticonformismo.
Eribon escreve que, debaixo desta categoria, homossexuais, existe uma infinidade de realidades diferentes, que alguns vivem sozinhos porque assim querem, outros, apesar de não o quererem, que outros vivem em casais, que podem ser estáveis ou não, abertos ou não, alguns querem oficializar sua união, outros não etc. Outro ponto importantíssimo, também negado pelos reacionários:

Aliás, convém lembrar que o "casamento dos homossexuais" não tem nada de ineditismo. Oscar Wilde era casado! Pensar que o casamento teria sido até agora reservado aos heterossexuais e que os homossexuais, hoje, quereriam "macaquear" estes últimos, é completamente absurdo.[...] Com efeito, o casamento heterossexual não é a união de duas pessoas heterossexuais, e sim de duas pessoas de sexo diferente, e um dos dois pode, evidentemente, ser bissexual ou homossexual... Ou mesmo ambos: o casal heterossexual pode ser composto de dois bissexuais ou de dois homossexuais (como Vita Sackville-West e Harold Nicholson).
Eribon trata em seguida do exemplo de Gide, na literatura e na vida (o autor de Corydon era casado com uma mulher) e termina a crônica buscando as perguntas que não devem ser caladas neste debate:

Dessa forma, o problema não é: por que os homossexuais querem se casar? Eles sempre o fizeram. Mas, antes de tudo: o que gays e lésbicas, ao reivindicarem poder fazê-lo no quadro de casais do mesmo sexo, perturbam na ordem social e sexual?  E por que os guardiões da ordem estabelecida, seja de direita ou de esquerda, mobilizam-se com tanta energia para impedi-los? Que medo imemorial da homossexualidade assombra então os dias e as noites de todos esses conservadores?





 

6 comentários:

  1. Goethe: "Todas las leys están hechas por viejos y por hombres. Los jóvenes y las mujeres quieren la excepción; los viejos, la regla".

    O Direito, conquanto voltado à "felicidade civil"(em Leibniz, distinta da felicidade "no foro interno", fim precípuo da Teologia e de anarquistas como Bakunin, com seu desenfreado culto da igualdade substancial - o "fair is foul/and foul is fair" -, o credo das bruxas de Macbeth), não pode reconhecer como casamento "normal" senão o óbvio, tradicional e pedagógico(tomado no sentido da persecução da moralidade e independência como indivíduo, em Kant) "casamento heterossexual" - Casamento, por antonomásia. Com isso, no plano ideal, o Direito realiza a regra, e não a exceção - eterna fantasia das mulheres e dos jovens.
    Para reconhecer isso, é necessário ser poeta de verdade, ou homem maduro, como um Goethe... O Direito é, e sempre será, conservador.

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  2. Fantástico, Pádua. E em bom momento. A ser muito divulgado.

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    1. Obrigado, Renata. Veja o esplêndido comentário anônimo acima, que deseja, citando quem Beethoven chamou de "poeta dos reis", que somente velhos e homens (provavelmente só os heterossexuais; quanto à raça, nada direito, tampouco em relação à classe social; afinal, trata-se de Goethe...) façam as leis, para que o direito, na matéria, continue conservador...
      Abraços, Pádua.

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    2. O direito é e sempre será conservador (no sentido de regulamentar o que já está estabelecido pelos usos e costumes). Mas não pode se manter a léguas de distância da sociedade que pretende normatizar, como é o caso agora. Quantos direitos (humanos) ficam de fora quando se pretende excluir do direito (legal) o casamento igualitário? Tão absurdo que se pretende recorrer à sacrossanta família sabor TFP para justificá-lo. Porque, evidentemente, homossexuais não tem família. Só pode ser isso.Beijo, Pádua. Na luta.

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    3. Aliás, não estou aqui com a antologia de poesia erótica, mas achei este poema de Goethe nesta ligação:
      http://www.notasversejadas.com/2010/03/eros-porno-e-poesia.html
      "Gosto de rapazes, mas muito mais de moças:
      Satisfaço a moça, e ela me serve de rapaz."

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  3. Sim, Beethoven, que escreveu a Eroica sob influência dos “grandes feitos” do imperalista, conservador e, segundo o relato de Proudhon, “higienista”(em “O que é a propriedade?”, diz que, em França, os mendigos foram recolhidos à prisão) Napoleão Bonaparte. Goethe? Também realizou “grandes feitos” poéticos, se não o maior deles – Fausto -, sob influência de Bonaparte.

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