O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Hidrelétricas e segurança nacional, ontem e hoje (Desarquivando o Brasil LXIV e Terra sem Lei XI)

Li várias manifestações de estupor diante dos erros contidos no tardio pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff; ela se engana, segundo diz Juca Kfouri em matéria de grande impacto sobre o orçamento público, que são os gastos para a Copa do Mundo: http://blogdojuca.uol.com.br/2013/06/dilma-se-engana-e-ronaldo-erra/?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter. O ligeiro engano público está chegando a meio bilhões de reais, conforme investigação preliminar do Ministério Público Federal: http://oglobo.globo.com/pais/isencao-fiscal-para-estadios-da-copa-ja-soma-462-milhoes-8940613
Trata-se de despreparo da presidência em tema tão importante? O Movimento Passe Livre constatou essa deficiência oficial em outro assunto, a tarifa zero, que, no entanto, foi uma bandeira do partido que está na administração federal, e uma reivindicação popular em grande evidência nas últimas semanas: http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/dilma-falou-em-inviabilidade-da-tarifa-zero-diz-movimento-passe-livre.html.
Algo pior, no entanto, pode ser constatado naquele pronunciamento, com expressões como "dialogar com todos os segmentos, mas tudo dentro dos primados da lei e da ordem", "coibir, dentro dos limites da lei, toda forma de violência e vandalismo", "vamos continuar garantindo o direito e a liberdade de todos. Asseguro a vocês: vamos manter a ordem."
Gilberto Carvalho admitiu em quatro de junho último que a ação do governo em Belo Monte não seguiu a Constituição nem o Direito Internacional: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/520745-ministro-admite-erros-na-conducao-da-politica-indigenista-do-governo. O governo reconhece a ilegalidade e, sem pudores, prossegue no empreendimento ilegal, destruindo o meio-ambiente em um exercício colossal de vandalismo de Estado. Ao que parece, a hipocrisia era ética demais para este governo, que acabou optando pelo cinismo em relação aos índios e à natureza.
No mês passado, Paulo Vannuchi, eleito para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, declarou que o governo federal está dividido no tocante à questão indígena, e que a ministra Gleisi Hoffmann, por interesses eleitoreiros no Paraná, estaria alinhada com os fazendeiros: http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view=item&id=4597:paulo-vannuchi-gleisi-est%C3%A1-alinhada-com-fazendeiros
A reação governamental foi automática, referendada pela ministra de direitos humanos:
São, portanto, inoportunas e desprovidas de fundamento na realidade dos fatos, as declarações do ex- ministro que atribuem à ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, posições divergentes do conjunto do Governo. Eles ratificam que a política indigenista do Governo Federal é compartilhada por todos os ministros que se relacionam com o tema e tem como foco principal a efetivação dos direitos dos povos indígenas, compatibilizando-os com os objetivos fundamentais do desenvolvimento e da convivência democrática. (http://www.secretariageral.gov.br/clientes/sg/sg/noticias/ultimas_noticias/2013/06/14-06-2013-ministros-maria-do-rosario-e-gilberto-carvalho-rebatem-criticas-do-ex-ministro-paulo-vannuchi/view)
A efetivação dos direitos? Uma convivência democrática? Lembremos da portaria nº 303, de 16 de julho de 2012, da Advocacia Geral da União, concluída poucos meses antes de a AGU tomar as manchetes nacionais por venda de pareceres, afetando, segundo Luís Inácio Adams, a credibilidade do órgão: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,adams-admite-prejuizo-politico-e-anula-parecer-sob-suspeita-de-ex-adjunto-,965689,0.htm.
O escritor Antonio Prata, em crônica de julho de 2012 para a Folha de S.Paulo, resumiu sarcasticamente a portaria: "a notícia de que uma portaria da Advocacia-Geral da União prevê a possibilidade de o setor público construir em áreas indígenas sem consultar seus habitantes. A ideia, pelo que eu entendi, é que as reservas não sejam reservadas. Genial." (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/1125404-esses-indios-ai.shtml).
O grande jurista Dalmo Dallari dissecou, em "Advocacia e ilegalidade anti-índio" (http://m.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2012/07/27/advocacia-e-ilegalidade-anti-indio/?from_rss=internacional), a teratologia jurídica aprovada pelo Advogado-geral da União, que estava no exercício regular da competência do artigo 4º, X, da Lei Orgânica da AGU: "fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da Administração Federal".
Dallari aponta que, na portaria, deseja-se emprestar o efeito de normas gerais às condicionantes estipuladas no caso específico da Raposa Serra do Sol, processo que, por sinal, ainda nem mesmo entrou em julgado (o que gerou nota técnica da FUNAI em 20 de julho de 2012 solicitando a reconsideração da AGU: http://site-antigo.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=3624); e falha no erro e querer ampliar competência constitucional por meio de simples portaria.
A AGU acabou por recuar, diante não só da FUNAI, mas dos protestos das comunidades indígenas e de várias organizações. Inicialmente, a portaria nº 308, de 25 de julho, adiou a entrada em vigor das novas regras para dia 24 de setembro. Em 17 de setembro, a AGU acabou por postergar mais uma vez a entrada em vigor das diretivas anticonstitucionais e violadoras do direito internacional, por meio de nova portaria, de número 415, para quando entrar em julgado o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Sugiro a leitura da reportagem de Ruy Sposati para o CIMI: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=6526&action=read
No entanto, a bancada ruralista pressiona pela ressurreição da portaria (como se vê nestas declarações do deputado Moreira Mendes (PSD/RO), que foi presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária: http://www.senado.gov.br/noticias/senadonamidia/noticia.asp?n=849471&t=1) e ataca com novas medidas legislativas. A PEC 215, objeto desta cartilha preparada pelo CIMI, é uma delas: http://a12.com/download/caderno_cimi_pec215.pdf
Talvez mais grave, há um Projeto de Lei Complementar, de número 227/2012, da autoria do deputado Homero Pereira (PSD/MT), vice-presidente da CNA (Confederação Nacional da Agricultura), para legalizar a grilagem de terras indígenas - para que as terras indígenas, mesmo as demarcadas, não sejam mais indígenas; como diria Antonio Prata, "genial!". Foi aprovado o requerimento de regime de urgência para o que considero uma "Bolsa-grilagem" (http://www.camara.gov.br/internet/ordemdodia/ordemDetalheReuniaoPle.asp?codReuniao=32679), em conluio com o Poder Executivo: http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-ppds/governo-engana-indios-e-apoia-urgencia-para-projeto-que-abre-tis-aos-fazendeiros [ver o P.S. 3 abaixo - o regime de urgência caiu].
A má-fé do governo federação no tocante às lideranças indígenas fica, portanto, evidenciada.
Outro exemplo, ressaltado por Helena Palm, foi o da promessa do governo federal de fazer audiências com os índios Munduruku, já tendo decidido até mesmo ampliar o potencial da pretendida Usina de Tapajós: https://twitter.com/helenapalm/status/354240420852674561
Diante disso, deve ser aplaudida iniciativa dos Munduruku de expelir os técnicos de suas terras: http://tapajosemfoco.blogspot.com.br/2013/06/guerreiros-munduruku-prendem-biologos.html?spref=fb e http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=6990&action=read
Certa condicionante prevista no artigo 1º da portaria nº 303 da AGU refere-se diretamente à segurança nacional. Devemos sua redação ao Supremo Tribunal Federal:

"(V) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI".
Trata-se de transcrição de trecho do acórdão da Petição nº 3888-RR, que é o caso Raposa Serra do Sol. A subordinação de tais assuntos aos militares é uma velha novidade, estava presente na última ditadura.
Há vários exemplos do militarismo desenvolvimentista. Para esta breve nota, escolho este relatório feito pelo secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional. mais tarde presidente, general João Figueiredo, lido na 15a. consulta ao Conselho de Segurança Nacional, em de 23 de abril de 1970. O presidente Médici havia lhe feito uma consulta sobre a transformação de certos Municípios em área de segurança nacional. A ata pode ser lido no portal Memórias Reveladas: http://www.memoriasreveladas.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home.



As obras em curso e o complexo hidroelétrico a ser instalado tornam, desde agora, os Municípios de TRÊS LAGÔAS e CASTILHO de particular importância sob os aspectos da Segurança Nacional. - A preocupação com a região já havia sido demonstrada pelo Ministros da Marinha e do Exército, quando, por ocasião dos trabalhos iniciais sôbre os municípios de interêsse da Segurança Nacional, solicitaram a inclusão do Município de TRÊS LAGÔAS, com base nos fatôres político, econômico e militar.

O impacto dos grandes empreendimentos impostos à população, "tensões indesejáveis", "problemas de ordem política e psicossocial", deveria, pois, dentro dessa lógica repressiva, receber uma resposta militar. Note-se que o general Figueiredo, que passou para a história como amante de estrebarias, mas não da natureza em geral, simplesmente ignora o impacto ambiental (assunto novo para a época, de qualquer forma).
O relatório foi aprovado e os Municípios foram considerados de "interesse da Segurança Nacional" por meio do decreto-lei n. 1105 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del1105.htm) de 20 de maio de 1970.  Dessa forma, seus prefeitos prefeitos passaram a ser nomeados pelo Governador do Estado após aprovação do Presidente da República, segundo artigo 2º da lei 5449 de 4 de junho de 1968.
Essa possibilidade legal era uma das maneiras de limitar ainda mais o espaço da oposição (em alguns dos Municípios atingidos por essa medida durante a ditadura militar, o MDB era forte) e poder implementar seus projetos com menos resistência.
O governo de Dilma Rousseff, embora comungue desse tipo de desenvolvimentismo, não tem a sua disposição os mesmos instrumentos jurídicos da ditadura para controlar as "tensões indesejáveis" ao poder e às grandes empreiteiras, apesar de sua Força de Segurança Nacional, que ficará por tempo indeterminado em Belo Monte, segundo despacho de 10 de julho do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso: http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/64545/cardozo+autoriza+uso+da+forca+nacional+em+belo+monte+por+tempo+indeterminado.shtml
Por isso, os mecanismos de que se vale são tão flagrantemente inconstitucionais e contrários ao direito internacional dos direitos humanos, a tal ponto que o próprio governo reconhece suas "falhas", mas sem a virtude republicana de voltar atrás. Na ânsia de tornar irreversível o insustentável, de que Belo Monte é apenas um dos exemplos, manifesta-se em larga escala o vandalismo de Estado contra a Amazônia.
É possível que esse vandalismo alimente o racismo. Termino esta nota citando texto de Boaventura de Sousa Santos na Carta Maior, "O preço do progresso" (http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6151):

O racismo mostrou a sua persistência no tecido social e nas forças policiais. Aumentou o assassinato de líderes indígenas e camponeses, demonizados pelo poder político como "obstáculos ao desenvolvimento" apenas por lutarem pelas suas terras e modos de vida, contra o agronegócio e os megaprojetos de mineração e hidrelétricos (como a barragem de Belo Monte, destinada a fornecer energia barata à indústria extrativa).


P.S.: Quero relembrar que falo em "vandalismo de Estado" inspirado na análise que Sonia Rabello faz da prefeitura do Rio de Janeiro: http://www.soniarabello.com.br/vandalismo-oficial-contra-o-patrimonio-publico-o-caso-do-celio-de-barros-e-do-julio-delamare/

P.S. 2: Neste vídeo, o deputado federal Alfredo Sirkis (PV/RJ) denuncia a "manobra de surpresa destinada a abrir as terras indígenas à exploração mineral": http://www.youtube.com/watch?v=mllRBg_xKZ0&feature=youtu.be

P.S. 3: O projeto do PLC 227/2012 foi retirado de pauta pelo presidente da Câmara dos Deputados em 16 de julho, e não está sendo mais apreciado no regime de urgência: http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-ppds/alves-desiste-de-urgencia-e-cria-comissao-para-analisar-projeto-que-revoga-direitos-indigenas Esclareço que isso não significa que ele não foi ou que não será aprovado. A atenção ao assunto deve continuar.

2 comentários:

  1. Muito lúcido seu texto!
    Parabéns!
    Se puder dá uma passadinha no meu blog e deixa um comentário?
    Meu mundo, Meu quarto

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  2. Gostei muito do apanhado geral que vc fez sobre tudo e sobre todos que procuram uma saída convencional onde já não há.Juristas,deputados,senadores(desta ou daquela tendencia,tanto faz),filósofos,pensadores livres,industriais,formadores de opinião e etc,etc e etc...continuam tentando ,no mundo todo,manter o funcionamento das coisas baseados naquilo em que eles sempre acreditaram e pregaram.Só que a ficha está caindo e deixando claríssimo que isto será impossível.Todos no fundo sabem disto,se desesperam,culpam uns aos outros por estúpidos motivos,promovem todo tipo de guerra e ainda procuram manter as aparências como se nada os preocupasse muito profundamente.Eu só sei que nada sei.E não tenho a minima ideia do que virá nesses próximos anos.Talvez a única saída possível seja uma entrada em uma linha de pensamento semelhante ao olho do furacão,onde tudo terá que ser feito como nunca antes.Que sejamos capazes!

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