É sete de setembro e, nesta data cívica, estou vestindo a camiseta das Mães de Maio (http://maesdemaio.blogspot.com.br/).
Neste dia, muito apropriadamente, o jornal O Globo publicou, no caderno Prosa (antes também verso), longa matéria sobre "Os desaparecidos da ditadura e os democracia no Brasil" (http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/07/os-desaparecidos-da-ditadura-da-democracia-no-brasil-509472.asp).
O jornalista Leonardo Cazes falou com pessoas muito relevantes para a questão, como Maria Rita Kehl, Bernardo Kucinski, Janaína Teles e Fábio Araújo. Além disso, entrevistou Pilar Calveiro, que finalmente teve lançado no Brasil seu importante livro Poder e desaparecimento (São Paulo: Boitempo, 2013): http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/07/o-poder-desaparecedor-da-ditadura-argentina-509469.asp
A primeira matéria aludiu à recente campanha da OAB do Rio de Janeiro, a partir de pesquisa coordenada por Michel Misse, sobre os "Desaparecidos da democracia" (http://www.youtube.com/watch?v=QKxlYT0Q5cs), que incluem o pedreiro Amarildo no regime de exceção instalado pelo sistema da UPP no Rio de Janeiro.
Se a polícia pôde matar ao menos dez mil entre 2001 e 2011, segundo aponta Misse, de fato a democracia que temos é precária o suficiente para que, aos grupos contrários aos direitos humanos, a ditadura não seja mais necessária...
A campanha foi lançada em 27 de agosto deste ano. Nesse mesmo dia, curiosamente, o Senado aprovou projeto de lei tipificando o crime de desaparecimento forçado, o que é uma obrigação que o Estado brasileiro assumiu tornando-se parte da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas
contra o Desaparecimento Forçado. O projeto segue para a apreciação da Câmara dos Deputados: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/08/27/plenario-aprova-tipificacao-do-crime-de-desaparecimento-forcado-de-pessoa
Veja-se na matéria que foi destacado o caso do Estado do Rio de Janeiro, onde o número desses desaparecimentos já superaria o dos homicídios.
As repercussões desse tipo de crime são várias e refletem-se na arte. No Museu de Arte do Rio, pode-se ver atualmente, na Coleção Boghici, uma obra de Rubens Gerchman, "Desaparecidos", pintada em 1965, bem representativa da questão na época. Dois personagens são apresentados, ambos chamados de João da Silva, que não foram mais encontrados: um trocador de ônibus e um líder sindical.
No térreo do Museu, uma obra do Projeto Morrinho, "Morrinho 2012", que representa uma favela coberta de frases e discursos, foi atualizada com duas perguntas sobre o destino do pedreiro Amarildo, a quem escrevi isto: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/07/algo-como-um-poema-os-direitos-humanos.html
O Estado brasileiro, na sua falta de renovação política, tem sido reincidente nos casos de desaparecimento. Leonardo Cazes havia me procurado para a matéria que foi hoje publicada hoje e me enviou algumas perguntas. Algumas das declarações puderam ser úteis e foram incluídas. Mas, caso alguém queira ler todas as respostas que dei, copio-as abaixo.
- O relato de algumas famílias com quem conversei apontam para uma
espécie de violência que não acaba. A falta do corpo, do ritual da morte, do
luto transforma essa experiência em uma dor que não termina nunca. Do ponto de
vista jurídico, qual é o status do desaparecido? O desaparecimento forçado é
tipificado como crime no Brasil? O desaparecimento é um crime contínuo, que não
termina enquanto durar o desaparecimento?
Muitas dessas famílias descrevem algo como um luto em suspenso,
e tal suspensão é mantida pela impunidade dos agentes da repressão
política: a presença da dor é reforçada pela ausência de justiça. Algo
semelhante foi dito pelo jurista e poeta argentino Julián Axat,
membro da associação de filhos de desaparecidos HIJOS (seus dois pais
foram sequestrados logo após o golpe de 1976 e nunca foram encontrados). Axat,
ao comentar os julgamentos na Argentina em razão do terror de Estado
durante o golpe militar, afirmou que "só a justiça tira nossos pais
de um lugar difuso, de um purgatório, da instância fantasmática" (http://opalcoeomundo. blogspot.com.br/2011/04/ desarquivando-o-brasil-iv-o- exemplo-da.html).
Quero fazer notar que se trata, também no Brasil, de reivindicações
judiciais dos parentes das vítimas, e não de vingança: isto é, tais famílias
não pedem que a sorte de seus parentes desaparecidos se repita com os algozes.
Elas desejam a justiça justamente para que os processos, com suas garantias
formais, deem o recado aos agentes da repressão (de ontem e de hoje) de que
tais abusos não devem mais acontecer.
Já em 1992 a ONU havia aprovado uma Declaração sobre a Proteção de Todas
as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, considerando a prática um crime
contra a humanidade, o que foi confirmado no Estatuto de Roma, de 1998, que
criou a Corte Penal Internacional. O tratado específico somente foi
celebrado, em Paris, no ano de 2007, e o Brasil ratificou-o no final de
2010: trata-se da “Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas
contra o Desaparecimento Forçado” da ONU. Ainda não fez o mesmo
com a Convenção Interamericana, no entanto mais antiga (1994) e celebrada
neste país, em Belém do Pará. Lembro também que o artigo terceiro da Lei da
Comissão Nacional da Verdade inclui esse crime entre os abusos contra os direitos
humanos que estão sendo investigados pelos conselheiros.
Embora, tecnicamente, ainda falte lei nacional que tipifique o
crime com sua pena, a prática já pode ser processada no Brasil como crime de
sequestro. O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu-o, ao julgar pedidos
de extradição da Argentina em 2009 e em 2011, em razão de indivíduos acusados
de abusos contra os direitos humanos durante a última ditadura daquele país. O
STF ainda afastou a presunção de morte por ausência do corpo, o que
mostra que, juridicamente, o crime não terminou. Essa qualificação jurídica
corresponde fielmente a um dado psicológico: esse crime, ao suspender
o luto, de fato permanece a causar sofrimento entre os familiares.
- A Lei de Anistia no Brasil teve um caráter de reciprocidade, estariam
anistiados tanto militantes políticos quanto os agentes do Estado que cometeram
crimes. Quais os impactos dessa interpretação (avalizada pelo STF em decisão
recente) para a luta dos familiares de desaparecidos na ditadura militar?
O suposto caráter recíproco da lei de anistia foi um dos falseamentos da
história brasileira realizados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da
ação proposta pelo Conselho Federal da OAB, a ADPF 153. De um lado, a lei
excluiu os crimes de sangue para os opositores do regime; por outro, a oposição
queria responsabilizar os agentes do regime, o que era expressamente previsto
pelos substitutivos apresentados pelo PMDB, entre eles pelo então deputado
federal Ulisses Guimarães, e isso também era uma das reivindicações do
Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). Certos Ministros do STF chegaram a
imaginar que a sociedade falou de forma soberana nessa lei, enquanto os
documentos históricos provam que se tratou de projeto do Executivo, imposto por
sua maioria no Congresso, e que militantes chegaram a ser presos simplesmente
pela posse de panfletos pela anistia. Na minha pesquisa, encontrei vários
documentos secretos que mostram a vigilância e o controle dos agentes da
repressão sobre a campanha pela anistia (este é um dos textos que escrevi sobre
o assunto: http://hal.inria.fr/docs/00/ 53/12/73/PDF/AT12_Fernandes. pdf)
Deve-se lembrar ainda que, na decisão tomada na ADPF 153, o STF considerou
que a Lei de Anistia estava acima da Constituição de 1988 (reconhecendo
indiretamente que a anistia dos assassinos e torturadores da ditadura é mesmo
incompatível com a atual Constituição), por força de emenda constitucional
feita à Constituição de 1967! Ou seja, a Constituição da democracia estaria
abaixo de uma emenda da Constituição da ditadura, que já está revogada... O
absurdo jurídico salta aos olhos e representa, politicamente, uma anulação da
transição do país para a democracia.
Como o caso ainda não entrou em julgado (falta a apreciação dos embargos
declaratórios propostos pelo Conselho Federal da OAB), a Corte Interamericana
de Direitos Humanos decidiu em sentido oposto no fim de 2010, como vários
grupos, de juristas e de militantes, protestaram contra a decisão, e
a composição do tribunal mudou, creio ser possível que o STF consiga se reabilitar
disto que chamei, no Brasil e no exterior, de golpe judicial contra a
democratização do país.
- A Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, já condenou o
Brasil por casos como o da Guerrilha do Araguaia. No entanto, pouco ou quase
nada foi feito a partir disso no Brasil. Qual o poder dessas decisões
internacionais?
De fato, pouco foi realizado pelo Estado brasileiro. As condenações
de tribunais internacionais têm efeitos muito diversos, variando de acordo com
o que prevê o estatuto da corte envolvida. No caso da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, prevê-se a obrigatoriedade de suas sentenças, porém,
internacionalmente, elas só geram o efeito, de repercussão política,
de considerar um Estado fora-da-lei no tocante aos direitos humanos. Esse
lamentável status do Brasil foi confirmado em 2012 pela reação da
Presidenta da República e do Congresso Nacional contra a medida suspensiva
aprovada (e logo depois revogada) da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (que é outro órgão da OEA integrante do sistema de proteção aos
direitos humanos) no caso da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte,
que viola diversas previsões de direito ambiental e de direitos humanos, tanto
no plano nacional quanto no internacional. Tais atitudes da atual
administração federal cada vez mais se assemelham, na sua reação contra o
direito internacional dos direitos humanos (que reflete, por sinal, a problemática
eficácia desses direitos dentro do Brasil), a táticas dos generais que
presidiram o país durante a ditadura militar, o que é tristemente irônico, se lembramos do passado da Presidenta.
- É possível estabelecer alguma conexão/relação/paralelo entre os
desaparecimentos da ditadura militar e os desaparecimentos contemporâneos,
simbolizados pelo caso do pedreiro Amarildo, da Rocinha?
Entendo que sim. A militarização da polícia, que faz parte do triste
legado da ditadura militar, conduz a um sistema que leva necessariamente a
abusos, pouco importando se policiais, individualmente, são corretos.
A correção e, mais do que isso, a própria legalidade não combina com tal
sistema, razão pela qual a ONU já recomendou sua extinção. A militarização
significa que os policiais são treinados para combater um inimigo, e não
proteger os cidadãos. E quem é o inimigo para tal polícia? O ex-comandante da
PM do Rio de Janeiro, ao tentar justificar a feroz investida do governo do
Estado contra as centenas de milhares de pessoas na rua, candidamente
revelou-o: é a própria população... Qualquer sistema que considere o povo como
inimigo é incompatível com a soberania popular e, por essa razão, é
irreconciliável com a democracia.
A incompatibilidade da polícia militar com um regime
democrático tem nos desaparecimentos forçados, que cresceram nas áreas
ocupadas por UPPs, apenas um de seus exemplos, que revelam como as práticas
autoritárias permanecem para os pobres e as minorias. Contra estes, é imposto um
punitivismo demagógico e criminoso, exercido tantas vezes contra inocentes e além
dos limites da lei, que não autoriza a tortura, os desaparecimentos e as
execuções sumárias. Mesmo na época da ditadura militar, tais práticas não eram
lícitas. O regime autoritário, porém, deixou-nos esta herança da impunidade dos
abusos contra os direitos humanos. Ela deve ser combatida, tanto em relação aos
casos de ontem (o genocídio dos índios, a perseguição a militantes políticos
vítimas da ditadura), quanto aos de hoje, como Amarildo no Rio de Janeiro, os
filhos das Mães de Maio em São Paulo e, novamente, os índios, que continuam a
sofrer com a cobiça sobre o que restou de suas terras.
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