O autor havia me pedido uma pequena apresentação para a obra, que compartilho aqui:
Contar o nenhum: o suprimido em
Zeh Gustavo
Em
Pedagogia do suprimido, a alusão a
Paulo Freire, desde o título, anuncia que a formação é um motivo principal
desta obra. De fato é, porém no registro da falha, e nisso está uma das
originalidades do livro. Zeh Gustavo afirma, no primeiro poema, que “A Pedagogia do Oprimido gostaria/ um homem que
gerisse o próprio húmus.” Quem não pôde nascer de tal solo, o “sujeito
amplamente espoliado”, o autor chama de suprimido.
Trata-se, pois, de imagens de uma formação
fracassada, uma Bildung que não pôde
se concretizar perfeitamente, uma filiação que fracassou e nisso encontrou seu
triunfo, sua voz particular. O poeta nasce de uma falha da educação... Dessa
forma, temos um inventário de dicções do interdito em poemas como
“Interdicções”:
letras que não causaram cor
notas riscadas para a sombra dos discursos
horizontes desviados segundo a inapetência do dia
ditos olvidos de uma canção primeira
Trata-se
também do fracasso necessário, da aspiração impossível de “O homem que queria ficar menino/ dentro do caderno
de rasuras” (“Adultos não existem”). A máquina poética de
viagem e lembranças prossegue em “Raia a noite que tudo expõe”: “Eu insisto e me sobrevém um sono fraco,/ sonhos me
riem novamente,/ eu sou criança e durmo entre afagos/ dentro de minha casca,/
que teme.” Teme-se o difícil caminho, percorrido “fosso avante”, como se lê no
poema dedicado ao ficcionista Marcelo Mirisola, “Da escola”.
Um
fracasso necessário para a poesia, talvez: “A casa, toda a casa, logo foi ela/ quem sumiu dentro de alguém.” (“Casa
de camas”). Da queda de uma colega de escola nascem, simultaneamente, as
experiências com a arte e a morte, em um poema cujo título (“Sabiá sabia já”)
invoca um dos símbolos do país, desde Gonçalves Dias.
É
o país, portanto, que ensina a queda e conclama, dessa forma, à poesia? No
poema “Tia Eulália”, afirma-se esta política inconformista desde a infância:
Tia Eulália não era da xiba,
mas revelava querer
juntar Marx e Freud
pruma teoria-mundo outra,
a Tia Eulália camarada
Formalmente, Zeh Gustavo busca o difícil
equilíbrio entre ambos por meio da invenção de palavras e de um uso pessoal do
léxico, em poemas escritos com versos livres e brancos. Nos melhores momentos
surgem surpresas sintáticas (“A
linguagem nos língua.”); nos menores, Manoel de Barros é
evocado (“um assobio me entorta”).
O diálogo com a arte é outra das linhas
de força do livro. Em “Fernando Toledo e Newton Cavalcanti”, encontramos outra
solução para o suprimido: “Por sua
vez, mudo que é mudo não cala:/ toca instrumentos inexistidos/ ou parcamente
frequentados.”, e a aposta nas
linguagens artísticas que usem o silêncio para dizer o que é recalcado pessoal
e socialmente, algo que somente poderia ser dito através da falha: “Meus
brônquios falham intervalos musicais”, escreve em “A conta da carne”.
Nessa aventura de dizer a partir do
censurado sem calar a censura, na tentativa de torná-la, ela mesma, poética,
Zeh Gustavo dá um passo além do livro anterior, A Perspectiva do Quase. Agora, temos algo aquém do quase: “Conto palavras, uma por nenhuma.”
Pádua Fernandes
Autor, entre outras obras, dos livros de
poesia Cinco lugares da fúria (São
Paulo: Hedra, 2008), Cálcio (Lisboa:
Averno, 2012), Código Negro
(Desterro: Cultura e barbárie, 2013).
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