Aqui, pode-se ouvir a escritora explicar por que escolheu um título em polonês e como escreveu o livro: http://culturafm.cmais.com.br/comecando/entrevistas/veronica-stigger-apresenta-seu-livro-opisanie-swiata-pela-cosac-naify
Abaixo, uma foto da autora, que tirei em janeiro deste ano, entre os poetas Fabio Weintraub e Eduardo Sterzi. Todos estávamos em viagem...
A narrativa desse livro começa na Polônia e termina na Amazônia, o que, segundo Stigger, foi-lhe sugerido por Eduardo Sterzi como um desafio. Veja-se que esse arco geográfico poderia ser o de uma trajetória antropofágica, o que é exatamente o que a autora logra: o personagem principal será, de fato, apropriado pelo Brasil no meio do colapso europeu, assim como os outros estrangeiros que aqui encontra.
Há vários diálogos com autores do modernismo: o navio de Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, é avistado durante a travessia, um elefante drummondiano é redesfeito e, em apêndice, a autora elenca suas fontes de escrita, algumas orais. Uma leitura da rica intertextualidade desta novela precisaria também abordar a escolha dos nomes dos personagens, Opalka (que lembra o famoso pintor, cuja obra cortejava a desaparição), que é o protagonista, e Raul Bopp, seu companheiro de viagem.
O Bopp de Stigger tem, como o Glenn Gould de Thomas Bernhard, elementos em comum com o artista, mas, em larga medida, é um personagem com personalidade distinta da que um biógrafo descreveria. A presença de Bopp neste livro, creio, deve-se ao teor político da antropofagia assumida por Stigger.
Nesta breve nota, tratarei apenas disso. O grande Murilo Mendes, em curto e certeiro texto, "Sobre Raul Bopp", destacou que o outro poeta havia afirmado que "a maior volta do mundo que eu dei foi na Amazônia", apesar de ter viajado para tantos países, mesmo antes de embarcar na carreira diplomática. Murilo trata da presença da Amazônia na poesia de Bopp como
[...] a parte incomunicável do Brasil, seu lugar secreto, a floresta amazônica, plantada no tempo passado, em sua solidão e intimidade. A parte indígena do Brasil que Bopp considera como cenário adequado para sua revolução, seu plano de rutura com uma Europa que, grávida da história, se vê novamente em seus filhos americanos, mas que não pode ainda penetrar na dimensão amazônica.Murilo considera, com razão, Cobra Norato um "documento capital" do movimento antropofágico. Em que sentidos esse movimento pode se mostrar atual, isto é, inspirar novos discursos? Alexandre Nodari é um dos que têm criado esses discursos novos, referindo-se notadamente a Oswald de Andrade. Veronica Stigger preferiu apropriar-se de Bopp neste livro; também nele, ir à Amazônia significa chegar ao mundo.
O mundo que escapou a Jean-Arthur Rimbaud.
Não vou contar a história (a autora ainda está lançando pelo país o livro, e hoje o faz em São Paulo, na livraria da Vila da Fradique Coutinho), mas adianto que parte do gênio de Stigger está em como revela (no fim da história) os andaimes da memória usados para construir a ficção, e o quanto eles implicam a perda, o abandono de um estado inicial, como nos rituais.
Os rituais de iniciação descritos, o próprio caráter iniciático da longa viagem de navio da Europa ao Brasil (com o sacrifício de um dos passageiros e o suicídio de outro) implicam a perda do continente natal, a perda também da família.
É notável que a chegada à Amazônia faça-se sob a égide da perda. Nesse ponto, podemos ver o quanto a escritora, com uma história que se passa nos anos 1930, fala dos tempos de hoje, em que essa região está em tremendo perigo. Qual seria a nova "descrição do mundo" (a tradução do título), a nova viagem que deve ser feita? Este livro, com a narrativa desta chegada da Amazônia, concomitante com o início da II Guerra Mundial, parece apostar em uma nova descrição antropofágica, cujo caráter político faz-se completamente oportuno neste contexto de ataque generalizado, pelos poderes instituídos e pelo agronegócio, aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e ao meio ambiente, assuntos a que já aludi algumas vezes: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/09/terra-sem-lei-x-o-iii-encontro-nacional.html
Stigger não trata disso como matéria (ela não tematiza Belo Monte no livro, por exemplo), e sim como poética, o que me parece extraordinário. Creio que o tão comovente final do livro afete o leitor não só pelo que ocorre à família de Opalka, mas também por envolver-nos coletivamente: a perda também é nossa, é também das gerações futuras, descobrimo-lo nas rasuras de Opalka.
A negatividade desta história de Stigger, ausente de Cobra Norato, aponta, no entanto, para uma imaginação política que consiga transformar a memória em ficção. Trata-se da viagem apontada por aquelas rasuras, e da forma como a escritora se apropria da literatura brasileira do século XX, dando-nos pistas para a criação de um novo mundo.
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