Não me cabe responder a essa pergunta, pois fiz pesquisa para esse relatório. Posso ressaltar, porém, a questão das recomendações, que estarão presentes no relatório, e para que - o blogue Desarquivando o Brasil ressalta - a Comissão Nacional da Verdade, democraticamente, abriu consulta pública de 11 de agosto a 30 de setembro.
Trata-se de previsão do inciso VI do artigo 3º da ei 12.528 de 18 de novembro de 2011, que permitiu a criação da CNV: "recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional".
Irromperam, neste último semestre de funcionamento da Comissão, alguns clamores (na matéria, Amelinha Teles, Renan Quinalha e Marcelo Zelic, entre outros) para que a CNV não descuidasse de assuntos como a Guerrilha do Araguaia, a questão LBGT e as violações de direitos dos povos indígenas. Imagino que todos eles terão seu espaço, dada a sua importância.
A justiça de transição é como a cabeça do deus romano Jano: ela duas faces. Olha para o passado e para o futuro. Quer julgar e reparar o passado, mas também almeja construir, institucionalmente, as bases para um futuro em que as graves violações de direitos humanos não sejam mais sistematicamente cometidas. Por essa razão, todas as comissões estão a incluir recomendações em seus relatórios, seguindo a experiência internacional na matéria.
A rede DHNet elaborou uma página com ligações para diversos relatórios de comissões da verdade no mundo. O famoso Nunca más argentino, nesse aspecto, é fraco: uma página que não faz jus ao que a sociedade argentina logrou (e continua logrando) atingir. É certo que a prática social, para a produção da justiça, importa mais do que os textos... É ela, por sinal, que deve escrevê-los, ressignificá-los, para que o direito tenha efetividade.
As recomendações, pois, terão importância, se realizarem a tarefa dupla de refletir as reivindicações sociais e de suscitar, despertar novos clamores. Nessa dualidade complementar, a comparação com Jano também se faz eloquente.
Alguns grupos e organizações já elaboraram suas recomendações e as enviaram à CNV. É o caso do Grupo de Trabalho (GT) dos Trabalhadores, que elaborou um documento extenso, com 43 itens. Em alguns deles, há imprecisões jurídicas, no entanto. Destaco um trecho (note-se a pressa em escrever "antissindical"):
Muitas são interessantes e necessárias, como a extinção da Justiça Militar, que julga poucos processos e que poderia ser absorvida pela Justiça Federal. Não faz sentido, no entanto, a proposta de revogar a Lei de Imprensa, que não está mais vigente: o STF declarou que ela não foi recepcionada pela Constituição de 1988 na ADPF n. 130, proposta pelo PDT e julgada em 30 de abril de 2009. Assuntos como a ratificação da Convenção n. 158 da OIT (item 41) talvez não digam respeito diretamente ao problema, e precisariam de melhor explicação. O apelo à "democratização" dos meios de comunicação, previsto no item 20, embora urgente, é vago demais. Se houvesse sido feita uma referência à Constituição da República, sistematicamente descumprida nessa área, teria sido melhor.
O item 29 parte da premissa de que a desmilitarização da Polícia Militar pode ser realizada apenas com projeto de lei:
29. Encaminhar Projeto de Lei ao Congresso Nacional para desmilitarizar as Polícias Militares e revogar o Decreto-Lei nº 667 de 1969 que estabeleceu que se tornassem "forças auxiliares, reserva do Exército";
Creio que se trata de um equívoco. Parece-me que emenda constitucional também seria necessária, tendo em vista sua previsão na Constituição, que inclui, em relação às "polícias militares e corpos de bombeiros militares", a expressão "forças auxiliares e reserva do Exército" no parágrafo sexto do artigo 144. Um projeto de lei pode, com efeito, revogar o Decreto-lei, mas não a previsão constitucional.
As recomendações da Rede Nacional das Comissões da Verdade Universitárias são muito inferiores às elaboradas pelo GT dos Trabalhadores. São apenas 12, com um emprego curioso da linguagem ("positividade da criação da CNV"), e confusas, no sentido de que misturam recomendações às universidades, ao Legislativo federal, ao Executivo federal e a um destinatário indefinido. A Rede tampouco deu-se ao trabalho de dividir as recomendações entre iniciativas de memória, verdade, justiça e reforma institucional.
No entanto, as recomendações revelam-se altamente interessantes por serem um sintoma do atraso do meio acadêmico no tocante à justiça de transição. Vejam que elas partem do pressuposto de que a maior parte do trabalho ainda não foi realizada, muitas universidades nem mesmo criaram comissões da verdade, e mesmo iniciativas de pesquisa como identificar a legislação pertinente que remonta ao autoritarismo ainda restam a ser iniciadas. As reivindicações partem da expectativa de uma pesquisa futura, e não de investigações próprias já feitas. Para quem tinha a ilusão de que a academia estava na vanguarda deste movimento da democracia brasileira...
De qualquer forma, essas poucas universidades que criaram comissões ainda estão melhores do que a FIESP e a Globo, que nem mesmo se deram a esse trabalho, apesar do tanto que poderiam esclarecer.
De qualquer forma, essas poucas universidades que criaram comissões ainda estão melhores do que a FIESP e a Globo, que nem mesmo se deram a esse trabalho, apesar do tanto que poderiam esclarecer.
A Comissão da Verdade do Rio realizou um documento muito melhor, individualizando as medidas com sua relevância e o órgão ou Poder responsável. O item 14, "Realizar uma auditoria da dívida da ditadura militar.", apesar de sua expressão genérica (dívida externa? interna?) diz respeito a uma antiga reivindicação dos movimentos contra a ditadura militar a cuja altura nunca estiveram os governos da democratização.
O item 5 é realmente necessário:
O item 5 é realmente necessário:
5. Ampliar e aperfeiçoar o banco de dados Memórias Reveladas, alimentando-o com informações e representantes digitais dos acervos documentais e orais em posse do Poder Público, cujo acesso deve ser universalizado, facilitado e disponibilizado na Internet, com a criação de polos de acesso em diferentes localidades.
A justificativa, porém, poderia muito bem ser ampliada: não é apenas o acervo do DOPS/RJ que se encontra em más condições e precisa ser digitalizado.
O ponto 27, a extinção do crime de desacato, é muito relevante, pois geralmente mascara abuso de poder do pretenso "desacatado". Em julho, dei uma aula para alunos de Rebecca Atencio, todos ou quase todos dos EUA, e uma das coisas que me perguntaram foi o que significava esse crime... Apesar da militarização crescente do cotidiano daquele país (é preciso acabar com a ocupação militar nos EUA, disse certa vez Henfil para uma estadunidense incapaz de entendê-lo), o conceito era-lhes estranho.
A Rede Brasil - Memória, Verdade e Justiça, que é não governamental, também aprontou suas recomendações. Achei muito bom que fosse lembrado o III PNDH (no ponto 13 do documento), pelo seu papel no estabelecimento da CNV, e a importância do estabelecimento de locais de memória.
A Comissão da Verdade do Rio previu, em formulação interessante, o item da "revisão/reinterpretação" da Lei de Anistia; como outros juristas, também acho que o problema é de reinterpretação, que equivale, na prática, a uma revisão, tendo em vista o sentido frontalmente contrário aos direitos humanos que o Judiciário, para o júbilo dos torturadores e carrascos da ditadura militar, acabou por adotar, incluindo o Supremo Tribunal Federal em 2010, no triste julgamento da ADPF n. 153 - como escrevei em várias partes, inclusive neste blogue.
A Rede Brasil - Memória, Verdade e Justiça chegou também a uma boa formulação, mais detalhada no tocante à Constituição:
Assim como as recomendações anteriores, com exceção da que foi realizada pelas universidades (de fato, bastante limitada em seu escopo), aconselhou-se o fim da Justiça Militar.
Outras surgirão, e logo teremos as da Comissão Nacional da Verdade. Creio que é importante ressaltar:
a) que não se retroceda em relação às reivindicações dos movimentos pela anistia nos anos 1970; b) que se note que ainda não foram realizadas as reivindicações desses movimentos pela anistia...
Neste "Manifesto à nação" (reproduzo-lhe a segunda e última página), 5 de novembro de 1978, do Congresso Nacional pela Anistia, temos a reivindicação do "fim da legislação repressiva". Por exemplo, a atual lei de segurança nacional e o estatuto do Estrangeiro ainda vigentes são posteriores a esse documento, pois forma editados no governo do ditador General Figueiredo. No entanto, ambos possuem esse perfil repressivo, repudiado pelos movimentos pela anistia.
No tocante à liberdade de organização e de manifestação, os ataques, por forças dos Estados e da União, contra as manifestações democráticas, mais acentuados desde 2013, mostram claramente que esse perfil autoritário das forças de segurança no Brasil não foi nada ultrapassado - o que é um fator, imagino, que explica por que as comissões da verdade são uma experiência tão tardia no Brasil, e por que elas continuam sendo necessárias...
Denunciam-no as sucessivas ilegalidades da ação policial (ver aqui) e o ataque às prerrogativas da advocacia (como lembrei nesta nota).
A Rede Brasil - Memória, Verdade e Justiça, que é não governamental, também aprontou suas recomendações. Achei muito bom que fosse lembrado o III PNDH (no ponto 13 do documento), pelo seu papel no estabelecimento da CNV, e a importância do estabelecimento de locais de memória.
A Comissão da Verdade do Rio previu, em formulação interessante, o item da "revisão/reinterpretação" da Lei de Anistia; como outros juristas, também acho que o problema é de reinterpretação, que equivale, na prática, a uma revisão, tendo em vista o sentido frontalmente contrário aos direitos humanos que o Judiciário, para o júbilo dos torturadores e carrascos da ditadura militar, acabou por adotar, incluindo o Supremo Tribunal Federal em 2010, no triste julgamento da ADPF n. 153 - como escrevei em várias partes, inclusive neste blogue.
A Rede Brasil - Memória, Verdade e Justiça chegou também a uma boa formulação, mais detalhada no tocante à Constituição:
3) Explicitar que os valores e princípios insculpidos na Constituição Republicana de 1988 são incompatíveis com a anistia de crimes de lesa-humanidade, o que fica claro diante do reconhecimento formal do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro (Art. 1°, III), da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (Art. 4°, II), da condição de ser insusceptível de graça ou de anistia a prática da tortura (Art.5°, XLIII), e, sobretudo, porque a Constituição só trata de anistia com relação aos que foram perseguidos políticos pelo Estado brasileiro e não aos agentes públicos que os perseguiram (Art.8° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).Eu, porém, teria acrescentado previsões do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Assim como as recomendações anteriores, com exceção da que foi realizada pelas universidades (de fato, bastante limitada em seu escopo), aconselhou-se o fim da Justiça Militar.
Outras surgirão, e logo teremos as da Comissão Nacional da Verdade. Creio que é importante ressaltar:
a) que não se retroceda em relação às reivindicações dos movimentos pela anistia nos anos 1970; b) que se note que ainda não foram realizadas as reivindicações desses movimentos pela anistia...
Neste "Manifesto à nação" (reproduzo-lhe a segunda e última página), 5 de novembro de 1978, do Congresso Nacional pela Anistia, temos a reivindicação do "fim da legislação repressiva". Por exemplo, a atual lei de segurança nacional e o estatuto do Estrangeiro ainda vigentes são posteriores a esse documento, pois forma editados no governo do ditador General Figueiredo. No entanto, ambos possuem esse perfil repressivo, repudiado pelos movimentos pela anistia.
No tocante à liberdade de organização e de manifestação, os ataques, por forças dos Estados e da União, contra as manifestações democráticas, mais acentuados desde 2013, mostram claramente que esse perfil autoritário das forças de segurança no Brasil não foi nada ultrapassado - o que é um fator, imagino, que explica por que as comissões da verdade são uma experiência tão tardia no Brasil, e por que elas continuam sendo necessárias...
Denunciam-no as sucessivas ilegalidades da ação policial (ver aqui) e o ataque às prerrogativas da advocacia (como lembrei nesta nota).
Neste outro documento, que já mencionei neste blogue, temos o programa mínimo de ação publicado pela seção de São Paulo do Comitê Brasileiro pela Anistia. Muita coisa ficou por realizar: o fim das torturas, que continuam sendo toleradas no Judiciário, a "elucidação da situação dos desaparecidos", campo em que a CNV pouquíssimo avançou, e que é um dos pontos da condenação do Brasil no Caso Araguaia na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O problema da legislação repressiva, como escrevi, continua a se por; e a luta pelas liberdades democráticas continua sendo necessária, agora com outros matizes. Lembremos, por exemplo, que voltou, em 2013, a apreensão de "livros subversivos'".
Antes, mal se admitia o voto; hoje, os poderes instituídos querem que a democracia se limite a apertar botões em uma urna eletrônica, e não a contestar o "vandalismo de Estado".
Foi muito usual, nos discursos dos candidatos em 2014, a repetição da cacofonia "mais polícia", ou segundo os admiradores do calibre 45 (que bem poderia ser repetido por políticos de partidos de calibre mais baixo), "viva a PM".
Uma das recomendações que deve ser feita pelas comissões, portanto, deve ser a da desmilitarização da polícia. Neste contexto de vandalismo estatal e de repressão, mais polícia significa menos política.
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