Zero à frente
I
Para eles
a
política era necessária
como a
iluminação
para os
túneis
jamais
escavados
entre as
cidades
para que
a política
era a
água
o
saneamento
embora
desabitadas
por
faltar-lhes
a
política
onipresente
como as
fronteiras
invisíveis
dos
bairros demarcados
por pés
nus
por
marcas de tiro
tiros em
quem anda armado
só da
própria nudez
isto é
a
política
operária
da construção
de toda a
cidade
ambas
agora banidas
II
O que
resta do país, ou o próprio país: não só os mortos empilhados, a putrefação a
substituir a atmosfera, a inutilidade da atmosfera para os ossos, que respiram,
ainda, mas outra terra;
O que
resta do país: outra terra: como dos ossos restam os mortos.
III
Abre a
boca,
a chibata
sai e vibra:
não há escravos nem torturados mas apenas
efeitos colaterais da propriedade privada
A chibata
recolhe-se,
outra
língua irrompe
da
boca-precipício:
nossa toda terra e não dos que caíram
sob nossa chegada eis a prova
plantamos as cinzas deles
e não frutificaram
Retrai-se
à boca-vulcão
e uma
língua toda títulos de crédito
sem massa
sem forma
toda
fluido e fúria:
cotação do direito à atmosfera
o direito ao corpo no mercado de futuros
entre as perdas eventuais o espaço
desocupado por aplicações mais rentáveis
e portáteis
do que as gotículas d’água
do sopro
dos animais ainda pulsantes
A boca
não se fecha
desdentada
como a areia no deserto profundo
sua fala
os próprios dentes
e abocanha
devasta
a
devastação
(A boca não
se fecha,
o mundo,
sim;
de ambos,
o grito.)
IV
Não sou
conduzido,
conduzo.
Abro ruas
sobre os
pés,
visto-os
de asfalto,
abro ruas
para
carros passarem com a velocidade de pés nus.
Ninguém
me seca,
sou o
deserto. Sentem
sede,
pego o revólver. Sentem
fome,
chamo camburões
para
prendê-la. Vivem
sem teto,
aponto-lhes o progresso,
corram
para lá
antes que
seja tarde.
Não me
apanham,
eu mesmo
a corda.
Nunca
houve ditadura,
mas peço
que ela retorne
contra o
governo eleito.
A corda
está íntegra,
eu mesmo,
o puído.
Nunca houve
racismo,
jamais avistei
negros
na
faculdade ou no escritório.
Não há
mais racismo
nem
índios nem mico-leão;
escorraçamos
os que ousam existir
e deixam
as placas das ruas
para andar
no solo desta gentil cidade;
eles violam
as aulas de história.
Ninguém
me cala,
a minha
boca, o tampão.
Não tenho
liberdade de pensamento,
proclamo
todos os dias nos maiores jornais;
mulheres
se beijam na boca em plena rua,
violam
minha liberdade de pensamento
porque
continuam vivas
depois de
eu praguejar.
Somos
trezentos, trezentos
e
cinquenta, sou o zero
adiante
de todos os números.
Minha
intimidade com a inteligência
vem da
época em que fazia a segurança
de
apresentadores de tevê
durante o
meu expediente.
Sou o
zero à frente, não
sou
conduzido.
Com os
túneis que abri
atravessando
os corpos que tombaram
cheguei
ao parlamento.
Vamos
urrar nossos hinos? Não
exigimos
afinação, difamamo-la,
pisamos-lhe
a garganta,
expulsamos
a subversiva
da marcha
que conduzo;
somente afina
quem canta em comum.
V
(na chuva
que não cairá
ouvir a respiração
dos que tombaram)
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