Morreu Dom Paulo Evaristo Arns no último 14 de dezembro, com 95 anos. Seu velório, na Catedral da Sé, durou da quarta até a sexta-feira, dia 16, com missas de duas em duas horas. Assistia a uma delas, na tarde da quinta-feira. A foto abaixo, que tirei naquele momento, apenas sugere a multidão que lá estava para se despedir do religioso.
Li algumas das diversas notícias sobre o Cardeal, Arcebispo Emérito de São Paulo, um dos personagens mais importantes da história recente do Brasil. Elas abordaram a formação da Comissão Justiça e Paz, a substituição de Agnello Rossi, colaborador da ditadura militar, a atuação de Arns após o assassinato de Alexandre Vannucchi Leme, o ato inter-religioso por ocasião do assassinato de Vladimir Herzog, sua reunião com Jimmy Carter quando o presidente dos EUA visitou o Brasil, o apoio ao movimento pela anistia e ao movimento contra a carestia, seu auxílio a Adolfo Perez Esquivel, prêmio nobel da Paz preso no Brasil, a Pastoral de Direitos Humanos, o projeto Brasil: Nunca Mais, a divisão de sua Arquidiocese que o Vaticano promoveu para enfraquecê-lo...
São muitos os episódios que, em regra, ressaltam a coragem. Pois ele teve diversos inimigos que, em regra, agiam insidiosamente. Foi o caso, por exemplo, de uma edição falsa do jornal da Arquidiocese paulista, O São Paulo, em 1982, com uma declaração de mea culpa, inventada, atribuída a Arns sobre a infiltração do comunismo na Igreja Católica. Apesar de a declaração ter sido bem recebida por nomes conservadores da hierarquia católica, foi essa Igreja, e não o Deops/SP (imprestável para investigar crimes da direita), que descobriu uma das gráficas onde rodara a falsificação.Li algumas das diversas notícias sobre o Cardeal, Arcebispo Emérito de São Paulo, um dos personagens mais importantes da história recente do Brasil. Elas abordaram a formação da Comissão Justiça e Paz, a substituição de Agnello Rossi, colaborador da ditadura militar, a atuação de Arns após o assassinato de Alexandre Vannucchi Leme, o ato inter-religioso por ocasião do assassinato de Vladimir Herzog, sua reunião com Jimmy Carter quando o presidente dos EUA visitou o Brasil, o apoio ao movimento pela anistia e ao movimento contra a carestia, seu auxílio a Adolfo Perez Esquivel, prêmio nobel da Paz preso no Brasil, a Pastoral de Direitos Humanos, o projeto Brasil: Nunca Mais, a divisão de sua Arquidiocese que o Vaticano promoveu para enfraquecê-lo...
No Deops/SP, ele foi objeto de mais de quarenta fichas. Há centenas de páginas de documentos sigilosos da época da ditadura militar sobre Arns, que, por sinal, foi ameaçado de morte diversas vezes. Ao lado, vemos um panfleto da "Vanguarda de Caça aos Comunistas", um dos grupelhos terroristas de direita que se insurgiu contra o lentíssimo processo de abertura política (que ameaçava, em termos de cargos, verbas e oportunidades de negócios, os agentes da repressão).
O documento está no acervo Deops/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Um dos nomes marcados era o de Evaristo Arns, o segundo a ser mencionado: o primeiro, Dom Adriano Hipólito, e o terceiro, Pedro Casaldáliga, ambos de atuação tão conhecida, também foram importantíssimos nomes da hierarquia católica que se engajaram contra a ditadura militar.
Arns chegou a ser chamado de Satanás e de "propagandista da rebelião popular" por assessor do então Ministro da Justiça Ibrahim Abi Ackel, no Correio Braziliense em 30 de julho de 1980. Como a rebelião era uma necessidade da época da ditadura militar, queria recordar somente alguns destes momentos insurgentes.
Arns teve muita coragem em prestar apoio aos presos políticos. Quando, em meio de 1972, ocorreu uma greve de fome no Presídio Tiradentes, onde também estavam os freis dominicanos Beto, Fernando e Ivo, Arns foi escolhido pelos grevistas como interlocutor, mas foi proibido pelo diretor do Presídio de visitar os presos.
Segundo a nota do DIAL (Diffusion de l'Information sur l'Amérique Latine), reproduzida ao lado, "Permanece a impressão de que as autoridades militares se opõem de maneira crescente às intervenções da Igreja, especialmente às do arcebispo de São Paulo".
A notícia estava correta. A Igreja Católica havia apoiado o golpe de 1964. No entanto, a repressão havia chegado aos religiosos, especialmente aos que faziam trabalho de base (mas chegara ao secretário-geral da CNBB, Dom Aloísio Lorscheider, preso em 1970 no Rio de Janeiro), e parte da Igreja mudara de lado, inclusive Arns, que, leio em Paulo César Gomes, abençoara as tropas do General Olympio Mourão Filho, que saíram de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro em 31 de março de 1964.
A revista Informations Catholiques Internationales, com informações de Arns, noticiou a prisão arbitrária e a tortura, em 1971, do padre Guilio Vicini e da assistente social Yara Spadini pelo Deops/SP, em razão de estarem com a matriz de panfleto denunciando a morte do operário Raimundo Eduardo da Silva, militante da Ação Popular.
Sobre o episódio, cito o relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva":
A morte de Raimundo alcançou repercussão na imprensa quando o padre Giulio Vicini e a assistente social Yara Spadini foram presos e torturados porque portavam a matriz de impressão de um panfleto denunciando a morte sob torturas de Raimundo. O arcebispo metropolitano de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, os visitou na prisão e procurou o governador Abreu Sodré a fim de obter autorização para dar assistência médica aos dois. Em 4 de fevereiro, após o fracasso do encontro com o governador, redigiu um aviso distribuído em todas as paróquias denunciando as torturas sofridas pelos dois e exigindo um inquérito para apurar os fatos e a aplicação de punição.A denúncia foi objeto dessa revista católica francesa, que foi, por essa razão, encaminhada em 23 de março de 1971 pelo Ministério da Aeronáutica a outros órgãos do sistema de repressão e vigilância, inclusive o Deops/SP (a cópia do documento está no Arquivo Público do Estado de São Paulo). Vejam que a revista diz que "Descobria-se mais tarde que era o delegado Fleury, chefe dos 'Esquadrões da Morte', que tinha feito torturar os dois prisioneiros."
Como os adversários dos direitos humanos eram também seus, Arns tinha também críticos na imprensa. Ele sofreu ataques, por exemplo, de O Globo. Faço lembrar agora do editorial de 3 de outubro de 1979, "Flores de Moscou", que o criticava por ter recebido o militante comunista Gregório Bezerra, recém-chegado do banimento, após a anistia:
O Cardeal Arcebispo de São Paulo há bastante tempo que vem seguindo, em sua Diocese e na liderança eclesiástica brasileira, sob a capa elástica do progressismo pós-conciliar, uma linha teológica, evangélica e pastoral crescentemente desviada do magistério tradicional da Igreja de Pedro e dos mandamentos vaticanos. Desta vez, porém, exagerou na dose. Fez por merecer, sem nenhuma dúvida, os elogios e o ramo de flores do líder comunista anistiado.O jornal considerou que a ocasião significava "levar ao extremo uma série insistente de atos de engajamento da Igreja no terreno estranho, e traiçoeiro, da radicalização política".
Arns, um radical? A estranha avaliação decorria do permanente mal-estar da grande imprensa com os direitos humanos, o qual se repetia (repete-se ainda) quando as liberdades de associação, de expressão, de manifestação culminavam no direito ao protesto.
Arns apoiava essas liberdades. Além dos movimentos de trabalhadores e de estudantes e da campanha pela anistia, deve-se lembrar do movimento contra a carestia (que já existia, em São Paulo, na República Velha), doravante com a referência ao custo de vida, que amiúde se reunia em igrejas.
Há algo sobre o movimento e a espionagem do Deops/SP e da Prefeitura de São Paulo no relatório indicado nesta ligação.
Esta Informação do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), de 1978 (ela pode ser baixada do Armazém Memória), mostra que o órgão ainda não dispunha de dados sobre suficientes sobre o movimento social, tampouco sobre o envolvimento da Igreja Católica. Ambos cresceriam ainda durante a década de 1980. De fato, "se houver [e houve] um apoio substancial das entidades e movimentos acima mencionados, bem como do Cardeal ARNS, impulsionador de setores esquerdistas e contestadores, admite-se que o 'Movimento do Custo de Vida' venha a se constituir em mais uma frente de oposição ao governo." Tal era a fama de Arns para os órgãos de repressão política.
Erasmo Dias, que determinou a invasão da PUC-SP em 1977, entre outras violações de direitos que cometeu (e, depois, foi recompensado pelos paulistas com mandatos no Congresso Nacional), foi um de seus adversários. Vejam no trecho deste prontuário no Deops/SP (também no Arquivo Público do Estado de São Paulo) sobre Arns, a crítica do então Secretário de Segurança em 22 de outubro de 1977: "esse padre é que está colocando na cabeça dos estudantes essa ideia de Constituinte. Disse aqui, repito e direi até na frente de Jesus Cristo. O regime não será derrubado conforme muita gente está querendo. Não posso dizer quem, é muita gente. O religioso não deve incentivar desse jeito os estudantes. Ele poderá ser o responsável pelo que vier a acontecer."
Vejam a anotação seguinte, sobre os protestos do Cardeal contra a violência policial que havia levado a três mortes em São Paulo.
Incomodava o regime que a atuação do religioso se referisse aos direitos humanos e ao que poderíamos chamar de estado de direito, que jamais poderiam ser atendidos por uma ditadura (de direita ou de esquerda).
Neste documento confidencial do CISA (que pode ser baixado do Armazém Memória), vemos a anotação de que Arns teria, em Washington, revelado "ser a sua maior preocupação a 'inconstitucionalidade', o 'arbítrio' do Executivo e a falta de 'habeas-corpus em favor dos presos políticos', no Brasil."
Era 1977, e ele havia viajado para os EUA para, entre outros fins, receber um título da Universidade de Notre Dame. Também nessa ocasião, ele se ocupava da formulação de um novo Direito para o Brasil, que superasse o da ditadura militar.
Para terminar esta breve nota, nada melhor do que citar o próprio religioso.
O Movimento Feminino pela Anistia publicou, no número 2 do seu boletim Maria Quitéria, de junho de 1977, o discurso que Arns fez em agradecimento ao título de doutor honoris causa que recebeu em 1977 da Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos, com Jimmy Carter, ainda presidente dos EUA, o cardeal sul-coreano Stephen Kim e o bispo rodesiano Donal Lamont, todos homenageados pela defesa dos direitos humanos.
O documento está no acervo Deops/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
No meu País, o que mais nos preocupa é em primeiro lugar a inconstitucionalidade. Acima da nossa Constituição existe um Ato Institucional que confere liberdade ao Executivo de, a qualquer momento, segundo arbítrio próprio, tornar inexistentes as disposições da Constituição. Além disso, nega ele o "habeas-corpus" em favor de presos políticos, não respeita a inviolabilidade do lar e ainda torna incomunicáveis esses presos durante 10 ou 40 dias. Portanto não existe uma Constituição verdadeira. Disso tivemos prova há pouco, quando o Congresso foi fechado e a Constituição modificada, por simples arbítrio do Presidente, dentro de um gabinete fechado, onde ninguém sabe quem realmente trabalhou, fazendo a lei para todos.Os outros dois pontos de preocupação do Cardeal eram "os acidentes", que ele explicou serem as "torturas e outras questões semelhantes" que decorriam da inconstitucionalidade, lembrando que "Muito pior é a situação das minorias dos indígenas e das massas sem terra", e a "diferença da distribuição de renda, quer dizer, o desnível salarial". Além dos direitos civis e políticos, ele se ocupava das questões de justiça distributiva, que eram objeto de muitos dos movimentos que ele apoiava, como aquele contra o custo de vida.
Mais acima, vimos o então Secretário de Segurança preocupado com a campanha de Arns pela constituinte. Se o Brasil após 1988 jamais se livrou realmente dos dois últimos pontos do discurso de Arns, deve-se notar que, no momento de sua morte, assiste-se ao desmantelar do incipiente constitucionalismo brasileiro, desta vez sem a necessidade da atuação das Forças Armadas. O próprio Congresso, agora conjugado ao Executivo, destrói o sistema de direitos da Constituição de 1988, com (outro ponto em comum com a ditadura militar) a cumplicidade vigilante do Judiciário.
Pareceu-me adequado, portanto, que o atual ocupante da presidência da república não comparecesse ao velório de Arns; a imprensa falou do desconforto dessa pessoa em estar em um "ambiente de esquerda", o que é plausível. Penso, ademais, que seria doloroso ver esse grande desconstituinte (ironicamente, um professor de direito constitucional, assim como outros que vêm fazendo o mesmo em outros Poderes) prestar homenagens públicas a alguém que trabalhou em sentido oposto: assegurar direitos junto e para o povo brasileiro.
Doloroso, ou digno de novas rebeliões.
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