O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 31 de dezembro de 2016

Nota para 2017: Sá-Carneiro, "em mira o grande salto"

2016, para mim, ficou marcado, entre outros episódios, pelo centenário da morte do escritor português Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). "Vencer às vezes é o mesmo que tombar", escreveu, e escolheu a dispersão de si mesmo em Paris, num quarto de hotel, dia 26 de abril, aos 25 anos.
No epistolário que manteve com Pessoa (cujas cartas infelizmente se perderam), gostaria de lembrar
da carta de 24 de agosto de 1915. Nela, Sá-Carneiro comparou-se ao amigo, afirmando-o superior, e se definiu como artista:
É assim, meu querido Fernando Pessoa, que se estivéssemos em 1830 e eu fosse Honoré de Balzac lhe dedicaria uma livro da minha COMÉDIA HUMANA onde você surgiria como o Homem-Nação [...] E é meditando em páginas como as que hoje recebi procurando rasgar véus ainda para além delas  que eu verifico a nossa grandeza, mas, perante você, a minha inferioridade. Sim, meu querido amigo  é você a Nação, a Civilização  e eu serei a grande Sala Real, atapetada e multicor [...] Amigo, confia-me, na crise em que ora se debate de se haver enganado: pois para si criar beleza não é tudo, é muito pouco  que "beleza" a ferro e fogo eu juro que você criou. A meus olhos pois o seu medo pode unicamente ser o de haver "criado beleza errada" (Estou certo que não, mesmo assim  é mera hipótese a minha suposição: um dia breve você encontrará a linha que ajustará tudo quanto volteia antagônico no seu espírito e tirará a prova rela de sua "razão"). Mas o meu caso é bem mais terrível a certas horas: Para mim basta-me a beleza  e mesmo errada, fundamentalmente errada. Mas beleza: beleza retumbante de destaque e brilho, infinita de espelhos, convulsa de mil cores  muito verniz e muito ouro: teatro de mágicas e apoteoses com rodas de fogo e corpos nus.
A impressão que apenas Sá-Carneiro tinha naquela época, e que para quase todos seria motivo de escárnio, confirmou-se décadas depois. Nos 50 anos da morte de Pessoa, o amigo já tinha sido sido considerado um dos nomes maiores da "nação", como Camões e Vasco da Gama.
O mesmo nunca ocorreu com Sá-Carneiro, embora reconhecido postumamente na condição de "um dos pais fundadores do século" (Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra, Século de ouro: antologia crítica da poesia portuguesa do século XX) e um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos. Ele, de fato, não tinha o objetivo de escrever um livro que pudesse ter como título "Portugal", muito menos uma obra cuja Mensagem, em certo sentido, fosse a nação. Jamais o criticaria por isso...
Creio ser muito necessário desconfiar da civilização, da nação e da beleza, e que o artista pode tratar todas elas à base da implosão. Dito isso, cito parte do "Escala", de Sá-Carneiro, em que ele trata daquela beleza que procurava:
Eh-lá! mistura os sons com os perfumes,
disparata de cor, guincha de luz!
Amontoa no palco os corpos nus,
Tudo alvoroça em malabares de lumes!
Recama-te de Anil e destempero,
Tem coragem  em mira o grande salto!
Ascende! Tomba! Que te importa? Falto
Eu, acaso?... Ânimo! Lá te espero.
Que nada mais te importe. Ah! segue em frente
Ó meu Rei-lua o teu destino dúbio:
E sê o timbre, sê o oiro, o eflúvio,
O arco, a zona – o Sinal de Oriente!
A escala dos corpos nus, das cores, perfumes, do palco  e do (grande) salto com outros. Ânimo. Lá, em 2017, seremos algo disto, ouro, eflúvio, arco... Espero.

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