O impeachment foi o sintoma mais grave de que as instituições entraram em colapso. Progressivamente, passaram a funcionar de maneira disfuncional, descoordenada, e mesmo arbitrária. Para ficar apenas no dia-a-dia dos três poderes: o Executivo perdeu capacidade de liderar o governo; o Legislativo instalou uma pauta própria, independente do governo; o Judiciário estabeleceu um regime cotidiano de decisões que se afastou de qualquer padrão conhecido de jurisprudência. Há poder de fato, mas não há poder legítimo.O wishful thinking (se consideramos que se trata de uma opinião sincera) de que "as instituições estão funcionando normalmente" não se verifica, tampouco no Judiciário. Nobre trata também dessa questão e da insegurança jurídica da crescente instrumentalização política desse Poder:
O Judiciário deixou de atuar exclusivamente segundo a lógica política indireta que o caracteriza — aquela dos pontos e das curvas que é própria do direito — para agir de maneira diretamente política sempre que acha necessário fazê-lo. Não aconteceu apenas em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi também diretamente política a decisão do juiz Sérgio Moro de divulgar sem restrições os grampos das conversas telefônicas do ex-presidente Lula, por exemplo. Como são diretamente políticos os vazamentos de pedidos de prisão, de indiciamento e de investigação que correm sob segredo ou mesmo sigilo de justiça. Até o momento, parece haver uma grande tolerância social para com a ausência de curvas visíveis nas decisões judiciais. Tolerância perfeitamente em consonância com a posição que assumiu o Judiciário de tutelar o país em meio à crise política. E só pôde se colocar nessa posição porque as instituições entraram em colapso, o próprio Judiciário, inclusive. Não se trata de uma crise conjuntural. Nada vai voltar a ser como antes depois que passar o vagalhão da Lava Jato. Porque a instabilidade não vem da operação, mas, ao contrário, vem do modo de funcionamento do sistema político que ela escancarou.O modus operandi das instituições foi, de fato, escancarado; talvez o momento de abertura mais esclarecedor tenha sido a divulgação de gravação de conversa do ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, com Romero Jucá, em março deste ano. Machado fala que "a solução mais fácil era botar o Michel" e fazer "um grande acordo nacional", e Jucá acrescenta, "com o Supremo, com tudo", com o fim de parar a Lava Jato.
Enquanto isso, esperam-se outras delações, vindas da Odebrecht, que está sendo chamadas internacionalmente de "máquina de propina". Entende-se que, num país em que os escândalos se medem com bilhões, como nos indícios de superfaturamento da usina de Belo Monte, os Estados quebrem e a elite política queira fazer novos arranjos institucionais de saques da riqueza comum e dos direitos alheios.
Para tanto, ocorreu algum grande acordo? Veem-se grandes dissonâncias, apesar de momentos evidentes de pacto como a aprovação de impeachment e a desconstituição de direitos (a emenda constitucional n. 95/2016). Em outros momentos, a luta pelo poder torna-se evidente, entre os políticos e entre os Poderes instituídos. Ocorreram diversos atritos entre Executivo, Legislativo e Judiciário; em 14 de dezembro, decisão do ministro Fux, do STF, mandando refazer votação na Câmara dos Deputados do projeto anticorrupção que se afastou do projeto de iniciativa popular apoiado por parte do Ministério Público (especialmente a turma da Lava Jato), não gerou críticas apenas do Legislativo, como de seu colega Gilmar Mendes.
Trata-se de "briga de cachorro grande", escreveu André Dahmer, que acrescentou às perplexidades atuais esta perturbadora questão: "Você acha que cachorros devem controlar instituições?"
A produção do direito é uma atividade fundamentalmente política; por óbvio, em um ano como este, o direito brasileiro teria que ter sofrido diversas torções incompatíveis com critérios de integridade e coerência. Como os exemplos são diversos, listo apenas alguns - houve muito mais, espero ler reais retrospectivas que abordem os retrocessos jurídicos sofridos. Não ousei mencionar os projetos legislativos ainda não aprovados no Congresso Nacional pois se trata de matéria quase inumerável.
12 de janeiro: Nova prisão de Rafael Braga, segundo seu advogado, em flagrante forjado. Ele segue sendo o condenado único das manifestações de 2013, embora delas não participasse; os produtos de limpeza que levava foram considerados armas. Seu recurso está com o ministro Fux, que ainda não o decidiu. O ministro, em maio de 2016, seria objeto de pedido de impeachment exatamente por sua demora no cumprimento da função jurisdicional.
17 de fevereiro: Mudando seu entendimento, o STF passou a permitir a execução da pena de prisão após decisão em 2º grau. Para os idealistas do mundo jurídico que acreditavam (muitos continuam acreditando) que o novo Código de Processo Civil iria fazer o Judiciário brasileiro levar mais a sério sua própria jurisprudência (as pessoas de imaginação mais selenita já contemplavam um sistema de precedentes no país), outra evidência do mundo real. Pouco tempo depois, o ministro Celso de Mello ignoraria esta decisão do colegiado para, em decisão monocrática, seguir seu próprio entendimento, que era o da posição anterior.
8 de março: A filha do ministro Fux é nomeada desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, indicada por via da OAB. Malu Gaspar contou na Revista Piauí a longa história do caso, que teria gerado certa resistência entre os advogados do Rio, enquanto as atenções da OAB estavam voltadas para o processo de impeachment de Dilma Rousseff: "piauí conversou com quatro advogados que receberam ligações do ministro do Supremo em 2014. Nas conversas, Fux tratava o caso como questão pessoal, sempre emendando ao pedido frases como 'É o sonho dela' ou 'É tudo o que posso deixar para ela'. Chegou a mencionar o assalto sofrido pela família em 2003, quando ele e os filhos foram agredidos, amarrados e feitos reféns por bandidos no prédio onde moravam. Segundo Fux, a vaga no TJ seria uma forma de compensar o trauma da filha." A matéria teve o cuidado de transcrever, em quase quatro linhas, a integralidade da resposta à sabatina da então candidata à magistratura - que foi muito bem recebida no Tribunal, deve-se dizer.
9 de março: O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu abrir processo disciplinar contra a desembargadora Kenarik Boujikian, que "expediu alvarás de soltura para dez presos que, embora encarcerados preventivamente, tinham cumprido a pena fixada em suas sentenças" (matéria da Carta Capital, de 22 de janeiro, por Débora Melo: "No Judiciário, a defesa de direitos vira alvo"). Diversas entidades de direitos humanos foram solidárias à magistrada, e também o IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), que publicou um vídeo explicando o caso e a correção das medidas de Boujikian.
A ameaça à independência judicial, no caso, ocorre conjugada a um sistema que viola as garantias fundamentais dos presos - nos dois casos, estamos diante de garantias constitucionais imprescindíveis para o que se chama de estado de direito.
A magistrada, uma das fundadoras e ex-presidenta da Associação Juízes para a Democracia, foi homenageada em oito de junho com o título de Cidadã Paulistana na Alesp. A cerimônia foi muito concorrida, com a presença de diversos movimentos sociais: de mulheres, povos indígenas, negros, de familiares de presos etc. Fiquei a imaginar que pouquíssimos outros magistrados teriam a honra de contar com uma plateia como aquela, que realmente representava o povo brasileiro, e não uma elite togada.
10 de março: Pedido de prisão do ex-presidente Lula pelo Ministério Público de São Paulo logra não só desfazer a história da filosofia do direito, criando, entre outras façanhas intelectuais, a dupla Marx e Hegel (escrevi uma nota sobre a questão), quanto despertar declarações de solidariedade do PSDB e do DEM ao político petista!
15 de março: A delação premiada do ex-senador Delcídio Amaral (cuja queda foi, de fato, impressionante) incluiu, além de Rousseff, Temer, Aécio Neves, Lula e outros políticos, Ministros do STJ, Marcelo Navarro e Francisco Falcão, envolvendo o Judiciário. Em 17 de agosto, o ministro Teori Zavascki, do STF, abriu inquérito "contra a presidente afastada Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por tentativa de obstrução à Justiça nas investigações da Operação Lava Jato. São alvos do mesmo inquérito o presidente do STJ, ministro Francisco Falcão; o ministro do STJ Marcelo Navarro Ribeiro Dantas; o ex-ministro da Educação Aloizio Mercadante; o ex-senador Delcídio do Amaral e o ex-AGU José Eduardo Cardozo."
16 de março: Em ruidosa decisão, o juiz Sérgio Moro divulgou grampo de conversa telefônica entre Lula e Rousseff (que ele não tinha competência para investigar), que foi parar na tevê; depois do escândalo político produzido contra o então governo, o juiz pediria desculpas ao STF pela divulgação.
Lula falou, na conversa, em "Suprema Corte totalmente acovardada", o que gerou reação de Celso de Mello. Curiosamente, meses depois, em 7 de dezembro, o mesmo Ministro abriu a divergência vencedora que decidiu a favor de Renan Calheiros, que não cumprira decisão do Ministro Marco Aurélio e desmoralizara a autoridade daquele tribunal.
18 de março: O ministro Gilmar Mendes, do STF, em decisão surpreendente, concedeu liminar em ação do PPS e do PSDB, seguindo parecer do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, impedindo nomeação de Lula, que ainda não era réu em ação penal (tornou-se no segundo semestre), para a Casa Civil do governo da então presidenta Dilma Rousseff, sob a alegação de que o cargo seria usado para atrapalhar as investigações da Operação Lava Jato. Sabe-se, no entanto, que o governo posterior tem escolhido seus ministros muitas vezes entre os acusados, os suspeitos e os que ainda não foram presos (copio daqui essa taxonomia política), o que já levou à rumorosa queda de vários - de Romero Jucá a Geddel Vieira Lima, em caso de suspeita de advocacia administrativa contra decisão do Iphan, denunciado pelo então ministro da cultura, que deixou o governo após ter sido pressionado politicamente.
5 de abril: O Secretário de Educação do Estado de São Paulo, um magistrado aposentado, José Renato Nalini, publica artigo pelo estado mínimo e contra o direito à educação. Deve-se lembrar que se trata de professor universitário, que mantém vínculo com a Faap, a Fadipa e a Uninove. O episódio não renegou a tradição do Judiciário brasileiro contrária aos direitos sociais.
17 de abril: A Câmara decide em favor da abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Em uma sessão digna de filme de horrores, presidida por um deputado federal do Rio de Janeiro que logo perderia o cargo e seria preso (o que já se previa que ocorreria, depois que cumprisse seu papel no impeachment), outro parlamentar do mesmo Estado, em sua contínua campanha contra os direitos humanos e a democracia, elogia o falecido coronel Brilhante Ustra, único agente da repressão da ditadura militar declarado torturador pela Justiça brasileira.
Todo o processo reviveu traumas da ditadura militar, que ainda não foram socialmente resolvidos. O jornalista Marcelo Godoy, autor de livro dobre o DOI-Codi de São Paulo (A casa da vovó) considerou o acontecimento um "ato de guerra"; a Associação Juízes para a Democracia publicou sua "Nota de repúdio à conduta antidemocrática de apologia à tortura" e Amelinha Teles, uma das autoras da ação que declarou Ustra torturador, voltou a contar como ela e sua família foram atingidas pela repressão.
28 de abril: Violação do direito internacional do trabalho pelo TST, desta vez contra as Convenções 148 e 155 da OIT. Valerio Mazzuoli explica neste artigo a violação: "A corte simplesmente fez tábula rasa de convenções importantíssimas e mais benéficas ao trabalhador, ao reformar o entendimento da 7ª Turma do TST que, controlando a convencionalidade da Consolidação das Leis do Trabalho, havia entendido (corretamente) pela prevalência das convenções internacionais da Organização Internacional do Trabalho para garantir aos empregados o direito à cumulação dos adicionais de periculosidade e insalubridade." Mais um exemplo do provincianismo constitucional do Judiciário brasileiro em questões de direitos humanos.
24 de maio: O governo federal é comunicado de que a ministra Carmen Lúcia suspendeu a liminar, em ação da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, que proibia a divulgação da lista de empresas que exploram o trabalho análogo ao escravo. Desde então, a lista nunca mais foi divulgada, desta vez por omissão do Executivo, que parece não estar convencido a envidar esforços para a eficácia social da Lei Áurea. O Ministério Público do Trabalho do Distrito Federal, em novembro, conseguiu decisão liminar obrigando o governo a voltar a divulgar a chamada lista suja.
8 de agosto: A Relatora Especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, apresentou ao Conselho de Direitos Humanos da Organização o relatório sobre sua missão no Brasil, que ocorreu entre 7 e 17 de março deste ano. O sintético documento levanta diversas violações, como a radical ruptura com a Constituição e com o Direito Internacional dos Direitos Humanos concretizada em projetos como a usina de Belo Monte - se ela foi construída com aval liminarmente permanente do Judiciário, qualquer outra desconstrução do estado de direito em prol das grandes empreiteiras se tornou verossímil, inclusive as repressões aos protestos contra os mega-eventos, os quais são hoje alvo de investigações e delações e prejuízos em bilhões.
Divago, porém. Entre as recomendações de Tauli-Corpuz ao governo brasileiro, destaco agora esta:
97, letra d) Assegurar que todas as cortes tenham uma clara e uniforme interpretação das limitações do julgamento do caso Raposa Serra do Sol e de sua inaplicabilidade para a determinação de ordens de despejos dos povos indígenas ou para a paralisação dos processos de demarcação, O Supremo Tribunal Federal deveria continuar aceitando os pedidos de suspensão de reintegração de posses para garantir que julgamentos futuros sobre os direitos dos povos indígenas sejam inteiramente consistentes com os padrões nacionais e internacionais de direitos humanos.O Judiciário brasileiro, desde seu tribunal mais alto, tem legitimado a negação dos direitos territoriais originários dos povos indígenas, aplicando teses que justificam o legado do genocídio cometido pela ditadura militar. Para esses povos, não houve justiça de transição.
10 de agosto: O juiz Olavo Zampol Junior indeferiu o pedido da ação do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, que perdeu o olho esquerdo por ter sido atingido por bala de borracha da PM de São Paulo na repressão à manifestações de 13 de junho de 2013. A hostilidade policial à liberdade de imprensa, instrumental para a violação do direito de manifestação, continua encontrando abrigo no Judiciário.
31 de agosto: O Senado Federal aprovou o afastamento de Dilma Roussseff, que foi pessoalmente defender-se (algo que Collor não ousou fazer). A pena inclui o afastamento ao menos parcial também da Constituição, eis que ela não ficou impedida de exercer cargos e funções públicas. Aparentemente, tratou-se de acordo do PMDB com o PT, que não foi impedido pelo ministro Lewandowski, do STF, que presidiu o julgamento. A atuação do senador Jorge Viana, do PT, em prol de Renan Calheiros (do PMDB) em dezembro deste ano trouxe mais inconsistências na narrativa do golpe sustentada por esse partido.
4 de setembro: Operação do Exército em conjunto com o governo do Estado de São Paulo leva à prisão de 21 jovens antes que pudessem participar de uma passeata "Fora, Temer". O comandante geral do Exército, general Eduardo da Costa Villas Bôas, confirmou depois a atuação do agente infiltrado capitão Willian Pina Botelho, apesar das negativas do governo do Estado. Marina Rossi, no El País, escreveu sobre a ligação do agente com o general Manoel Morata de Almeida, que foi do DOI-Codi de São Paulo.
Fotografei e filmei trechos da manifestação, que foi bombardeada pela Polícia Militar de São Paulo quando chegava ao fim, em outra violação ao direito de manifestação, que nunca ocorreu nas passeatas favoráveis ao impeachment.
Em outra reportagem de Marina Rossi para El País, conta-se que um policial chegou a dizer aos jovens que forma impedidos de participar do ato: "o sonho de vocês não era ser preso pela ditadura? Vocês não queriam ser presos pela ditadura? Tá aí, agora estão sendo presos pela ditadura". A Polícia Militar jogou bombas no ato, quando ele chegou à dispersão. Tudo se tratou de mais um episódio da série "Doutrina de Segurança Nacional: A volta dos que não foram", sempre atual em um país que implementou de forma tão precária a justiça de transição.
Em 25 de novembro, a Procuradoria da Justiça Militar arquivou o procedimento investigatório sobre o caso - a Ponte Jornalismo reproduziu o arquivamento.
5 de setembro: O juiz Paulo Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo, registre-se o nome, restaura a Constituição brasileira de 1988 e manda soltar os 21 jovens.
13 de setembro: Novo pedido de impeachment contra o ministro do STF Gilmar Mendes, desta vez apresentado por "Celso Antônio Bandeira de Mello, Fábio Konder Comparato, Sérgio Sérvulo da Cunha e Álvaro Augusto Ribeiro da Costa; a ativista de direitos humanos Eny Raymundo Moreira; e o ex-deputado e ex-presidente do PSB, Roberto Amaral" alegando ofensa à "Constituição, a Lei Orgânica da Magistratura e o Código de Ética da Magistratura ao não atuar com imparcialidade e conceder frequentes entrevistas nas quais antecipa seus votos e discute o mérito de questões sob julgamento do STF. Além disso, eles acusam Mendes de atuar de maneira desrespeitosa também durante julgamentos e utilizar o cargo a favor dos interesses do grupo político que defende." (cito a matéria da EBC). Renan Calheiros demorou apenas uma semana para arquivar este pedido com mais outro, subscrito, entre outros, pro Cláudio Fonteles, que, em 20 de dezembro, propôs mandado de segurança perante o STF contra o arquivamento.
27 de setembro: Anulação, pela 4a. Câmara do Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, das condenações de 74 policiais no massacre do Carandiru. O relator, Ivan Sartori, criticado pela decisão, bateu boca nas redes sociais, falando de "ativistas dos pseudo-direitos humanos" e sugeriu que a parte da imprensa é financiada pelo crime organizado, mostrando certa resistência à esfera pública e ao encargo argumentativo de fundamentar as próprias decisões.
14 de outubro: Assassinato na cadeia pública de Várzea Grande de Valdir Pereira da Rocha, suspeito de preparação de atos de terrorismo nos jogos olímpicos do Rio. As prisões dos suspeitos deu-se por meio da Operação Hashtag da Polícia Federal, as primeiras fundamentadas na lei antiterrorismo, sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff.
20 de outubro: Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos condenando o Estado brasileiro no caso Fazenda Verde. Nesta ligação, a sentença; nesta outra, a matéria do El País. Foi a primeira vez que a Corte condenou um Estado por trabalho escravo - não admira que tenha sido o Brasil, e que este passo favorável à eficácia da Lei Áurea tenha sido dado por um tribunal internacional.
27 de outubro: Os governos dos Estados (Goiás, São Paulo, Paraná etc.) têm encontrado resistência nas suas medidas contrárias à educação pública nas ocupações dos estudantes secundaristas. Como se trata de inimputáveis, o Ministério Público do Paraná conseguiu que juíza em Araucária autorizasse criminalizar pais dos estudantes que participassem das ocupações. No caso, a hostilidade aos movimentos sociais, tradicional no Judiciário brasileiro, é instrumentalizada contra o direito à educação.
3 de novembro: Em arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta pela Rede, a maioria do STF vota pela proibição de que réus ocupem a linha sucessória da presidência da república, o que ameaçaria o presidente do senado, Renan Calheiros, que, por decisão do STF, em primeiro de dezembro, tornou-se réu em ação penal. No entanto, o ministro Toffoli pediu vistas da ADPF da Rede, e a decisão final foi adiada. Como se sabe, a violação aos prazos regimentais nesses casos de vista tornou-se a regra no STF, com vistas que podem levar mais de uma década, o que equivale a um veto informal contra a tomada de decisões pelo tribunal.
16 de novembro: Instauração de inquérito administrativo no Cade para apurar cartel de empreiteiras para a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Delação da Andrade Gutierrez incluiu a Odebrecht e a Camargo Corrêa entre os eventuais participantes das negociações, que teriam começado nos anos 1970, época da ditadura militar.
29 de novembro: Votação na Câmara dos Deputados da PEC de congelamento dos gastos sociais (241 na Câmara, 55 no Senado, que se tornou a Emenda Constitucional n. 95). A desconstituição de direitos sociais foi realizada com auxílio da violação das liberdades civis pelas forças de segurança. A foto de Gisele Arthur capturou o momento festivo dos desconstituintes simultaneamente ao trabalho não menos sujo das bombas.
30 de novembro: Matéria do Jota: "A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) protocolou no Supremo Tribunal Federal um pedido de desistência da ação (AO 1.649) que podia levar a Corte a suspender o pagamento do auxílio-moradia aos magistrados do País." A manobra, que entrega o julgamento do auxílio-moradia ao relacionamento entre o Ministro Fux e o calendário (Fux deu liminar em favor do pagamento em 2014 e nunca levou o caso ao Plenário, o que levou um grupo de advogados a propor um pedido de impeachment contra o ministro em maio deste ano), ocorreu em um contexto em que o Judiciário se blindou contra a crise. Não por falta de recursos: o Brasil gasta muito mais com o Judiciário do que com pesquisa e desenvolvimento, o que deve ter relação com a sistemática violação do teto constitucional naquele Poder, que se tornou alvo de disputa com o Legislativo.
5 de dezembro: Em ação proposta pela Rede, o ministro Marco Aurélio, do STF, determina o afastamento de Renan Calheiros da presidência do Senado Federal. A decisão não foi cumprida, segundo a imprensa, por sugestão de outro ministro do STF.
7 de dezembro: Com voto de Celso de Mello, que havia reagido contra a declaração de Lula de o STF estar totalmente acovardado, Renan Calheiros mantém-se na presidência do Senado, embora fique impedido de exercer todas as atribuições do cargo...
8 de dezembro: Um dos momentos mais engraçados do ano, Renan Calheiros diz que decisão do STF "é para se cumprir".
12 de dezembro: Vem à luz minuta de decreto de demarcação das terras indígenas que teria, na prática, o efeito de paralisar as demarcações no país e violar os direitos originários reconhecidos pela Constituição de 1988 e por tratados internacionais, ao buscar emprestar a natureza de norma geral às infelizes condicionantes inventadas pelo Supremo Tribunal Federal no caso Raposa Serra do Sol. Vejam a declaração de repúdio assinada por mais de cem organizações e entidades.
15 de dezembro: Promulgada a "Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos". O antropólogo Everson fez uma lista de declarações e notas técnicas contrárias à Emenda, que indico nesta ligação. Ela inclui o Conselho Nacional de Saúde, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciência (ABC), o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (Dieese) a Procuradoria Geral da República, o Conselho Federal de Economia etc. Cientistas, economistas, profissionais da saúde, juristas e mil outros discordaram (prodígios da democracia representativa) da medida aprovada com folga - ela sofreu oposição do Psol, da Rede e de parte do PT.
Os magistrados também não gostaram: a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMN) e a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) ajuizaram ação direta de inconstitucionalidade contra a emenda constitucional 95/2016.
Destaque-se o papel do ministro Barroso, do STF, em indeferir todas as ações que buscavam impedir a tramitação da PEC.
19 de dezembro: Parecer do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, opina pela inconstitucionalidade da MP do ensino médio. A manifestação deu-se na ADI 5599, proposta pelo Psol contra a MP 746/2016.
Perdoem-me por incluir apenas isto. Peço, porém, a atenção para o fato de que o reflexo das disfunções políticas sobre o Judiciário não trouxe, de fato, elementos muito novos para a cultura jurídica brasileira. Ao contrário, aquelas disfunções manifestaram-se por intermédio de velhas características dessa cultura: o provincianismo constitucional, a hostilidade aos direitos sociais e aos movimentos sociais, a legitimação do etnocídio e do genocídio contra os povos indígenas, o papel de garante da tortura e da repressão armada (o que se relaciona ao impasse na justiça de transição), a defesa das garantias quase estamentais da elite togada, a aversão ao encargo argumentativo na esfera pública etc.
Esses traços históricos da cultura jurídica brasileira fizeram com que ela funcionasse (quase normalmente), mais uma vez, não como meio de resistência a ataques contra direitos e a democracia, e sim como um meio propício para a manifestação e a legitimação desses ataques.
Nenhum comentário:
Postar um comentário