O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

30 dias de canções: Números do trabalho, não da riqueza

30 dias de canções
Dia 2: Uma canção com número no título

"Três apitos", de Noel Rosa. Outro dos sambas de Noel que só foi gravado depois da morte do autor ("Pela décima vez", que eu quase escolhi para esta nota, é outro exemplo). Escrito em 1933, Aracy de Almeida lançou-o em 1951, numa das gravações que levaram à redescoberta do genial compositor, que morreu com apenas 26 anos.
Ouçam o uso do portamento pela cantora já no primeiro agudo, no começo da música: "Quando o apiiito". A cantora não ataca diretamente a nota, ela desliza levemente para chegar na altura desejada. Ainda hoje, os sambistas gostam de temperar seu canto com o portamento em vez de usar um estilo mais objetivo, de atacar direto a nota.

Na importante caixa "Noel pela primeira vez" (que apresenta 229 versões originais das canções de noel, inclusive com o próprio autor), organizada por Omar Jubran, além da gravação de Aracy, temos a de Orlando Silva. Ela é do mesmo ano da composição, mas não havia sido lançada em disco. O cantor corta parte da letra e também canta com portamentos.
Ela, mais velha, e com outra voz, conservava o estilo, e nele Noel certamente se reconheceria.
Tom Jobim, que conhecia muito bem a tradição do samba, mas vinha de outra formação musical, cantou "Três apitos" de forma muito diferente; ouçam-no e comparem o começo da música com ele e com Aracy. Ele ataca diretamente as notas, o que o faz soar mais moderno.A música é muito bonita e já encontrou intérpretes tão diferentes quanto Elizeth Cardoso, Ney Matogrosso, Zé Renato e Zélia Duncan. Uma de suas originalidades está na letra, na forma como a canção de amor com elementos da canção de trabalho. O título logo remete para o mundo do trabalho: trata-se do aviso para as operárias da indústria têxtil. "Você que atende ao apito/ De uma chaminé de barro/ Por que não atende ao grito/ Tão aflito da buzina do meu carro?".
O ciume também está relacionado ao mundo do trabalho: o suposto rival é o "gerente impertinente"; ele quer virar "guarda noturno", "E você sabe por quê". Com esses tipos da cidade, "Três apitos" possui também o caráter de crônica urbana, tão presente na música de Noel Rosa. 
Na canção, o eu lírico sempre se dirige à amada, o que lhe permite um gesto metalinguístico divertido, referindo-se à própria canção que estamos ouvindo como se estivesse sendo feita enquanto é interpretada: "Mas você não sabe/ que enquanto você faz pano/ Faço junto do piano/ Estes versos pra você".Fazer pano, fazer música: temos aí o sambista, homem da noite, que se apresenta tão deslocado dos ideais burgueses ("Sou do sereno/ Poeta muito soturno") quanto a amada proletária. Com isso, lembramos do Noel de canções como "Filosofia", com a contraposição entre o sambista (realmente, uma figura ainda bem marginal nessa época, mesmo considerando o casamento que Noel fez) e o que chama de "aristocracia". Os números do título são os do chamado ao trabalho, e não os da riqueza.
Dia 1: Um retrato à beira da razão, de Tom e Chico

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