O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 21 de janeiro de 2017

Reuben da Rocha, o haxixe extragaláctico e o pertencimento ao planeta

Escrevi há algum tempo um texto em que aludo a escritores que vêm trabalhando, na poesia, a questão da perda da terra, seja pelos imigrantes, seja em razão da violência urbana, ou de remoções forçadas e genocídio.
Depois, em 2016, conheci Reuben da Rocha (São Luís- MA, 1984), o cavalodadá, e sua série em seis episódios Siga os sinais da brasa longa do haxixe (Pitomba, 2015-2016), em que a perda da terra é elevada a níveis espaciais pela ficção científica: o genocídio dos povos indígenas e a transfobia estão conjugadas à literal perda do planeta. No espaço sideral, vivem personagens como Maria Estrela Forte (uma astronauta travesti), mães Ka'apor e vários refugiados.
A série imagina o fim deste século; o progresso tecnológico conjuga-se a diversos retrocessos políticos e sociais: o governo civil acabou, o transporte público terminou, há uma série de refugiados das mais diferentes proveniências, pois uma teocracia financeira militarizada tomou conta de vários planetas.
Na publicação, há fios narrativos (a criança azul da mãe ka'apor assasinada, as ações de revolta de Maria Estrela Forte, da hacker Ka'apor e da Peixeira Tenaz), mas são apenas fios; o último número da série os abandona, sendo quase todo composto de fotos, encerrando-se com um poema sobre o coração e o desejo.
Caroline Micaelia, em artigo para a revista Cisma ("Passos para uma outra dança: dinâmicas e enfrentamentos", n. 5, 2014), dos alunos da graduação em Letras da USP, destacou o caráter da linguagem, "a escrita instantânea e concisa do ambiente digital", que também se coaduna com a arte de rua e com as intervenções públicas que Reuben realiza. Por exemplo, ele sempre escreve "d", em vez da preposição "de", e muitas vezes substitui o prefixo de ou des pela mesma letra.
A arte de rua, além de linguagem, também torna-se tema na série Siga os sinais da brasa longa do haxixe como instrumento de combate político. Um exemplo, no número 3:
------a gari guajajara
------se garante no bairro
cerze em letra cursiva, exausta
------------, pixos n1 cor d sconhecida ,
ñ no bico do último andar, mas no asteroide acima
Este outro recado (bem otimista, na verdade, tendo em vista o poder dos grandes meios de comunicação no Brasil) sobre a pichação, também da gari guajajara, talvez ganhe nova urgência na presente disputa pela cidade em São Paulo (n. 4, "os atentados íntimos"):
ela mandou 1 genitálias prisioneiras d guerra no muro
do Banco Militar Episcopal na tarde do dilúvio induzido
--torrentes corrosivas           (silêncio até d pássaros   )
é + fácil
-vc tirar 1 emissora d TV do do q impedir a alvorada
-d 1 pixo
A gari imaginária do fim do século é da mesma etnia de Sônia Guajajara, liderança da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A personagem contrapõe-se ao bandeirantismo extragaláctico: "no subsolo, onde a Paróquia do Extermínio armazenava, sob as ossadas dos santos bandeirantes, suas embarcações de guerra." (n. 1, "o sol nascer visto dele msm").
Há algo que remonte ao dadaísmo? Sim: as colagens e a revolta, embora não o inarticulado. Agora que a KKK conseguiu emplacar um presidente da república nos Estados Unidos, é interessante ler poemas como "hipóteses intumescidas" (n. 2):
------kKapital Amérikk k
-----------o higienista hipocondríaco
durante a qual o bom feitor mascarado exacerbava os traços d
heroísmo
A série de Reuben amplia extragalacticamente a geopolítica dos deserdados e dos indesejáveis, e a luta contra o "Estado-chacina". No "Relatório do ex amante:" (n. 3), os trabalhadores, em situação análoga à de escravos, vêm de diversas regiões; os muros e as cercas contra estrangeiros continuam no fim do século, bem como a esperança messiânica.
população vênus ucraniana acampada
no vale d ossos entre a Grécia Posterior
e Macedônia 1os 175qm + 4m d altura do arame farpado
do muro ( ir a baixo )
que cerca a Hungria c/ a Sérvia, a espera
d Dom Sebastião voltar à Terra
Há um tom juvenil de aventura bem simpático em muitos poemas. Em alguns pontos, no entanto, há menor voltagem imaginativa, e o texto sofre com isso. Esta descrição, tão colada às chamadas bancadas da bala e do boi no Brasil, não decola: "Os madeireiros/ depois que deixou de haver matéria ñ sintética/ se organizaram em partido político e/ agora sob o Conglomerado Financeiro da Fé/ agem como coletores de impostos" ("cresce na pressa a distância", n. 5).
Neste poema publicado em 2014 na Modo de usar, de que copio o começo, as questões da série do Haxixe estão condensadas:
LOGO ACIMA DO SILÊNCIO DO ÍNDIO Q SE SUICIDA
o enforcado sonha em disparada desta atmosfera pesada p/ outros mistérios + esferas
logo acima
dos abacates suspensos podres 1tupi akira
vara a febre do mosquito galopa aflito p/1lugar longínquo + escapa
às tentativas de assassinato
vista multidimensional do universo
amplo ataque do enxame sobre o exército
Penso que faz todo sentido que uma poesia cruzada pela questão do genocídio dos povos indígenas tematize o universo, até mesmo nessa dimensão extragaláctica, tendo em vista a pertinência das cosmogonias desses povos e do papel que eles adotam de guardiães da Terra, da natureza, nesta época histórica em que as sociedades da produção destroem o mundo tal qual o conhecemos. 

Penso, portanto, que o gesto extragaláctico na poesia de Reuben da Rocha parte de uma tentativa de defesa do mundo, de uma sensação de pertencimento à Terra, e não do escapismo.
Ao lado, uma foto que tirei do autor, em 2016, em São Paulo, realizando uma das tarefas tradicionais da poesia, a fotografia do fogo, exatamente para a série Siga os sinais da brasa longa do haxixe.
Também no ano passado, filmei o poeta falando na Setzer, em sarau organizado por Tarso de Melo e Heitor Ferraz.

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