O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

30 dias de canções: um desafio em tempos de fim da canção?

Vi diversas pessoas escrevendo a partir de um "Desafio 30 dias de música". Fui conferir do que se tratava e percebi que o título era muito enganoso, extremamente redutor: apesar da referência genérica a "música", ele só envolve uma forma musical, a canção.
Como essa forma é a mais comercialmente rentável, esse reducionismo, pensei, também seria nefasto em termos estéticos e de política cultural, pois significaria colocar na sombra outras manifestações musicais. Não cogitei participar, em um primeiro momento. Ademais, provavelmente a melhor parte do que se compõe no Brasil hoje está nos diversos gêneros da música instrumental.
No entanto, como a canção anda meio por baixo, e Chico Buarque, autor de tantos célebres exemplos, chegou até a falar no esgotamento dessa forma, e também porque eu gosto de listas (participei há poucos anos de algo parecido, "30 livros em um mês", que era muito mais bem pensado, pois envolvia vários gêneros), resolvi participar para também... espairecer. Música sempre pode consolar quando tudo está pesado. E inspirar, quem sabe, novos movimentos.
Chico Buarque, naquela famosa entrevista publicada pela Folha de S.Paulo em 26 de dezembro de 2004, "A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico", viu no surgimento do rap, que ele achava "muito interessante", o sinal de que o tempo da canção tinha passado:
E há quem sustente isso: como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido.
Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a bossa nova, que remodela tudo -e pronto. Se você reparar, a própria bossa nova, o quanto é popular ainda hoje, travestida, disfarçada, transformada em drum'n'bass.
Essa tendência de compilar e reciclar os antigos compositores de certa forma abafa o pessoal novo. Se as pessoas não querem ouvir as músicas novas dos velhos compositores, por que vão querer ouvir as músicas novas dos novos compositores? Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. 
É interessante ver um artista constatando sua própria obsolescência. Alguns reagiram a isso calando-se, como Rossini, que preferiu aposentar-se da ópera em pleno auge, com Guilherme Tell - ele sabia que o Romantismo vinha, e que até mesmo os estilos vocais se alterariam.
Outros, como o próprio Chico Buarque, simplesmente dedicam-se a tentar aprimorar a forma ou o estilo em que se formaram. Acho válido esse caminho, e interessante pelo que também pode representar como resistência. Vejam que continuam surgindo novos compositores, apesar de ser cada vez mais difícil ser ouvido.
A não ser que... você siga a moda. E nada é mais questão de moda do que a indústria da música. comprova-o o fato de o tempo do rap, como ritmo da moda, também já ter passado, provavelmente muito mais rápido do que Chico Buarque poderia ter imaginado em 2004. Este texto de Marco Antonio Barbosa (descobri-o porque Idelber Avelar chamou atenção para ele), "Como fazer sucesso nas rádios brasileiras", faz uma breve análise das músicas que mais tocaram nas rádios brasileiras em 2016, e noventa por cento eram canções pop sertanejas: "Hip hop, rock, EDM, tecnobrega, axé e MPB nem aparecem na lista."
A canção continua sendo lucrativa, não obstante a crise da indústria musical. Em texto posterior, "Ainda sobre o sertanejo e as músicas mais tocadas de 2016", Marco Antonio Barbosa trata de problemas que podem levar ao refluxo dessa moda no futuro: o gênero "apresenta certos problemas estéticos/líricos que se traduzem na rejeição de grande parte do público que consome música “séria” (e que já abandonou as rádios FMs há tempos). Por investir em uma imagem e uma poética tão estritas (a vestimenta country, o vocal característico, as letras monotemáticas), o sertanejo acaba limitando seu poder de expansão".
Ainda mais importante a destacar do que essa questão da uniformidade musical, parece-me, é a dominação dos meios de comunicação, sem a qual aquela uniformidade não poderia se impor orelhas abaixo ao público. Os meios de comunicação estruturam-se segundo a lógica do latifúndio (cujo nome foi "higienizado" para agronegócio nesses grandes meios, com ele coniventes), e que determina a monocultura musical: dos dez primeiros da lista, nove pertencem à Som Libre, isto é, à Globo.
É muito previsível que toquem muito nas rádios e na televisão: a lógica do oligopólio preside a indústria cultural, com todos os prejuízos estéticos e democráticos decorrentes dessa monocultura politicamente conformista e musicalmente previsível.
Li compositores mais antigos reclamando do atual estado de coisas, mesmo os de maior sucesso popular. Rita Lee, na interessante autobiografia que lançou ano passado (infelizmente mal editada pela Editora Globo), escreveu que, se fosse da nova geração, teria muita dificuldade em surgir nos dias de hoje, já que o "dinheiro" domina os meios de divulgação.
Deve-se pensar, portanto, o quanto uma possível crise da canção, ou até mesmo da música brasileira, está ligada à estrutura antidemocrática dos meios de comunicação no país, o que é um problema que estamos longe de resolver.

O desafio de 30 dias de canções, portanto, não deixa de ser interessante em termos musicais e políticos.
Parece-me evidente que a escolha da canção para cada dia tem menos interesse do que a motivação para a escolha; por sinal, a mesma música pode ser indicada por razões contraditórias. Vi pessoas que apenas indicavam o nome da música (alguns, sem mencionar o compositor, procedimento lamentavelmente desrespeitoso), fugindo de realmente responder ao desafio. Eu darei minhas modestas razões de mero ouvinte, que talvez interessem, apesar de tudo, por serem o retrato das impressões de um leigo.
Ao lado, vejam a lista original. Resolvi adaptá-la, sem mudar muita coisa (eu criaria outras categorias, mas isso seria estabelecer outro desafio), aos meus interesses em música.
O desafio dos livros, comecei-o em sete de setembro e só terminei em vinte de outubro... Imagino que não conseguirei escrever todos os dias também desta vez; ainda nem mesmo tenho ideia do que escolherei para pelo menos metade das categorias.
Tentarei não repetir compositores, pois há tantos e os meus favoritos não cabem em trinta dias.

Dia 1: Uma canção com uma cor no título
Dia 2: Uma canção com número no título
Dia 3: Uma canção que faz lembrar a natureza
Dia 4: Uma canção da memória reprimida
Dia 5: Uma canção que precisa ser tocada baixo
Dia 6: Uma canção que faz você querer dançar
Dia 7: Uma canção de luta
Dia 8: Uma canção sobre drogas, legais ou não
Dia 9: Uma canção sobre a felicidade
Dia 10: Uma canção sobre a tristeza
Dia 11: Uma canção de que você não se cansa
Dia 12: Uma canção da infância
Dia 13: Uma de suas canções favoritas dos anos 70
Dia 14: Uma canção que você gostaria de ter tocado (ou tocar) em seu casamento
Dia 15: Uma canção que evoca outras artes
Dia 16: Uma canção clássica para você
Dia 17: Uma canção em dueto
Dia 18: Uma canção na qual você gostaria de ter nascido
Dia 19: Uma canção que quer ser a própria vida
Dia 20: Uma canção que destrói o sentido
Dia 21: Uma canção favorita com um nome próprio no título
Dia 22: Uma canção e uma revolução
Dia 23: Uma canção que você acha que todos deveriam ouvir
Dia 24: Uma canção cujos compositores ainda deveriam trabalhar juntos
Dia 25: Uma canção cujo intérprete pode ser considerado coautor
Dia 26: Uma canção que cancela as paixões
Dia 27: Uma canção que cancela as canções
Dia 28: Uma canção de um artista cuja voz você ama
Dia 29: Uma canção improvavelmente composta
Dia 30: Uma canção que faz lembrar o mundo

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