O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Ciganos, Enzina e "a calca porra"

Os diversos grupos do CoralUSP, neste ano, estão preparando, como uma das peças comuns, a conhecida "Hoy comamos y bebamos" de Juan del Enzina (ou Encina, como é mais comumente escrito - porém sigo a grafia de Savall), importante nome do Renascimento Espanhol.
A música está incluída no Cancionero del Palacio e apresenta as pesadas marcas do catolicismo ibérico: comamos e bebamos hoje, até rebentarmos, pois amanhã jejuaremos! A alegria, pois, dá-se em um contexto de conformidade à religião. Para quem não a conhece, uma gravação do Hespèrion XX regida por Jordi Savall pode ser ouvida aqui, já que o disco de 1991 (Juan del Enzina: Romances & villancicos) que ele gravou para a Auvidis não está mais disponível:
http://www.youtube.com/watch?v=PvxyzV87stk
É alegre e tem um caráter popular: trata-se de um villancico, forma típica dos séculos XIV e XV na península ibérica. A música não tem grandes dificuldades técnicas, e a tessitura requerida é restrita para todas as vozes. No entanto, um verso desafiava a compreensão literária: "Comamos a calca porra". "A", e não "la", o que parecia indicar que "calca", seja lá o que fosse, não era um adjetivo.
Como fui apresentar um trabalho sobre as leis de anistia brasileira e argentinas na Espanha, aproveitei e fiz uma pequena pesquisa in loco. Descobri que os espanhóis, pelo menos aqueles com que falei, não entendem o verso, pois não sabem o que é "calca". A "porra", eles a comem com café.

Não é doce, nem salgada, explicaram-me (não a provei). Parece com churros, porém não possui recheio. As fotos mostram seu preço e como os espanhóis a consomem; a segunda imagem mostra um prato cheio da iguaria. Tirei as duas em Madri, no Café Santander.

Seria a "porra" do século XVI a mesma que é consumida no século XXI? Por ser uma comida tão simples, teria atravessado quase sem alterações os séculos? Não consegui ainda averiguar. De qualquer forma, trata-se de algo a ser comido.
E a "calca", que nada significa para os espanhóis de hoje, que, porém, continuam a empregar o verbo "calcar"? Consegui descobrir em um dicionário que se trata de um vocabulário popular, um jargão de "ciganos, rufiães e ladrões": um caminho de terra (aberto pelas pisadas dos caminhantes: daí, a relação com o verbo "calcar").
Parece, portanto (deixo para quem ler isto trazer soluções melhores para a interpretação do verso), que, na música, as pessoas vão comer por esse caminho a "porra".
Note-se que estamos cantando essa música em um contexto de expulsão dos ciganos na França: não deixa de ser um manifesto político!

10 comentários:

  1. Oi, Antonio! Muito bom e divertido!
    Obrigada pelos esclarecimentos! Agora vai ficar mais fácil cantar esse trecho que era de certa forma indigesto, rs.

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  2. Olá, Antonio! Muito bom e divertido!
    Obrigada pelos esclarecimentos! Vai ficar mais tranquilo cantar aquele trecho, rs.

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  3. Olá:

    Descobri neste Blog um comentário sobre churros e porras http://gladio.blogspot.com/2004/06/churros-e-porras.html.
    Já a Wikipedia sugere que as Porras são uma versão madrilenha dos Churros.
    Creio que a diferença está na existência ou não de recheio.
    Cybelle

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  4. Obrigado, Cybelle. As porras que conheci em Madri não tinham recheio.
    Abraços,
    Pádua

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  5. Olá,
    Do contexto carnavalesco se percibe que trátase de jantar moito. Calcar é apretar algo cós pés. A porra es un pao, una maza que se usa para atizar ou golpear. Náo é tampoco um canto a voracidade maís só iso, que trátase da última oportunidade antes de cuaresma.
    Non tem tampouco caracter lujurioso, para iso Encina ja ficera outros versos mais picantes(Si abrá en este baldrés - pele fina - mangas para todas tres...). Este home foi o "axente social" do segundo Duque de Alba no tempo dos Reyes Católicos Isabel e Fernando. Fizera do primer teatro profano (a modo dos actos religiosos de reies) mais tanbem versos satiricos de todo tipo.De seguro tivera relación com o infante Don Juan, que fizera construir a Casa da Mancebia, primer lupanar com licencia de Castilla. Este caracter desenfadado é normal num licenciado de Salamanca da época. Más tarde dos treinta anos nao fiz mais composicoes deste tipo.
    Nas cafeterías almoçan-se churros e porras. Os da foto son churros. As porras sao más gordas e azeitosas. Seguro que as masas fritas foran conhecidas naquella época, máis o sentido do verso é apretar "entre peito y espalda" ou "reventar".
    Miguel
    Zamora

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  6. Prezado Miguel Zamora,
    muito obrigado pela explicação. E vejo que fui enganado: venderam-me churros no lugar de porras.
    Abraços, Pádua

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  7. Olá,

    Não posso falar muito português mas gostava de fazer uma aclaração: eu sempre entendi que "calcaporra" é o mesmo que "cascoporro" que é uma forma de dizer "muito". Comamos a calcaporra = comamos até que não possamos mais.

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    1. Faz sentido nesse contexto, mas é necessário ver essa etimologia.

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  8. Debate-se a expressão aqui:
    https://cvc.cervantes.es/foros/leer_asunto1.asp?vCodigo=53898

    Com certeza quere dizer «abundantemente».
    No caso dêste vilancico poderá com muita propriedade dizer-se em português por «à tripa fôrra». Comer à tripa fôrra quere exactamente dizer, até rebentar. «Hasta que no no reventemos», lá está!

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