O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 6 de maio de 2012

Marxismo para administradores ou políticos contra a poesia, novamente:

Certamente como sua forma particular de comemorar o aniversário de Marx no dia anterior, a Folha de S.Paulo publicou artigo de membro do DEM e presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo, Rogério Amato.
O título da peça jornalística, "Lições de administração com um poeta", pareceria sugerir apenas mais um exemplo do nível abissal teórico de livros de administração que citam, descontextualizados, grandes autores que nada têm que ver com a área, numa forma lucrativa de apropriar-se da palavra alheia. O leitor, agradecido, sente-se mais sofisticado e erudito sem ter precisado realmente ler o autor traficado. 
Imaginem best-sellers cujos títulos são suficientes para revelar a indignidade teórica, como "Hildegard von Bingen e a mulher executiva", "Lições de Empédocles para empresas sustentáveis", "A República de Platão e o capitalismo humanista" etc.
Aparentemente seguindo tal linha, o curioso artigo do membro do DEM menciona Vladimir Maiakóvski (esquecendo o acento agudo) e faz uma citação bem iletrada de certo poema, ignorando completamente a versificação e a estrofação. Em um exemplo óbvio de non sequitur, parte daí para considerações neoliberais de que o Estado não deve se meter nos negócios privados, reclamando da determinação da Anvisa de venda pelos atendentes - ah, como a indústria farmacêutica ama a automedicação!
Suas considerações desembocam no agronegócio, "ameaçado por riscos regulatórios, frutos de pressões externas que não parecem atender aos interesses nacionais". Conhecemos o argumento, usado em defesa do Código Florestal aprovado e da usina de Belo Monte: a devastação é nossa, a preservação é gringa.
Amato reclama ainda da legislação tributária e, com uma citação completamente inexistente de Maiakóvski, resume a questão.
Teria o jornal escolhido, para ironizar a memória de Marx, um artigo que demonstra cabalmente que um dos maiores poetas comunistas (suicidado pelo stalinismo) era um defensor do neoliberalismo na versão deste empresário? Seria uma ironia fatal, jamais captada pelas traduções dos irmãos Campos e Boris Schnaiderman, que dão a entender que ele era um poeta de esquerda...
Assim pensaria o leitor que desconhece a poesia brasileira contemporânea, o que será a ampla maioria dos leitores daquele jornal. Os outros saberão que o erudito político do DEM cometeu um tremendo erro e atribuiu ao pobre poeta russo, transformado em defensor do neoliberalismo, um poema de Eduardo Alves da Costa, "No caminho, com Maiakóvski". Na ligação, poderão ler o poema tal como ele é, e não na citação estropiada e com atribuição errada de autoria feita pelo  empresário e membro do DEM.
A deficiente intimidade de Amato com a literatura gerou um erro que não é original (nem isso logrou fazer): bem antes dele, Roberto Freire (o escritor, que esteve na moda décadas atrás) usou um trecho do poema como epígrafe do livro Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu e, confundindo autor com personagem, atribuiu-o ao russo. Certamente não tinha nem mesmo notícia do livro de Eduardo Alves da Costa - vejam como é constrangedor não citar da fonte original...
O poeta brasileiro chegou a agradecer a Roberto Freire pelo engano, pois, como esse autor era um best-seller, tornou conhecido o poema, que "se transformou numa das bandeiras contra a ditadura" (No caminho, com Maiakóvski, edição de 1987 do Círculo do Livro, p. 203). Seria estranho que o poema pudesse legitimamente ser apropriado em considerações de um membro de um dos partidos herdeiros da ditadura militar.
O empresário Amato, ao cometer o péssimo passo metodológico de querer tomar poesia como manual de administração, o gravíssimo erro político de confundir políticas públicas com simples problemas de gestão, ainda logrou este erro crasso literário, o que o habilita a ser um crítico de poesia da mesma altura que José Sarney e Garotinho são poetas.
Faço notar ainda que, ao retirar do patrimônio literário brasileiro aquele poema e entregá-lo a uma literatura estrangeira, ele incorre exatamente na mesma falha que julga ver nos que desejam regular as práticas do agronegócio... Tal é o entreguismo da direita!

5 comentários:

  1. ai, ai, ai... na mesma semana em que se sabe que Yvone Maggie citou erroneamente determinada fonte, para respaldar sua tese... temos agora esse tráfico de escritores...ô promiscuidade de conveniência, tudo pelo interesse nacional, inclusive trocar a homenagem nacional pelo homenageado estrangeiro... quem pode (para ficar no tema) com essa cultura de bula de remédio né não?....Adriana Rocha

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  2. Prezada Adriana Rocha,
    Ana Maria Gonçalves desmontou os argumentos de Yvonne Maggie (que comparou a decisão recente do STF sobre as cotas ao apartheid...) Ali Kamel e de Demétrio Magnoli, mostrando que não dominam as fontes com que trabalham: http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/05/05/a-midia-as-cotas-e-o-sempre-bom-e-necessario-exercicio-da-duvida-por-ana-maria-goncalves/

    Prezada Denise Bottmann,
    concordo.

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  3. hahahaha. Muito Bom!

    Lembrei da nossa persona non grata Kátia Abreu citando Gramscil

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    1. Obrigado. Temos tantos intelectuais entre nossos políticos que é um mistério que o país vá tão mal nas avaliações internacionais de educação!

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