O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Antologia de viagem: Argentina II


Esta nota é uma continuação da anterior. Como antes, escolhi apenas um poema de cada livro, e não se trata de uma seleção dos melhores da poesia argentina de hoje (o que seria pretensioso), mas apenas dos autores que li nesta viagem, que logo acabará.
Jorge Boccanera e Mariel Manrique voltam a aparecer, pois comprei duas obras de cada um.



Jorge Boccanera (Bahía Blanca, 1952), de Sordomuda (3a. ed., Buenos Aires: Ediciones del Dock, 1998).

Galeria de coisas inúteis


Tudo o que não é útero
é intempérie.
(escutado de um vizinho de Bahía Blanca)

Como nasce o poema?
Pense em uma palmeira crescendo dentro de um anão.
(escutando um espectador)
Não é o cachorro que primeiro sente o cheiro de medo no homem.
É a mulher.
(escutado de um paroquiano do bar Paraíso)
Construímos um refúgio antiaéreo
e a bomba estava dentro do nosso.
(escutado de um rock and roll)




Mariel Manrique (Buenos Aires, 1968), de Descartes en Holanda (Buenos Aires: Paradiso, 2010).


A tumba inquieta


II

Meu crânio foi separado de meu corpo.
Bendita dualidade.
Roubou-se, extraviou-se, leiloou-se.
Vendeu-se, comprou-se e revendeu-se
durante séculos.
Como um automóvel,
como um conjunto de móveis,
como uma ação na bolsa.
Manuseado.
Submetido aos gênios do comércio,
às sucessivas assinaturas carimbadas
pela avareza de seus proprietários.
"É meu, meu, meu",
terão dito, urinando
e contabilizando mentalmente
a extensão de seus fluxos
monetários.
Até que o demônio conserve sua cabeça.
É a única coisa que não lhe podem tirar.




Nicolás Prividera (Buenos Aires, 1970), de restos de restos (City Bell: De La Talita Dorada, 2012).

A poesia segundo Auschwitz

Se foi possível a poesia
antes de Auschwitz

Por que não Auschwitz
depois da poesia?

Se foi possível a poesia
em Auschwitz

Por que não Auschwitz
depois da poesia?

Se foi possível a poesia
depois de Auschwitz
Por que não Auschwitz
depois da poesia?


Rosa María Pargas (Gualeguaychú, 1949, desaparecida em 1977), de Hubiera querido (City Bell: De la Talita Dorada, 2011)


Já não te confundes
ao dizer os verbos.
Já não mais tuas mãos,
já não mais teus beijos.
Foi como uma prova
que não logrou,
terminou o ensaio.
Já não mais açúcar
para o teu cavalo.


Santiago Sylvester (Salta, 1942), de La palabra y (Buenos Aires: Ediciones del Dock, 2010)

0000000000000000000000000000000000(a precisão)

Segundo o teólogo James Ussher (de quem
não sei mais nada)
o mundo foi criado no domingo 23 de outubro do ano 4004 a.C.
à noite.
0000000Esta precisão
assegura o fato principal: o restante foi desordem até hoje, inclusive Darwin.
Entretanto, a partir desse teólogo (em crise, como
todo teólogo) é possível acrescentar outro dado: na quinta-feira passada,
00024 de julho do ano 2008 da era cristã,
o mundo terminou surpreendentemente às quatro horas da tarde: uma hora
000bela
para dar algo como terminado.
Desde então vivemos em expectativa
sem saber que estamos em um mundo ausente de que, apesar de seus méritos,
ninguém voltou a sentir falta.



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