O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Jornalismo versus Direito: ONU e poder de veto

Em geral nós, professores de direito, avisamos logo aos novos alunos que quase tudo que lerão em jornais e revistas não especializados estará errado. Decerto há estudantes que não leem nada disso, porém não ler é mais errado ainda.
O direito possui tantas áreas diversas que isso pode ocorrer até mesmo quando são advogados que escrevem - uma presença rara nos periódicos, infelizmente. Eles prestariam um serviço melhor aos leitores se mantivessem colunas sobre o direito para que os leigos pudessem ter uma compreensão simples e correta das notícias que o envolvem mais de perto.
Walter Ceneviva, com sua coluna na Folha de S.Paulo, é uma exceção. No entanto, o civilista publicou em 28 de julho último uma coluna sobre direito internacional público, "O veto ao veto", com algumas impropriedades.
Ele trata da questão do poder que cinco Estados possuem em um dos órgãos da ONU, o Conselho de Segurança, e o critica. A estrutura da Organização resultou da II Guerra Mundial e privilegiou as três grandes potências vencedoras (Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética, que foi sucedida pela Rússia nesse posto privilegiado), mais dois grandes Estados que estavam do lado vencedor, China e França. São so membros permanentes do Conselho de Segurança - os outros dez são eleitos. As potências do chamado eixo, Alemanha, Itália e Japão, foram aceitas na ONU (o que evitava o erro da Liga, que excluiu a Alemanha), mas não receberam o poder de veto. 
Para Ceneviva, "O veto é uma das razões pelas quais a sexagenária ONU não corresponde a seus fins. Repete atos e fatos que liquidaram o Pacto da Sociedade das Nações, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918)."
É bastante reducionista, contudo, atribuir o fim da Liga ou Sociedade das Nações, antecessora da ONU, ao poder de veto. As estruturas das duas organizações eram muito diferentes, a representatividade também (a Liga das Nações nunca chegou perto da representatividade da ONU). E, principalmente, o mundo era outro: a Liga não contava com a União Soviética e os Estados Unidos entre os seus membros, e só possuía um membro africano (o que era um resultado do imperialismo), a Abissínia, que foi invadida pela Itália fascista diante da inação dos outros membros.
A Liga assemelhava-se, na prática, a uma associação meramente europeia, e apenas isso já a incapacitaria para promover a paz mundial.
Há um grave esquecimento da geopolítica no artigo de Ceneviva. E até da história: "Assinada a Carta das Nações Unidas, em 1945, repetiu-se 1918." Na verdade, 1919, que foi o ano em que o Tratado de Versalhes, que deu origem à Liga das Nações, foi assinado.
Mais adiante, o civilista faz uma pergunta que parece sugerir a extinção da organização.

Se não houvesse a ONU, seria pior? A pergunta é oportuna, mas não há bom padrão de referência atual para uma resposta. [...] Talvez sirva de exemplo a superada doutrina unilateralista do ex-presidente dos EUA George W. Bush.

Essa já é uma resposta afirmativa. Não houvera nada parecido com a ONU, a regra seria o unilateralismo simples e puro... Que significa, simplesmente, o poder daas grandes potências, como o próprio Ceneviva reconheceu em 2008.
O poder de veto é uma expressão do unilateralismo dentro da Carta da ONU; sim, mas, sem essa previsão, ela não teria sido criada. E a alteração da Carta da ONU para retirar esse poder só poderia ser feita se um daqueles cinco Estados concordar...
Isso é um ponto a ser criticado, mas não este:
A Carta da ONU foi escrita em chinês, francês, russo, inglês e espanhol. Excluiu centenas de idiomas, incluído o português [...]
Se todas as línguas oficiais dos membros (o que levaria a uma outra discussão: a repressão e o não reconhecimento de idiomas dentro dos próprios Estados) fossem oficiais da ONU (é o que ocorre na União Europeia), os trabalhos, nunca ágeis naquela organização, seriam ainda mais lentos, só por conta do esforço tradutório. Mesmo que as línguas de trabalho fossem apenas algumas, que é o que ocorre em tribunais.
Ter centenas de idiomas oficiais não melhoraria o funcionamento da ONU, mas a tornaria o paraíso indiscutível dos tradutores, que ganhariam milhares de empregos. Como eles são mais importantes do que os diplomatas (é o que sustentei aqui), e estão ocupados, ao contrário daqueles profissionais nômades, em descobrir o sentido e não em ocultá-lo, não deixaria de ser uma medida favorável à paz mundial...
Há um erro jurídico de grande proporção nesta afirmação de Ceneviva:

O veto silencia a voz do Conselho de Segurança, até pela simples ausência do membro permanente em reunião convocada. Se não for, entende-se que vetou. 

O erro mostra que o autor não acompnha o que ocorre na ONU e no direito internacional pelo menos desde 1950. A ausência e a abstenção do membro permanente do Conselho de Segurança não resultam em veto, que só ocorre quando esse membro vota em contrário.
Entende-se pefeitamente que Ceneviva tenha errado a mão em seu texto, pois o civilista não sabia como funciona o Conselho. Bastaria, no entanto, acompanhar o notíciário do jornal em que publica sua coluna para conhecer o funcionamento.
Por exemplo, quando se votou, em 17 de março de 2011, a zona a autorização de "todas as medidas necessárias" contra Gaddafi, Rússia e China se abstiveram, assim como o Brasil. A medida foi aprovada, e as abstenções marcaram a posição desses Estados que desejavam uma medida menos forte, porém não acharam conveniente votar contra ela. Pode-se ler a notícia da própria Organização, para quem não confia na Folha...
É estranho também que o colunista não tenha se referido a textos da própria Organização para tratar dela, mesmo que não tenha se lembrado do próprio jornal.

Um erro tão grande não deixa de ser exemplar; é interessante entender por que ele aconteceu. Metodologicamente, trata-se de algo muito comum entre profissionais do direito. Por falta de tempo, explicarei em outra nota.

3 comentários:

  1. olá, Pádua! Arrisco dizer que na outra nota vc dirá que os profissionais do Direito simplesmente não podem ser especialistas em todas as áreas. Não dá. Vide o professor Dallari fazendo confusão esta semana, com a demarcação da TI Raposa Serra do Sol 'para os Ianomami'... abr, Adriana de Oliveira

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Adriana de Oliveira.
    Acho que o problema é mais básico: saber que existem outras áreas além do Direito... Descobrir que há mundo fora dos autos...
    É mesmo, Dallari errou: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=6401
    Apesar disso, o argumento de que a AGU extraopolou sua competência está certo.
    Abraços,
    Pádua

    ResponderExcluir
  3. ... apenas uma maldadezinha com o professor, que apenas errou de etnia - no restante, lucidez. abr, Adriana (de Oliveira)

    ResponderExcluir