O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 31 de julho de 2012

Poesia e bem-estar ou editais antidrummondianos entre sombras

Não irei desprestigiar este concurso participando dele. Não obstante, gostaria de avisar que o SESC, cuja presença na vida cultural brasileira é tão marcante, lançou edital de concurso de poesia que recebe o nome de Carlos Drummond de Andrade - logo ele, que não aceitava prêmios.
O concurso também é antidrummondiano no art. 7º do edital, que prevê que "As poesias devem conter elementos que promovam o bem-estar e os valores morais."
O prêmio é antigidiano! Ou foi criado para barrar Baudelaire, uma vez que as únicas flores admitidas são as do bem?
O poeta, tradutor e designer André Vallias escreveu um poema que genialmente mostra o que fazer. O exemplo, no entanto, pode não ser suficiente. Para ajudar os poetas neófitos que participarão do certame edificante, ofereço dicas do que deve ser cuidadosamente evitado. Exemplos que talvez sejam de poesia, mas nunca de altos valores morais, que é o que importa quando a poesia falta - e ela nos falta sempre, tão necessária que é:


Promoção do alcoolismo e outras adições:

mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
(Poema de sete faces, Alguma poesia)

O poeta ia bêbedo no bonde.
(Aurora, Brejo das almas)
mal sabe ele que o  artigo 18
autoriza porres até de absinto;
(Noite na repartição, A rosa do povo)


Insalubridade e falta de asseio:

Olho os meus pés, como cresceram, moscas entre eles circulam.
(Os rostos imóveis, José)
Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
(A mão suja, José)
Que morador resiste
à sensualidade de comer galinha azul?
(Favelário nacional, Corpo)
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
(Resíduo, A rosa do povo)
não catei o verme nem curei a sarna.
(Confissão, Claro enigma)



Incitação ao suicídio (o Código Penal deve ser consultado junto com o Dicionário de Rimas):

Quero a última ração do vácuo,
a última danação, parágrafo penúltimo
do estado - menos que isso - de não ser.
(Sono limpo, Farewell)
As complicadas instalações de gás,
úteis para o suicídio.
(Edifício Esplendor, José)
e disse apenas alguns
de tantos que escolheram
o dia a hora o gesto
00000000o meio
00000000a dis-
00000000solução
(Homenagem, As impurezas do branco)


Devassidão múltipla: incesto, pornografia, sadismo, bestialismo e transexualismo:


viste em mim teu pai morto, e brincamos de incesto.
(De arredio motel em colcha de Damasco, O amor natural)

Oh! sejamos pornográficos
(Em face dos últimos acontecimentos, Brejo das almas)
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.
(O lutador, José)
e esse cavalo solto pela cama
(O quarto em desordem, Fazendeiro do ar)
João vira Joana: acontecem
dessas coisas sem preceito.
(A história de João-Joana, Versiprosa)


Desrespeito à Bioética:

Bate na vaca, bate.
(O fazendeiro e a morte, Boitempo)
o homem e a poluição fazendo amor.
(Antibucólica 1972, Discurso de primavera e algumas sombras)


Crítica ao progresso tecnológico ou antidesenvolvimentismo regressivo (falha gravíssima para a atual administração federal e para os intelectuais radicais a favor):

Com seu satânico poder,
os mísseis enterram a História.
(Os amores e os mísseis, Corpo)
Vinde feras e vinde pássaros, restaurar em sua terra este habitante sem raízes,
(Chamado geral, Boitempo)
Como esses primitivos que carregam por toda a parte o maxilar inferior de seus mortos,
(Tarde de maio, Claro enigma)
A bomba
0000furtou e corrompeu elementos da natureza e mais furtara e mais corrompera
(A bomba, Lição de coisas)



Desacato e calúnia contra funcionário público (não procurar poesia no Código Penal):

Ó burocratas!
Que ódio vos tenho, [...]
(Escravo em Papelópolis, Farewell)
Que fazem os juízes modorrantes
à brisa nas cadeiras da calçada,
(A paz entre os juízes, Boitempo)
[...] é gente da polícia
- sadismo, horror - que após muita sevícia
vai jogando mendigos desgraçados
à correnteza, [...]
(Jornal em verso, Versiprosa)


Desrespeito à pátria:

O Brasil só tem canibais.
(Fuga, Alguma poesia)
proclamou-se levianamente a República.
(Malogro, Boitempo)
323 casos de afogamento
no feriado nacional
(Diamundo, As impurezas do branco)

Descrença e blasfêmia:

[...] Jeová em sua pujança
castigando as criaturas infames e as outras: igualmente.
(Canções de alinhavo, Corpo)
E se Deus é canhoto
(Hipótese, Corpo)
O homem arrependo-me
da criação de Deus,
(Versos de Deus, A paixão medida)
o único absurdo é Deus
o único culpado é Deus
(Único, As impurezas do branco)


Terrorismo:


Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
(Elegia 1938, Sentimento do Mundo)
Por fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
(A flor e a náusea, A rosa do povo)
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, [...]
(Nosso tempo, A rosa do povo)


A lista poderia estender-se, mas tenho que terminar outro texto. Creio que ela permitirá aos iniciantes uma visão clara do que não será admitido no concurso.
Escrever cartinhas lacrimosas para os poetas mortos é uma bela pedida, ao contrário dos exemplos ímpios que transcrevi. Afinal, chorar gera alívio e bem-estar, muito úteis quando a poesia falta.
A partir dos exemplos blasfemos e violentos e devassos, não pensem, contudo, que esse poeta que citei e cujo nome me foge era completamente desprovido de qualidades cívicas. Isso já seria demais! Ele demonstrou muito respeito pela Política literária (Alguma poesia).
Quando a poesia falta, é tal política que permite ganhar prêmios...

6 comentários:

  1. Querem uma poesia asséptica? Que comédia! Concurso para patricinhas e mauricinhos.

    ResponderExcluir
  2. ... e eu que nem apreciava tanto assim Drummond, passo a fazê-lo a partir de agora, desse pinçamento brilhante. Adriana de Oliveira

    ResponderExcluir
  3. Drummond era bom mesmo! Só não conseguiria ser aceito neste concurso... Mas não o culpemos por isso, todas as pessoas têm limitações!

    ResponderExcluir
  4. Pádua, salve! Não vejo a hora de ver por aqui uma postagem sobre isto:

    "O Sistema Interamericano de Direitos Humanos está sob forte ataque. Um processo de reforma esconde a tentativa de limitar sua capacidade de agir de forma autônoma e independente. Organizações de direitos humanos de todos os países da região apontam o Brasil como um detrator. Quando a comissão fez recomendações no caso da hidrelétrica de Belo Monte, o Brasil desqualificou publicamente a comissão. Entre as maiores ameaças, destacam-se propostas que: restringem o poder da comissão de adotar medidas cautelares (único instrumento previsto para casos de urgência e gravidade), suprimem a possibilidade de analisar detidamente casos de países com violações massivas e limitam as faculdades das relatorias especiais, como a de liberdade de expressão e acesso à informação", artigo de Deisy Ventura, Flávia Piovesan e Juana Kweitel

    abr,

    Adriana de Oliveira

    ResponderExcluir
  5. Prezada Adriana de Oliveira,

    também achei muito bom esse artigo de Deisy Ventura, Flávia Piovesan e Juana Kweitel, que saiu na Folha em contraponto à desfaçatez textual assinada por um dos embaixadores Patriota, o irmão do chanceler (O Itamaraty é meio empresa familiar).
    Na verdade, estou com uma nota sobre a terrível questão, que inclui a Venezuela, no rascunho do blogue, mas um texto acadêmico que estou tentando terminar agora impediu-me de terminá-la. Mas está para sair, assim como a continuação da nota sobre aquela matéria jornalística que saiu sobre a ONU...
    Abraços,

    Pádua

    ResponderExcluir