O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 15 de julho de 2012

"al Face-book", ou o que Alberto Pimenta dislikes



Anunciei, em nota anterior, que Alberto Pimenta havia lançado al Face-book (Lisboa: 7Nós, 2012). Eu não sabia que o evento havia sido filmado.
Pode-se ver, nesta ligação, a leitura de todo o livro que o autor fez na livraria Gato Vadio, no Porto, em 31 de Março de 2012 [corrigido].
Antes de começar o poema, Pimenta explica brevemente o que é a sátira e revela que esse é o seu primeiro livro no gênero. Durante a leitura, que dura mais de uma hora e meia, o público desata a rir diversas vezes com a graça do poema, da interpretação (o performer Alberto Pimenta cria diferentes vozes e acentos para os personagens) e das referências à realidade portuguesa. Entende-se que o livro já esteja na segunda reimpresão alguns meses depois de lançado, o que é raro para poesia.
O livro parte de um desastre educacional - Portugal está cheio deles, inclusive a tradição de dar diplomas a quem não frequentou (ou o fez apenas parcialmente) os cursos, nem sempre em condições legais. Em A arte de furtar, afirma-se que vários bachareis formavam-se na Universidade de Coimbra sem por os pés na instituição. Foi necessário, no entanto, que o país tivesse um Passos Coelho para que o governo convidasse os professores para a emigração, o que me parece equivaler a fechar as portas e apagar as luzes de Portugal.
Nesse contexto de descalabro, Pimenta escolheu um recente caso de respostas absurdas em exame nacional de português que incluía um poema célebre de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa ("Dois excertos de odes", com o verso "A lua começa a ser real."). Célebre, mas não para os estudantes portugueses. Um aluno

afirmou que se tratava dum poeta
que não era dos mais falados
que estava ainda noutra onda
que não tinha nada que ver
com as mais recentes linhas poéticas
que se passavam todas
nas imediações da casa
bar ruas transportes engates
actos quotidianos
que não se davam a fitas
de olhar para a lua
pois sabendo procurar
há poesia em todo lugar
até ou mais ainda no caixote do lixo
problema é a falta de vocações
[...]

claro que ouvi falar
do projecto americano
de pôr uma nova luz no espaço
mas se era outra como a lua não percebi
dizia uma resposta
que depois duma breve consulta
à embaixada americana
não foi considerada aceitável (p. 10-11)
Há uma revolta contra o exame e a questão, e o governo resolve criar uma comissão. Paralelamente, os  estudantes tornam-se "amigos" dos professores na tal rede social. Tudo vai enlouquecendo gradativamente. A auréola da lua cai na lama definitivamente:

a lua são buracos
e uns cacos a tapar
um estagiário da área lá na América
roubou alguns
dos que os astronautas trouxeram
deitou-se em cima com a namorada
e coax coax
já está
mas ela
depois de ter dormido com outro
num colchão de latex coax
desistiu da lua
a lua já não conta
nem para as mulheres (p. 24-25)
Em passagem satírica com certas modas teóricas, um grupo de professores não viu nenhum "apocalipse" nem "eclipse do saber". Depois, Pimenta volta a satirizar os alunos.

ou então como dizia
o blog duma jovem penteada
quase como a cabeça de rosas
de Salvador Dali
um jovem com muito carácter
que já tinha levado 3 professores
e uma professora
à demissão por assédio sexual
três luas duma vez
eu até gostava
mas fico só com uma
não tenho roupa para três (p. 35)


Até acidentes de carro passam a acontecer por causa dos motoristas distraídos com a lua.
A revolta cresce, Pimenta volta a satirizar o governo. A comissão formada para resolver a questão

deliberou
devolver os exames aos alunos
e assim
enquanto não fossem privatizados
a tarefa de organizar as provas
caberia provisoriamente em co-produção
aos próprios candidatos
[...]
no entanto
e apesar de os poetas
já não serem o que eram
havia que não perder de vista
a política estratégica
de crescimento sustentado da poesia
havia que assegurar
que a poesia continuasse disponível
e acessível a todos
especialmente aos mais carenciados
o que a curto prazo implicará
como ficou dito
a sua cuidadosa privatização

recomenda-se no entanto
a todos que vão elaborar as provas
que doravante ponham a lua de parte
porque ela até induz perturbações ao sono (p. 60-61)

Está tudo aí: o discurso da ampliação do acesso e da sustentabilidade usado para a privatização, e a censura ao pensamento e ao ensino decorrentes da mercantilização. Há mais "sustentabilidade" no livro: passa um programa sobre a "Amazónia devastada" e, como se devastar este mundo fosse pouco, temos esta distopia tecnológica:

quando um jovem físico português
professor numa universidade da Carolina
ou da Virgínia do Norte
lembrou que se era utópico
no actual grau de evolução da ciência
embora não impossível num futuro
que já se entrevia no horizonte
pensar em capturar a lua
e reparti-la pelos países envolvidos na missão
[...]
mas nós no novo mundo sabemos
gerir as dificuldades do presente
pondo em prática sonhos do futuro
assim fizeram os pais
da bomba atômica (p. 49-50)
Devastação extraplanetária, o que tem tanto valor ético quanto a bomba atômica!
O governo brasileiro, com capacidades tecnológicas ainda modestas, só está logrando, com a violação de normas internacionais sobre genocídio, meio-ambiente e comunidades indígenas (para não mencionar a miragem do direito constitucional), destruir a Amazônia. Imaginem se o Brasil conseguisse mandar foguetes para o espaço! O défice público superaria os da Copa e das Olimpíadas somados. Pensem nos aditivos, com preços na lua, que a Norte Energia iria cobrar para construir hidrelétricas no satélite da Terra. As usinas somente seriam possíveis com uma pequena transposição das águas remanescentes do Amazonas, o que exigiria mais um aditivo ao contrato original...
No final do livro, simultaneamente engraçado e terrível, temos a zombaria em que tudo se revela falso, e não há faces por trás das máscaras.
Nesse contexto, a tal rede social, Facebook, entra como um caldo insípido, de que todos gostam, composto pela mediocridade da repetição like e por um consenso que é comodismo e rendição.
Alberto Pimenta não se rendeu. E há outros como ele. O sucesso do livro faz pensar que ainda há esperança em Portugal, apesar da Europa.




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