O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Desarquivando o Brasil XXXVIII: a propósito do movimento estudantil

Vi comentários de pessoas que se chocaram com o fato de José Serra, político do PSDB e candidato desse partido a prefeito de São Paulo, ter-se encontrado com o membro do PC do B que agora é presidente da UNE.
A entidade, por sinal, há muito é aparelhada por esse partido (Aldo Rebelo, por exemplo, foi seu presidente em 1980 e 1981) e sua presença no meio dos professores é notória, como a recente greve das instituições federais demonstrou, em prejuízo dessa categoria profissional.
A reação a respeito de Serra talvez decorra de uma certa ignorância da história do Brasil. Ou de algum sectarismo partidário. A UNE está certa em apresentar suas reivindicações a todo candidato, seja de direita ou de esquerda, seja apoiado por políticos que ajudaram a ocultar cadáveres de desaparecidos ou não.  A não ser que se espere que a UNE faça campanha, que é o que a entidade declarou que não fará, também corretamente.
Afora isso, há uma adequação histórica no encontro. Pois Serra, décadas atrás, foi perseguido pela ditadura militar e teve que fugir do Brasil exatamente por ter sido presidente da UEE e da UNE. Entendo que não se veja coerência entre sua posição política atual e a de outrora, mas o mesmo se pode dizer do pragmatismo petista de hoje.
Faço agora referência a documentos que estão no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Em relatório de espionagem anterior ao golpe de 1964, lê-se o que teria ocorrido em assembleia intersindical realizada no Sindicato dos Metalúrgicos em nove de dezembro de 1963. Tratava-se do apoio a líderes sindicais presos, presos por causa da Greve dos 700 mil que ocorreu nesse ano em São Paulo, e ao movimento dos sargentos. A UNE estava lá, na figura de seu presidente, José Serra, para declarar solidariedade.

Peri Bevilacqua que, mais tarde, seria alvo da ditadura militar (foi afastado do Superior Tribunal Militar por meio do AI-5), é atacado por ter, na qualidade de comandante do II Exército, participado da repressão aos trabalhadores.
Veja-se que Serra teria mencionado o frei Carlos Josafat, que teve de deixar o Brasil após o golpe militar.
Em uma das fichas feitas pelo serviço secreto do DOPS/SP, mencionam-se discursos de Serra em apoio ao governo João Goulart e às reformas de base. Em uma dessas ocasiões, relata-se que ele foi mais aplaudido do que o então presidente da república. Abaixo, ainda como presidente da UEE, vê-se sua presença ao lado, entre outros, de Almino Afonso e Miguel Arraes (que também teriam que deixar o país) e Rubens Paiva, assassinado pela repressão.


O direito produzido pela ditadura militar ocupou-se com a repressão aos movimentos sociais, com um olhar especial sobre o movimento estudantil. Afora a proibição legal da UNE em 1965, o ataque físico à sua sede no Rio de Janeiro e a perseguição de seus membros, pode-se destacar o decreto-lei n. 477, de 26 de fevereiro de 1969, que foi um instrumento legal para expulsar professores, estudantes e funcionários de instituições de ensino considerados subversivos, revogado apenas no governo Figueiredo, com a lei n. 6680 de 16 de agosto de 1979.
O processo era sumário e o acusado tinha 48 horas para se defender, ou 96 se houvesse mais de um participante. O cerceamento ao direito de defesa era evidente. As infrações disciplinares de que se podia ser acusado eram extremamente vagas (subversão ou ato contrário à ordem ou à moral ), de forma a permitir a livre arbitrariedade:

Art 1º Comete infração disciplinar o professor, aluno, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino público ou particular que:
I - Alicie ou incite à deflagração de movimento que tenha por finalidade a paralisação de atividade escolar ou participe nesse movimento;
 II - Atente contra pessoas ou bens tanto em prédio ou instalações, de qualquer natureza, dentro de estabelecimentos de ensino, como fora dêle;
 III - Pratique atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não autorizados, ou dêle participe;
IV - Conduza ou realize, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua material subversivo de qualquer natureza;
V - Seqüestre ou mantenha em cárcere privado diretor, membro de corpo docente, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino, agente de autoridade ou aluno;
 VI - Use dependência ou recinto escolar para fins de subversão ou para praticar ato contrário à moral ou à ordem pública. 
A punição disciplinar não eximia a instituição de ensino de comunicar o fato às autoridades policiais, se ele também constituísse crime. A greve também era proibida.
Entre as atividades consideradas violadoras do Decreto-lei, estavam a  "pederastia" e o uso de tóxicos, como se vê neste quadro estatístico que resultou de uma operação contra a "Infiltração subversiva no meio universitário em Brasília" em 1973, comandada pelo Gal. Olavo Viana Moog, que mais tarde comandaria operações contra a Guerrilha do Araguaia. Trata-se de um relatório especial do Ministério do Exército.



A "corrupção dos costumes" no uso de drogas e na atividade sexual, como se lê no documento, seria facilitadora da subversão política.
É interessante ver, na tabela, como o Opinião era influente nesse meio, e que a Rolling Stone era considerada uma publicação perigosa. Deve-se também observar que, para cada preso, foram apreendidos aproximadamente nove livros e oito periódicos considerados subversivos, o que parece denotar um bom nível de leitura para os padrões brasileiros.
Os exemplos são inúmeros de vigilância e controle do movimento estudantil. Termino esta nota lembrando que a Comissão Nacional da Verdade, no seu plano de trabalho, não possui um grupo de trabalho relativo a movimentos sociais, o que é de lamentar, tendo em vista que o problema da repressão específica a essas organizações persiste até hoje, após a Constituição de 1988.



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