O jurista Moysés Pinto Neto (http://moysespintoneto.wordpress.com/) teve curiosidade por este poema, do qual eu havia transcrito apenas o início neste blogue, pois era o que eu pretendia ler em Belo Horizonte no ano passado (mais do que aquilo seria abusar da paciência do público).
Como escrevi em outra nota (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/novo-livro-calcio.html), ele integra o Cálcio (Lisboa: Averno, 2012). O poema cruza algumas histórias, como a da polícia infiltrando-se e reprimindo um movimento de professores, o do secretário de educação que logra doutorar-se durante uma refeição, e cujo trabalho é simplesmente destruir o alfabeto, o do juiz com parâmetros éticos alternativos dando liminares contra os professores, e inclui uma etnografia imaginária (gosto desse gênero, que tento seguir desde Cinco lugares da fúria), de um povo exterminado porque sua língua desconhecia o ponto final.
Auto de resistência
I
o sangue ensina:
os professores
sob cassetete;
o sangue esquece:
nos professores
quem já se infiltra
é a polícia
e os corredores
trocam de pele
como quem veste
todas as cores
carnificinas;
o sangue ensina
aos professores
que não se aprende
senão na pele;
“já não são dores,
mas honrarias
isto que ensina
aos professores
o cassetete:
os corpos febres
transformadores
do que extermina
na própria vida”
e os corredores
caem inertes
sobre os pedestres,
nos vestem hoje
do ontem em dia.
II.1
– Abedeéfe
jotaxiséle
emeteú
zedabliú.
– Tá tudo em ordem!
Só falta o nome
do seu trabalho.
– Este mestrado
deu muita fome.
As letras somem
do norte ao sul,
do cê ao u
quase me perdem.
– Você é mestre
e já consegue
ler o cardápio.
Não encha o saco.
III
Por lecionar,
aprendo a fome.
A fome ensina,
isso aprendemos.
– É professor,
pesquisador,
parecerista.
– Porém trabalha?
Nada a aprender
senão a fome.
Assim o mundo
nos alimenta.
– Para viver,
virou palhaço
profissional.
– E já não era?
Chamar o mundo
de nossa fome;
eis o alimento
que cultivamos.
IV
– Primeiro a bomba,
depois o tiro.
– Primeiro o tiro,
depois a honra.
– Jamais a honra
sem o inimigo.
– Iremos todos
já recebê-lo.
– Sim, recebê-lo
com todo o fogo.
– Tomar-lhe o fogo,
nosso desejo.
– Não basta a bomba,
se resta o nome.
– Queimar o nome,
se ainda soa.
– As cinzas soam
o corpo do homem.
– Não basta o tiro,
se resta a língua.
– Queimar a língua
é terrorismo?
– Não. Terrorismo
é a poesia,
que diz não basta
à própria língua.
– Queimar a língua,
todas palavras,
pois sem palavras
nos basta a cinza.
– Odiar política,
amar polícia.
– Amar o tiro,
sem terrorismo.
– Pra eles, bomba.
Eles são contra.
II.2
– A, depois bê,
mas ninguém vê
como prossegue.
– Você é mestre,
o doutorado
dá mais trabalho.
– Mas o alfabeto,
se for completo,
é muito chato
e autoritário.
Ninguém o segue,
nem o cedeéfe.
– Mas é você
quem vai deter
a via do tê
ao u, o acesso
ao vê? – Correto!
V
(um fogo sangra:
as faculdades
sob a gestão
da Segurança;
um fogo cala:
nas faculdades
nada a aprender
salvo a gestão,
que torna o fogo,
antes da chama,
direto em cinza;
segura, a vida
administrada
aprende o frio)
– administrar
o fogo, isto é,
gerir a cinza.
– tornar a cinza
a educação
do próprio corpo.
– tornar-se cinza
ou respirar
o próprio sopro.
– uma didática
pela asfixia!
– nas faculdades
nada a acender
senão o frio.
(da rua à lei,
em cada passo
um sangue esfria
numa cidade
que antes unira
e ora separa
corpo e desejo,
o fogo e a fala,
já corrigidos
de terem sido
uma cidade;
na lei, na rua,
a cada passo
o frio caminha)
– corrupto? mas
segue o sistema;
o que não pode
é juiz de esquerda.
– corregedor
no tribunal
e professor
quarenta horas,
deu liminar
às faculdades.
– os professores
vão aprender
sob fogo a lei?
– pois a lei sangra.
VI
Este povo primitivo escrevia com pegadas. Para ler, seus membros tinham de olhar para o chão, incapazes de transcendência, impotentes para perceber quando as nuvens apagariam o discurso. Ademais, eram obrigados a caminhar para escrever e a escrever ao caminhar, errância celebrada do sentido, esses vagabundos não poderiam ir longe. Nas celas não há espaço para se movimentarem, não mais confundirão a palavra com o solo, é o fim da terra como alfabeto, não poderão comunicar uns aos outros a sentença escrita na tampa do alçapão.
Os antigos enólogos (pesquisavam etnias, o curso deles foi fechado depois que todas as bolsas foram direcionadas à pesquisa de água transgênica e de extração aérea de cinzas para combustível) recolheram uma história dos primitivos de que a fome originou-se de um erro de grafia, de uma trilha errada na floresta. Em vez de caminharem para o sol-peixe, foram para o sol-poente, e não acharam o caminho de volta por causa de um problema de pontuação, não lembro bem, acho que essa lenda surgiu porque, antes do contato com os civilizados, a língua deles não conhecia o ponto final.
II.3
– A, depois a,
sem blabablá!
Sou Secretário
e o meu trabalho
na educação
não é em vão:
o fim das letras
vem sem tristeza.
Sabem ler? Não,
nem notarão
que o abecedário
foi apagado.
– Como avaliar
o ano escolar
se só resta o A?
– A sobremesa!
Ah! Ah! Ah! – Eta!
VII
Sob cassetetes.
Se amputarmos a perna,
sobreviverá.
Deixemo-lo inteiro;
batizaremos a gangrena
com o nome do corpo.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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