Há pouco, Bob Wilson voltou aos palcos do SESC em São Paulo com A ópera dos três vinténs, que não vi (os ingressos se esgotaram em poucas horas) e Lulu, de Wedekind.
A montagem de Lulu era bastante abstrata; em alguns momentos, lembrava-me Waltercio Caldas. A direção de atores era perfeitamente coerente com essa opção. A atriz principal, Angela Winkler, sempre com uma perturbadora voz suave, tinha momentos de autômato, o que iluminava diversas facetas da personagem.
Rock não é o estilo de música de que mais gosto (prefiro Alban Berg: https://www.youtube.com/watch?v=CZzT8e8PeqY), mas apreciei o trabalho de Lou Reed nas canções.
No dia 25 de novembro, amanhã, verei a montagem de Macbeth, de Verdi. Trata-se de uma ópera em que o político, o psicanalítico e o sobrenatural se mesclam. Imagino que o diretor não enfatizará a questão política. No caso de Lulu, por exemplo, os cortes que o texto sofreu, e que devem ter comprometido o entendimento para quem não conhecia a história, incluíam nada menos do que a quebra da bolsa.
Todo o plano de fundo da crise do capital sumiu, despolitizando a peça. A encenação era muito bonita plasticamente e bastante virtuosística, mas saí sentindo que Wedekind era ainda melhor do que a encenação de Bob Wilson.
Décadas antes, em 1974, Bob Wilson veio ao Brasil montar A vida e época de Dave Clark no I Festival Internacional de Teatro, organizado por Ruth Escobar, em uma empreitada esteticamente e politicamente corajosa da atriz e produtora. Dois agentes do DOPS foram assistir ao espetáculo, que durou 12 horas, do dia 13 ao 14 de abril. Eis o relatório.
Vários elementos destacam-se. O fato de os agentes não terem compreendido nada porque não falavam inglês é um detalhe com um aspecto cômico, embora realce as deficiências da educação no Brasil, que não foram resolvidas até hoje, muito pelo contrário. Acima, lemos que "Cada ato, conforme programa anexo, se desenrolava com enredo diferente e de difícil interpretação, principalmente porque era falado em inglês" e que "cantam uma canção, mas em inglês". Isso é o que foi divulgado para a comunidade de informações nesta Informação n. 293-B/74.
Em nota que não foi para a Informação, e ficou apenas no dossiê do próprio DEOPS/SP, lemos que "tanto eu, como meu companheiro, procuramos ouvir nas rodinhas que, se formavam nos intervalos, para saber qual o significado da "ópera", mas nada conseguimos".
A boa imagem do domínio das línguas do DOPS/SP não poderia ser comprometida... Embora seja provável que alguns do que receberam o documento confidencial tivessem estranhado que um espetáculo de doze horas pudesse ter sido resumido a tão poucas linhas.
Um fato interessante é que o Dave Clark, na verdade, era Stálin. A mudança do título ocorreu devido à censura. Nesta matéria da Bravo, contam-se as dificuldades que Ruth Escobar enfrentou para trazer o espetáculo para o Teatro Municpal, e o encenador fala de nunca ter pensado que seu trabalho fosse político:
http://bravonline.abril.com.br/materia/a-vida-e-a-epoca-de-um-encenador#image=183-td-bob-wilson-1
No entanto, o que ocorria no teatro em 1974 era recebido como político, e da ordem da subversão. No relatório, lê-se o desconforto dos agentes com desejos diversos e ordens dos deles:
Além da homofobia, vê-se uma dificuldade com o que não é linear, com o que é o outro. Nisso, tais agentes encarnavam com fidelidade o próprio regime.Gostaria de lembrar aqui uma reflexão que Alexandre Nodari faz em sua tese (Censura: ensaio sobre a "sevidão imaginária") a partir de Milton:
A platéia em sua maioria, era composta de jovens (hippie), com vestimentas extravagantes, principalmente do sexo masculino, que demonstravam sua euforia por poderem estar em ambiente propício ao uso do "unissex" e de quando em vez chegavam a trocar beijos com os parceiros, tal o contentamento de que estavam tomados.
Quanto a ópera, tal qual a maioria da platéia, também extravagante, pois não tinha seqüência normal. Cada ato, conforme programa anexo, se desenrolava com enredo diferente e de difícil interpretação, principalmente porque era falado em inglês - um toca fitas -, geralmente monólogo.
Sublinha-se aqui o paradoxo inerente ao censor: ele deve conhecer ou experimentar o que deve proibir. A única saída possível é que ele, mais do que exemplar, seja excepcional, que possua uma virtude que os demais não possuam: assim, lemos em um texto anônimo publicado em 1975 na revista argentina Literal, “seu olhar deve controlar-se, seu desejo está a salvo do contágio, para ele é um dever fazer e ver aquilo que converte os demais em culpados quando o provam”. [p. 60]A infiltração (em sindicatos, universidades) exigia essa experimentação do proibido. Neste caso, via-se que ela foi muito restrita, pois os agentes não tinham nem a língua nem a sensibilidade para apreender o que estava ocorrendo, e se contentaram em verificar uma quebra de expectativas estéticas e de comportamento que, no caso, não souberam avaliar.
A noção, na doutrina de segurança nacional, de que a guerra revolucionária tinha como primeira fase a propaganda adversa, uma ação "psicológica" para perverter os valores, fazia com que essa quebra de expectativas fosse considerada subversiva.
Em aula de 1969 na Escola Superior de Guerra, Aspectos da guera contemporânea - A guerra revolucionária, disponível na internet no Arquivo Ana Lagôa, lemos que o primeiro "tipo" de ações da subversão comunista corresponderia a:
[...] atividades que visam ao desmantelamento dos valôres tradicionais pelo desgaste físico e psicológico do poder constituído e de seus agentes, visando a obter o seu colapso; ao mesmo tempo em que se valem dos antagonismos existentes e os agravam, procurando suscitá-los, em áreas ainda não sensibilizadas. [p. 12]
Dessa forma, a primeira fase dessa guerra seria "a de preparo da ação, em que é tentada a conquista física e espiritual da população visada, mediante a aplicação de meios predominantes psicológicos" [p. 13, grifos do original].
Pouco importava que Bob Wilson não considerasse político o próprio trabalho: o contexto deu-lhe esse caráter. Em um contexto autoritário como no Brasil, o uso de outras linguagens estéticas já poderia ser tipificado como subversivo - e vários nomes da Tropicália, embora esnobados por membros da canção de protesto, sofreram a repressão por essa causa. Os militares, nesse sentido, foram mais sensíveis politicamente do que os estudantes, no teatro Tuca em São Paulo, que vaiaram "É proibido proibir" de Caetano Veloso em 1968. Parte da esquerda, por sinal, ainda hoje, como lembra Flávia Cera, tem dificuldades com as diferenças e as singularidades: "E existe alguma coisa do desejo, alguma coisa do sujeito, que não sucumbe ao poder, é essa singularidade, essa coisa sem significante e inapreensível, que guarda secretamente as possibilidades de mudança."
http://www.culturaebarbarie.org/mundoabrigo/2011/01/tropicalia-corpos-etc.html
Nisso, como em tantos outros aspectos, a ditadura é a imposição de uma língua única.
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